“Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal teve um papel decisivo para evitar que o Brasil experimentasse o autoritarismo”, disse o ministro Gilmar Mendes, durante o lançamento do seu livroEstado de Direito e Jurisdição Constitucional 2002-2011. No evento, promovido pela Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp), o ministro revelou bastidores de julgamentos da Suprema Corte e disse que “a história fará Justiça ao STF”.
Gilmar Mendes afirma que nos últimos nove anos — período em que está no Supremo — presenciou diversas situações que representaram sérios riscos de instalação de um Estado policial pela atuação da Polícia Federal em investigações como as das operações anaconda e navalha, por exemplo, com a exposição do preso, suspeito ou não.
“Alguns agentes do Estado, mesmo sob a vigência das liberdades políticas, buscam sempre impor uma espécie de arbítrio oculto na tentativa permanente de reduzir os direitos do indivíduo em detalhes de aparente insignificância no dia a dia”, disse o ministro.
A anaconda, deflagrada em 2003, investigava denúncias de venda sentenças. Entre os investigados pelo Ministério Público Federal estava o juiz Casem Mazloum. Ele foi acusado de formação de quadrilha, enviou de US$ 9,3 milhões para o Afeganistão, interceptação telefônica clandestina, uso de placas frias do Detran paulista e requisição de agentes federais para a garantia de segurança de seus pais.
O juiz ficou afastado do cargo por mais de sete anos e, no final, as ações criminais contra Casem foram anuladas pelo Supremo Tribunal Federal que as definiu como “bizarras”, “ineptas” e “aventureiras”. Em maio de 2010, o STF suspendeu o processo administrativo disciplinar e o juiz reassumiu o cargo na 1ª Vara Federal Criminal de São Paulo.
“Um juiz foi denunciado porque primeiro disse que tinha US$ 9 milhões no Afeganistão e em outro momento disse que tinha esse dinheiro em casa. O MP considerou que se ele cometeu uma controvérsia é porque devia alguma coisa. Fez a denúncia. E o pior, ela foi aceita. Decisão descabida”, afirmou o ministro, na Aasp.
Gilmar Mendes disse que a postura da PF, que tinha por hábito convidar a imprensa para acompanhar suas ações e prisões, e a publicação na imprensa de todos os atos da Polícia e dos supostos indícios encontrados, dificultou a vida dos juízes, já que a sociedade costuma ter uma visão de impunidade da Justiça brasileira.
“O juiz está pressionado a julgar de acordo com as expectativas dos cidadãos ou arcar com duras críticas por assim não fazer. É impressionante o números de denúncias que são aceitas sem o mínimo de plausilibilidade”, afirma o ministro.
Gilmar Mendes diz que existe um “estado espiritual de covardia”, “um estado de medo”, que acomete aos juízes. Para ele, muitos aceitam os pedidos infundados e descabidos por acreditarem tratar-se de mera denúncia, mas “todos sabemos o que significa para um temente a vida o que é ser denunciado”, concluiu.
O ministro ressaltou a importância do juiz se manter firme em suas convicções diante de um cenário de pressão. “Numa democracia, o direito se acha nas leis, não nas ruas. Um juiz não ecoa o brado dos que reivindicam ou o alarido dos que reagem. A tarefa de um magistrado é aplicar os códigos segundo a vontade que o povo consolidou nas instituições, não segundo as maiorias de ocasião ou as minorias influentes. Clamor público não é critério de justiça.”
Entre as histórias que relata em seu livro, Mendes contou uma relacionada à operação navalha, que em maio de 2007 prendeu quase 50 pessoas de uma só vez com autorização da ministra Eliana Calmon, do Superior Tribunal de Justiça.
O ministro do Supremo Tribunal Federal recebeu um pedido de Habeas Corpus de um advogado e conselheiro da OAB, que se dispunha a comparecer e prestar esclarecimentos assim que fosse intimado. “Considerei uma prisão descabida. Quais eram as chances daquele indivíduo fugir?”
Mas Gilmar Mendes conta que recebeu um telefonema do procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza, para falar da operação. O então PGR informou que a ministra Eliana Calmon “pretendia revogar as prisões tão logo realizadas as audiências com os investigados”. Mendes responde dizendo que “se ele conhecia bem as leis brasileiras, aqui não se prende para ouvir”.
Pouco tempo depois, relembra o ministro, recebeu a ligação de um repórter. Ele dizia que fontes da Polícia Federal informaram que todos os presos na operação seriam libertados por Gilmar Mendes.
O ministro ligou para o PGR, que garantiu não ter feito qualquer comentário sobre a conversa que tiveram. “Estávamos, o procurador-geral da República e eu, a ser monitorados por essas tais ‘fontes’”, concluiu.
Para Gilmar Mendes, existia uma clara intenção de constranger e pressionar o STF. O que pelo seu ponto de vista foi confirmado com notícias de que o seu nome teria aparecido na lista de quem recebeu “mimos e brindes” da empresa Gautama, acusada de ser favorecida em algumas licitações e envolvida no processo. Para ele, o fato da Polícia Federal tê-lo relacionado no caso, mesmo ciente que de fato existia um Gilmar de Melo Mendes nos autos, que era um homônimo, mostrou que a PF atuava contra o Estado democrático de Direito.
“Fazer isso com o ministro é uma canalhice. Vejam em que situação estávamos, era difícil tomar uma decisão, o juiz era colocado sob testes. Naquela época conceder um HC era perigoso”, afirmou o ministro.
A certa altura da investigação contra a construtora Gautama, “tudo estava a indicar que setores da Polícia haviam incorporado métodos ilícitos para obter a decretação de prisões provisórias requeridas e evitar a concessão de ordem de Habeas Corpus”, disse o ministro que entende que “o chamado combate à impunidade não pode ser justificativa à utilização de todos os métodos e a prática de sistemática atemorização”.
Para Mendes, as tentativas de instalação de um Estado policialesco existem, e o Supremo tem exercido um papel importante na preservação do Estado de Direito. “Decisões como estas no caso da Operação Navalha, em que concedemos o HC, mesmo diante de tanta pressão, mostra que o Supremo, não tem compromisso com a impunidade, mas exige que as investigações ocorram dentro das regras do Estado Democrático de Direito.”