Tributo a Evandro Lins e Silva

Tales Castelo Branco

Evandro Lins e Silva: guardião da honra brasileira

Amanhã, dia 18 de janeiro de 2012, comemora-se o centenário de nascimento do inesquecível mestre Evandro Cavalcanti Lins e Silva.

Para quem, como eu, teve a honra de conviver com ele, na década de 90, compartilhando o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em Brasília, é dia de recordações e de imensa necessidade de homenagear-lhe a memória, relembrando a fecunda vida do homem e do jurista.

No Conselho Federal da OAB, Evandro participava da bancada do Piauí, embora residisse há muito tempo no Rio de Janeiro. A presença dele como representante do Estado nordestino era essencialmente honorífica, apesar de ostentar os mesmos direitos e deveres dos demais conselheiros da Casa. Era comum incluir na representação do Conselho Seccional dos Estados o nome de um colega de destaque. Assim explica-se a presença de Evandro como membro da bancada piauiense, apesar de residir e advogar no Rio de Janeiro.

Evandro Lins e Silva, nome simplificado como era conhecido, nasceu há um século (18 de janeiro de 1912), na ilha de Santa Isabel, no delta do rio Parnaíba, norte do Estado do Piauí. Faleceu, aos noventa anos, no Rio de Janeiro, em 17 de dezembro de 2002.

Era filho do juiz pernambucano dr. Raul Lins e Silva e de Dona Maria do Carmo Cavalcanti Lins e Silva. Apesar de seu pai judicar no Maranhão, preferiu que o filho nascesse no Piauí, mais precisamente na região de Parnaíba, que era, no início do século XX, localidade próspera e produtiva do nordeste, graças ao extrativismo do babaçu e da carnaúba, matéria-prima utilizada na fabricação de discos. Para cumprir esse desejo, o dr. Raul alugou naquela localidade uma pequena casa, dias antes do parto, o qual seria realizado por um médico conhecido. Contam alguns biógrafos que, no entanto, o tal médico não pôde comparecer naquele dia para atender à parturiente; então, coube ao dr. Raul, guiando-se por um livro de medicina, auxiliar o nascimento do filho.

Ainda criança, Evandro mudou-se com a família para a cidade de Itapecuru, no Estado do Maranhão, onde seu pai era o Juiz de Direito do município. Cursou as primeiras letras em escola pública daquela cidade, indo terminar o curso primário em Recife, terra natal do seu pai. Na capital pernambucana iniciou o segundo grau escolar no Ginásio Pernambucano terminando-o no tradicional Colégio Pedro II no Rio de Janeiro (1927).

Em 1929, honrando a tradição familiar, ingressou na Faculdade de Direito do Catete, futura Faculdade Nacional de Direito e atual Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Durante o curso de Direito, passou a trabalhar como jornalista. Como repórter do Diário de Notícias, jornal de grande expressão social e econômica, não apenas no Rio de Janeiro mas em todo Brasil, acompanhou inúmeros julgamentos criminais, dando-lhes cobertura profissional. Nessa quadra da vida assistiu a julgamentos que o impressionaram de maneira significativa. Viu atuar na tribuna da defesa o grande Evaristo de Morais – pai do saudoso Evaristo de Morais Filho, que pontificou na defesa de Fernando Collor.

Foi assistindo a grandiosos debates perante o Tribunal do Júri do Rio de Janeiro que Evandro Lins e Silva tomou ciência de que o seu destino estava traçado. Ele mesmo confessa no livroO salão dos passos perdidos: “(…) fiquei fascinado por aquilo! Achei que encontrava ali o meu caminho.”

Após cursar apenas três anos da faculdade, em 1932, Evandro bacharelou-se em ciência jurídicas e sociais. Desacertos e confusões ocorridas no plano educacional brasileiro permitiram que ele fosse aprovado duas vezes por decreto.

Apesar do encurtamento do currículo escolar, o sangue de advogado criminalista corria-lhe nas veias. Evandro não perdeu tempo: em 1932 estreou na tribuna do Júri, defendendo um réu pobre, alcunhado de Pitombo. Pouco antes, havia auxiliado um rábula na defesa de um homicida denominado Otelo, coincidentemente – fazendo jus ao nome – autor de um crime passional.

Não tardou em ser reconhecido como talentoso profissional, mas a caminhada era árdua, principalmente porque, sem tardança, montou sua própria banca, numa época em que as causas criminais compensadoras eram raríssimas. Entretanto, graças à versatilidade cultural e os primorosos dotes oratórios, seu prestígio foi crescendo. Com o advento do Estado Novo e do famigerado Tribunal de Segurança Nacional, verdadeiro órgão de perseguição daqueles que discordavam da ditadura de Vargas, Evandro passou a atuar ali como dativo.

