HIERARQUIA DA CRUELDADE

Os livros Spotlight, Segredos Revelados, de uma equipe de investigadores do The Boston Globe, O Homem Inocente, de John Grisham; Diário de Guantánamo, de Mohamedou Slahim, preso no campo de detenção da Baia de Guantánamo, em Cuba; Marighella, o Guerrilheiro que Incendiou o Mundo, do jornalista Mário Magalhães; Maria Bonita: Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço, de Adriana Negreiros; O Livro Negro do Comunismo, Crimes, Terror, Repressão, editado por Stéphane Courtois; e Brasil: uma Biografia, de Lilian Schwarcz e Heloisa Starling, têm em comum o fato de estarem permeados de narrativas sobre a crueldade do homem, o que me induziu a essas reflexões, pois que, à medida que me aprofundava na leitura dos títulos acima citados, ia sendo tomado de desalento – e, algumas vezes, até revolta -, ante a constatação do que o homem, sobretudo em condições de superioridade, é capaz de fazer em detrimento do seu semelhante.

É claro que em nenhum desses manuais os seus autores pretenderam dar ênfase às crueldades do homem, pois, definitivamente, não elegeram essa questão como tema central das narrativas. Quanto a mim, à proporção que lia – e me envolvia emocionalmente -, fui sendo levado a analisá-los sob essa perspectiva, pois, a cada excerto tratando das maldades do homem, como, por exemplo, em face da escravidão e seus desdobramentos, narrados na monumental obra de Lilian Schwarcz e Heloisa Starling, me via tomado de indignação.

Por óbvio, não vou fornecer detalhes dos livros. Limitar-me-ei, com efeito, a refletir acerca do que há de comum entre eles, e que me motivou a escrever este artigo, como antecipei acima, ou seja, a crueldade do ser humano, vista e analisada aqui numa perspectiva de poder, não só o conferido pelo Estado – caso dos algozes de Diário de Guantánamo e de O Inocente, por exemplo -, mas também quando ele, o poder, é exercido em razão de uma liderança, caso de Carlos Marighella, de Lampião e Maria Bonita, dos padres pedófilos mencionados em Spotlight), dos ditadores citados no Livro Negro do Comunismo e dos escravizados de que cuidam Lilian Schwarcz e Heloísa Starling em sua obra.

Nos cenários descritos em todos os livros, o que mais estarrece, e sobre o que pretendo esgrimir nessas reflexões, é a constatação de que os protagonistas das injustiças, das violências, das crueldades perpetradas contra o semelhante detinham o poder de mando e, em face desse poder, exorbitaram, levando-me a concluir que a crueldade, muitas vezes, decorre de uma posição de poder, que a torna ainda mais nociva e abjeta, difícil de ser combatida, a reclamar, também por isso, uma atuação mais enérgica das instâncias de controle.

A posição hierarquizada dos algozes torna a crueldade ainda mais abominável, convém reafirmar, porque eles se valem dessa hierarquização para perpetrar as maldades e para, a partir da posição que ostentam, conseguirem se safar das ações dos órgãos de controle, protegidos, quando se trata de agentes do Estado, pelo próprio sistema, que apesar de tudo ver, se omite em face de quase tudo.

Para os que detêm o poder de decidir sobre a vida e a sorte das pessoas, o sistema punitivo, infelizmente, empresta a sua aquiescência, o que resulta na impotência das vítimas diante das ações dos seus algozes, uma vez que, de regra, não têm a quem recorrer, sobretudo quando são pessoas egressas das classes menos favorecidas, para as quais Justiça é apenas uma quimera, um sonho muitas vezes acalantado, mas nunca alcançado.

As crueldades retratadas nos manuais a que me reportei impactam sobremaneira, porque reafirmam aquilo que sempre tenho dito: dos animais que existem sobre a terra nenhum é mais perigoso que o homem; essa perigosidade se potencializa quando ele é detentor de algum poder de mando, seja por estar investido de alguma atribuição conferida pelo Estado, ou porque exerça o poder em decorrência da sua liderança.

A constatação de que crueldade do homem pode vir a ser hierarquizada em face do poder de mando o homem é, de certa forma, um desalento, sabido que, contra isso, a única certeza que temos é a de que todos somos impotentes. Daí por que não são poucos os que, em face de um agente estatal mal-intencionado, sucumbem, podendo, muitas vezes, até ser condenados, como temos testemunhado todos os dias, mesmo nas sociedades que se dizem evoluídas e democráticas como a americana, nas quais os erros judiciários e as injustiças estão presentes, sobretudo em face da população negra e hispânica.

Das narrativas contidas nos livros, restou definitivamente claro para mim que o Estado não protege, definitivamente, o mais débil. Ao contrário disso, se mostra pleno, poderoso, eficaz e altivo quando destina as suas ações para perseguir e punir, sem pena e sem dó, os egressos das classes menos favorecidas, eleitos como alvos preferenciais das vinditas estatais.

Causa estupor e revolta constatar, à luz do que li e do que testemunhado há mais de trinta anos como magistrado, a capacidade que o Estado tem de, ante os mais frágeis, se agigantar, sufocando-os de tal sorte e em tal medida, a ponto de não deixar outra alternativa aos desvalidos que não seja a sucumbência ante as forças persecutórias oficiais, as mesmas forças que são frouxas e lenientes quando se trata de punir os mais poderosos, para os quais as instâncias de controle parecem agir com o único afã de protegê-los, contando com o beneplácito de agentes incrustados na própria máquina estatal, encarregados de fazer o trabalho sujo.

É isso.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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