Portar arma de fogo desmunicada é crime?
Desde a publicação da Lei n. 10.826/03 os operadores do Direito enfrentam uma questão tormentosa: o porte de arma de fogo desmuniciada, não tendo o seu portador munição ao seu alcance, tipifica, especificamente, o crime do artigo 14, do Estatuto do Desarmamento?
Os Tribunais, em face dessa questão, têm se dividido. O próprio STF, guardião da Constituição, tem agido, com efeito, de forma pendular ao exame de fatos concretos em torno da quaestio. Primeira Turma desse Sodalício, reformulando antigo posicionamento ( RHC 81.057/SP, rel. Min. Ellen Gracie, Rel. p/acórdão Min. Sepúlveda Pertence), passou a se pronunciar no sentido de que, para tipificação do crime de porte ilegal de arma, não importa estar ou não a arma municiada( STF, HC 96072/RJ, Min. Ricardo Lewandowski, 09/04/2010).
Os argumentos que levam ao entendimento acerca da atipicidade da conduta de quem porta arma de fogo desmuniciada são os mais diversos. Destaco, dentre eles, o que dá realce aos princípios da necessidade da incriminação e da lesividade do fato criminoso, que foi, afinal, o principal – mas não o único – argumento do voto do Min. Sepúlveda Pertence, no HC antes mencionado. Segundo o entendimento esposado pelo ilustrado magistrado, o cuidar-se de crime de mera conduta, no sentido de não se exigir à sua configuração um resultado material exterior à ação, não implica admitir sua existência independentemente de lesão, ou potencial, ao bem jurídico tutelado pela incriminação.
Do voto em comento colho, ademais, o argumento segundo o qual “não importa que a arma verdadeira, mas incapaz de disparar, ou a arma de brinquedo possam servir de instrumento de intimidação para a prática de outros crimes, particularmente, os praticáveis mediante ameaça – pois é certo que, como tal, também se podem utilizar outros objetos – da faca à pedra e ao caco de vidro -, cujo porte não constitui crime autônomo e cuja utilização não se erigiu em causa especial de aumento de pena”.
Registro que a divergência acerca da quaestio, como sói ocorrer, não é “privilégio” do STF. O STJ, de igual forma, também tem divergido acerca da quaestio. A Sexta Turma, verbi gratia, através dos votos do Ilustre Min. Nilson Naves, tem entendido que não há crime, se o porte for de arma de fogo desmuniciada, sem projétil ao alcance; a Quinta Turma, pelo voto do Min. Arnaldo Esteves, entende de forma antípoda, ou seja, nessa hipótese, em face do poder intimidador da arma, há crime, sim, independentemente de estar ou não municiada.
E assim vão decidindo os diversos pretórios nacionais, dentre os quais o TJ/MA, cuja Primeira Câmara, em sua composição anterior à minha permuta para Segunda Câmara, vinha decidindo, iterativamente, pela atipicidade da conduta em face do porte de arma de fogo desmuniciada e sem artefato ao alcance do seu condutor.
O certo é que, com o novo entendimento da Primeira Turma do STF, serão reputadas criminosas as condutas de portar arma sem munição e portar munição isoladamente, em face do venerável, mas discutível, entendimento, de que o perigo abstrato pode ser presumido de modo absoluto, de modo a considerar delituosos comportamentos totalmente ineficazes de ofender o interesse penalmente tutelado.
Destaco que o STF, até 2005, antes, portanto, do julgamento do HC 81.057/SP, da relatoria da Min. Ellen Gracie, acima mencionado, vinha esposando entendimento oposto, ou seja, de que o porte ilegal de arma de fogo desmuniciada era típico – pelo perigo presumido – , entendimento que, agora, em 2010, como suso anotado, passou a esposar novamente.
O Min. Cezar Peluso, que acompanhou a divergência inaugurada pelo Min. Sepúlveda Pertence – vencidos, in casu, Ellen Gracie ( relatora) e Ilmar Galvão – em determinado excerto do seu voto no qual posicionou-se pela atipicidade da conduta de arma de fogo desmuniciada, aduziu: “Enquanto uma arma municiada pode representar risco de dano, ou perigo, à incolumidade pública, à segurança coletiva enfim, uma arma desmuniciada já não goza, por si só dessa aptidão, O mero porte de arma de fogo desmuniciada não tem a capacidade para meter em risco o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora”.