Ao defender presos e acusados políticos, despontava no espírito de Evandro seu amor à independência de opinião e à liberdade política. Não foi por acaso que, anos mais tarde, seria um dos fundadores do Partido Socialista Brasileiro, juntamente com João Mangabeira, Rubem Braga, Joel Silveira e tantos outros, impulsionados por ideais socializantes.

Com a redemocratização do país, em 1945, já ancorado no prestígio conseguido brilhantemente na defesa de perseguidos políticos da ditadura getulista, firmou-se definitivamente como grande advogado criminalista. O Rio de Janeiro tinha uma plêiade de grandes nomes atuando no Tribunal do Júri, dentre os quais se destacavam Romeiro Neto, na tribuna da defesa, e Roberto Lyra como promotor.

Prova inequívoca do mérito de Evandro foi ter sido convidado, em 1956, para lecionar na Faculdade de Direito do então Estado da Guanabara, onde permaneceu até 1961.

Foi exatamente nesse ano, data da controvertida renúncia de Jânio Quadros, que Evandro conheceu e se tornou amigo do presidente João Goulart. Jango, que sabia selecionar muito bem seus auxiliares, não deixou Evandro escapar-lhe. Nomeou-o Procurador Geral da República, Chefe da Casa Civil, Ministro das Relações Exteriores e, finalmente, Ministro do Supremo Tribunal Federal – cargo em que foi compulsoriamente aposentado na companhia de Hermes Lima e Vítor Nunes Leal pela ditadura militar, que grassou no país a partir de 1964.

Homem independente e corajoso, Evandro, quando foi Ministro das Relações Exteriores não se curvou aos caprichos norte-americanos, que, a pretexto de evitar a expansão do comunismo, fomentou a instituição de regimes ditatoriais. A firmeza de Evandro em favor do regime democrático e da autodeterminação dos povos foi tão expressiva que o Secretário de Estado norte-americano, Dean Rusk, disse que “as dificuldades de relacionamento com o Brasil estão no Ministro Evandro Lins e Silva. Ele é antiamericano.” Nada menos exato: ele era socialista e democrata; sonhava com um mundos menos injusto e mais humano. Quanto a isso posso dar o meu aval, por conta dos quatro anos de convivência com ele no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

Após a injusta aposentadoria, voltou à advocacia criminal, para consolidar ainda mais o prestígio do passado. A sua atividade perante o Tribunal do Júri foi marcada pela absolvição de Doca Street e de José Rainha, então líder do MST, acusado de homicídio e condenado num primeiro julgamento, com outro advogado, a 26 anos de prisão. Politicamente, não estava adormecido, tendo participado ativamente do impeachment do presidente Collor.

Escreveu numerosos trabalhos relacionados com o direito penal, processo penal, ciência penitenciária e a autobiografia. Merecem destaque especial seu livro A defesa tem a palavra(1991), com o subtítulo parentético (o caso Doca Street e algumas lembranças), dois livros de memórias: Arca de guardados (1995), contendo discursos, prefácios e pronunciamentos, eO salão dos passos perdidos (1997), reprodução de minucioso depoimento autobiográfico prestado entre 1994 e 1995 ao Centro de pesquisa e documentos de história contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas, no qual relata sua carreira, desde a agrura do noviciado, sua passagem pelo jornalismo até os momentos auspiciosos nos tribunais.

Em 1998 passou a integrar a Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira nº 1, cujo patrono é Adelino Fontoura.

No dia 12 de dezembro de 2002, no pátio do Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, Evandro sofreu uma queda, batendo fortemente a cabeça ao chão. Apesar de prontamente atendido e hospitalizado, faleceu cinco dias depois. Momentos antes havia recebido o Prêmio Nacional de Direitos Humanos e as condecorações que lhe haviam sido cassadas pela ditadura militar; havia, também, sido nomeado Conselheiro da República.

Morria um brasileiro ilustre; defensor intransigente da justiça, igualdade social e independência do Brasil. A saudade vai perdurar para sempre, merecendo ser lembrado como guardião da honra brasileira.

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*Tales Castelo Branco é advogado criminal, da banca Castelo Branco Advogados Associados. Ex-presidente do IASP,  foi vice-presidente nacional da OAB (1990/91). Professor da Escola Superior de Advocacia da OAB/SP, na área de Direito Penal e Processo Penal (1998/2000). Presidente do Conselho Curador da Escola Superior de Advocacia da OAB/SP, conferencista e docente da Escola Paulista de Direito.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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