ESTADO DE ANOMIA

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“Nos dias presentes, a sensação que tenho é de que o Estado perdeu o controle da situação, favorecendo, com sua omissão, o surgimento de um ambiente propício e deletério, no qual proliferam grupos de criminosos que vivem em função e em razão das ações de um Estado paralelo, criado com o objetivo de dar vazão a suas ações criminosas, não escapando dessa análise nem mesmo os homens públicos que, pela sua posição, poder decisório e influência, deveriam agir de forma escorreita, para não incutirem no cidadão com propensão à anomia a triste sensação de que vale a pena transgredir, e que bobo mesmo é quem, podendo, opta por não desviar a sua conduta, como se viver sob o império da lei fosse mesmo uma exceção”

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Ultrapassada a chamada “primeira fase da criminologia”, com os estudos referentes às Escolas Clássica e Positiva, vieram as chamadas Teorias Macrossociológicas da Criminalidade, com as quais teve início a chamada “segunda fase da criminologia”, iniciada na década de 1920, com a escola de Chicago.

Conforme se sabe, com as Teorias Macrossociológicas, os estudos da criminalidade deixaram de se preocupar com o indivíduo ou com pequenos grupos de indivíduos, para se concentrarem na criminalidade macro, ou seja, passaram a se concentrar nos fatores que levam a sociedade como um todo a praticar infrações penais, com especial atenção aos denominados guetos, surgidos nas chamadas megalópoles, cujos ambientes proporcionariam o “cultivo do crime”.

Segundo a Teoria do Consenso, um dos grupos em que se dividem as Teorias Macrossociológicas, existem certos locais onde o Estado não consegue fazer valer sua força normativa e coercitiva. Nesse sentido, esses lugares seriam guiados por uma verdadeira anomia, por uma subcultura delinquente, por condutas “anômicas” que o indivíduo adota quando se vê privado de referências e controles; condutas marginais, portanto, ligadas à violência.

Diante das reflexões que tenho feito em torno dessas questões, tenho constatado que, efetivamente, vivemos, nos dias presentes, esse estado de anomia, que, segundo Durkheim (1974), é onde as normas de uma sociedade são enfraquecidas, onde o indivíduo parece perder o sentido de pertencer a um determinado grupo.

Devo dizer, inobstante, diferente de algumas conclusões das Teorias Macrossociológicas, que essa situação anômica não se restringe a determinados lugares; a sensação de viver num estado sem lei e sem ordem, pelo menos até onde a minha vista alcança, se esparrama por toda sociedade, faz parte da nossa vida cotidiana, apresentando-se sob as mais diversas feições e nos mais diversos ambientes: em cada esquina, um assalto; em muitos ambientes familiares, a violência doméstica; nas repartições públicas, incontáveis casos de corrupção; em cada prefeitura, uma licitação fraudada; em diversos ambientes de trabalho, a prática do assédio, moral e sexual; no trânsito, a falta de respeito às normas mais comezinhas; nas favelas, a proliferação de milícias; nos presídios, o domínio das facções criminosas etc.

Essa criminalidade – que não é pontual, reafirmo – está em todos os ambientes onde o homem pontifica, introjetando no semelhante o sentimento malfazejo de que o ser humano perdeu, definitivamente, o sentido de viver sob o império da lei, afastando-se, a olhos vistos, das normas da sociedade, para viver em função das normas de grupos de delinquentes, que não têm apreço ao pacto social e pelo coletivo, não raro optando por agir individualmente como ser anômico, sem referências positivas do passado e sem perspectiva de mudança de direção no futuro.

Esse estado anômico, bem se pode ver, estimula o surgimento, como uma panaceia, das mais diversas teorias de pretenso combate à criminalidade (Tolerância Zero, Janelas Quebradas ou Broken Windows Theory, Tree Strikes an You are Out) as quais culminaram com a chamada teoria do Direito Penal do Inimigo, de Günter Jacobs, segundo a qual, um indivíduo que não admite ser obrigado a entrar em um estado de cidadania não pode participar do conceito de pessoa, levando-nos a crer, equivocadamente, que determinadas pessoas, pela sua conduta, não merecem a proteção do Estado. Daí por que devêssemos, em nome dos que se submetem às leis estatais, tratá-las de forma diferenciada, restringindo, com efeito, as suas garantias penais e processuais, enfrentando-as com as chamadas “leis de combate”.

É preciso estarmos atentos ao fato de que as teorias que acima mencionei, que tanto fascinam as correntes favoráveis ao maximalismo penal, à conta de leis penais mais severas e de uma cultura imediatista, flertam com a ilegalidade, pois abespinham, malferem princípios comezinhos de direito, sem, entrementes, resolverem o problema da criminalidade.

Tais teorias, que, repito, não resolvem o problema da criminalidade, são apenas, desde o meu olhar, discriminadoras e perpetuadoras do tratamento diferenciado que tem sido dispensado a uma determinada classe social, mesma classe que, à falta de ações estatais, terminaram por prodigalizar o Estado de anomia a que me referi acima, onde cada um defende o que é seu, a seu tempo e modo, com a perpetuação (vide o caso das favelas do Rio de Janeiro) dos grupos criminosos que terminam por substituir o Estado, mesmo Estado que, historicamente, tem sido omisso nas questões mais elementares que permeiam a vida em comunidade, mesma comunidade que, sentindo-se órfão das ações estatais, terminam por se aliar aos grupos de criminosos que o substituem, perpetuando, nesse sentido, o Estado de Anomia a que me reportei acima.

É isso.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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