A Ministra Ellen Gracie, de seu lado, suplantada em seus argumentos pela divergência, argumentou, em defesa da tese da tipicidade da conduta: “O fato de estar desmuniciado o revólver não o desqualifica como arma, tendo em vista que a ofensividade de uma arma de fogo não está apenas na sua capacidade de disparar projéteis, causando ferimentos graves ou morte, mas também, na grande maioria dos casos, no seu potencial de intimidação”.
Tenho seguido, até aqui, a linha de entendimento do Min. Peluso, e de uma infinidade de autores contemporâneos, segundo os quais a lesividade e a ofensividade são a pedra de toque para tipificação do crime de porte ilegal de arma de fogo. É dizer: portar arma de fogo desmuniciada – desde que, claro, não haja ao alcance do portador nenhum projétil, nenhum artefato – não é crime, ainda que se realce o seu poder de intimidação para pratica de outros crimes, particularmente os comissíveis mediante ameaça, na certeza de que outros instrumentos também podem ser utilizados com essa finalidade, e o seu porte, nada obstante, não constitui crime autônomo.
A questão, é bem de se ver, está muito longe de ser pacificada, sobretudo agora, com o lançamento de um manual de autoria do professor e promotor de Justiça do Tocantins, Felício Soares – Manual sobre Armas de Fogo – que promete colocar “lenha na fogueira”, em face das instigantes reflexões nele albergadas.
Do prefácio do livro, de autoria do também promotor de justiça Roberto Tardelli, do I Tribunal do Júri do Estado de São Paulo, destaco o excerto em que confessa, com singular sinceridade, que, antes do livro (de Felício Soares, claro ) entendia que arma de fogo era somente aquela pronta e apta para uso. Fora disso, confessa, as armas não eram mais que engenhocas inofensivas e, como tal, não interessariam ao Estado. E arremata:
“Dizia isso com a convicção beata dos ignorantes. Fui convencido do contrário pelo livro”.
Ainda não tive acesso ao livro, tanto que as informações que faço em face dele decorrem da matéria que capturei no Consultor Jurídico, de autoria do jornalista Robson Pereira.
Aliás, o próprio repórter de o Consultor Jurídico, a provocar em mim especial ansiedade acerca do livro em comento, em determinado excerto, adverte:
É difícil não se render às evidências e aos argumentos reunidos por Felício Soares para contrapor importantes doutrinadores ou julgadores que consideram armas e munições como objetos dissociados, onde o poder do primeiro só se manifesta na presença do segundo. Sua convicção é tamanha que, em nenhum momento, precisa valer-se da inquestionável capacidade de intimidação do objeto analisado, centralizando suas análises à viabilidade relativa de uma arma efetivamente provocar disparo e, assim, “cumprir” os objetivos para a qual foi concebida.
Não vejo a hora, pois, de ler o manual em comento, pois que, a partir dele, quem sabe, poderei assumir, definitivamente, uma posição acerca de tão instigante questão. Por enquanto, sigo adotando a mesma linha de entendimento: o porte de arma de fogo desmuniciada e sem projétil ao alcance do seu portador, não é crime, razão pela qual tenho, no segundo grau, reformado as decisões de primeiro grau em sentido contrário.
é de extrema imporatância a questão em discussão, mas a respeito diante desse expressivo tema venho citar que tenho que concordar com algumas decisões dos tribunais superiores em favor da tipicidade da conduta.
Sou acadêmico de direito e sou o favor da tipicidade da conduta, justamente pelo poder intimdatório, o temor que causa a sociedade onde aqueles que as portam sem estarem devidamente autorizados mesmo que não haja munição,pois, tal conduta pode caracterizar sim um enorme constrangimento por quem estaja a mercê de tal atitude mesmo não havendo nehuma modificaçao no mundo exterior,mas também não sabemos o que passa na cabeça de quem a porta.