BUSCA DO EQUILÍBRIO
“É mais fácil quebrar o sigilo do que fazer diligências”
Em um tribunal marcado pela excessiva tolerância com denúncias do Ministério Público Federal em grandes operações da Polícia Federal — recentemente derrubadas pelo Superior Tribunal de Justiça —, a desembargadora Maria Cecília Pereira de Mellodestoa. Garantista convicta, defende posições nem sempre consensuais em uma corte considerada dura.
Entre outras controvérsias, ela é favorável à concessão de pena alternativa a estrangeiro condenado por tráfico no Brasil. A postura é polêmica, já que penas substitutivas, como a prestação de serviços, dependem de documentação regular no país, o que nem sempre o detido tem. “Eles podem cumprir pena alternativa nos países de origem, havendo ou não tratado entre os países. É só viabilizar a prestação de contas do cumprimento da pena via consulado, por exemplo. O que não se pode é suprimir garantias constitucionais discriminando o estrangeiro”, diz.
Cecília é autora de inúmeras decisões contra trapalhadas da Polícia Federal chanceladas pela Justiça em primeiro grau. No ano passado, considerou ilícitas provas colhidas em clientes do escritório de advocacia Oliveira Neves durante a operação Monte Éden, que em 2005 investigou esquema de evasão de divisas via off shores. Segundo a decisão, os mandados de busca e apreensão, que visavam informações de clientes do escritório não envolvidos na investigação, foram genéricos e não específicos, gerando invasões ilegais e provas ilícitas, uma vez que violadoram sigilo profissional dos advogados. Mais de 200 empresas receberam a visita dos policiais.
Foi também relatora de decisão da 2ª Turma do tribunal que declarou inepta denúncia do MPF contra funcionários da empresa Kroll, acusados de espionar inimigos de Daniel Dantas, ex-dono do banco Opportunity. A denúncia se baseou na operação Chacal, da Polícia Federal, deflagrada em 2004. Para a Turma, os equipamentos apreendidos que, segundo a investigação, serviriam para grampear ligações, foram classificados pela perícia judicial como detectores de grampos telefônicos e, portanto, não ligavam os acusados a crimes.
“Polícia, Ministério Público e Judiciário não podem cometer ilícitos ou irregularidades na investigação, que podem levar à anulação do processo e ao descrédito”, defende Cecília. Ela recebeu a ConJurem seu gabinete para conceder entrevista para o Anuário da Justiça Federal 2012, lançado nesta quarta-feira (29/2) no STJ. “O único que não pode cometer erros é o juiz.”
Seu apego à legalidade nas investigações a levou a libertar acusados presos na operação Castelo Areia, deflagrada contra um suposto esquema de desvio de verbas públicas envolvendo executivos da construtora Camargo Corrêa. A operação foi anulada pelo STJ no ano passado devido a irregularidades nas provas. Quando o processo chegou a suas mãos, Cecília Mello constatou que tanto o MPF quanto o juiz da causa, Fausto Martins De Sanctis — hoje desembargador —, omitiram a informação de que uma delação premiada fundamentava as acusações e era objeto de procedimento diverso não revelado aos réus, e que não existia uma denúncia anônima, como constava da peça acusatória ofertada pelo MPF e recebida pelo juiz. “A omissão manteve a defesa longe da real apuração e a jurisprudência é pacífica no sentido de que o réu tem o direito, para que possa se defender, de conhecer todos os termos de eventual delação premiada que contra ele possa existir. E mais: a denúncia ofertada pelo MPF deve revelar os fatos tais como realmente existam. Uma defesa só pode se basear em uma acusação real e concreta”.
Cecília também mostrou habilidade ao costurar um acordo entre a Caixa Econômica Federal e mutuários do Conjunto Habitacional Nova Poá, em Poá, na grande São Paulo. Mudanças no Sistema Financeiro de Habitação levaram a uma revisão de dívidas que desconsiderou valores já pagos pelos mutuários, multiplicando o saldo devedor. No ano passado, uma audiência de conciliação do interesse de aproximadamente três mil moradores terminou em acordo entre o MPF e a Caixa, pelo qual os mutuários tiveram direito a nova perícia para reavaliação dos imóveis e a descontos de até 43% do valor da dívida, com refinanciamento dos imóveis.
Empossada no tribunal pela porta do quinto constitucional da advocacia, Cecília Mello fez carreira na Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo. Ainda na faculdade, estagiou no escritório Pinheiro Neto Advogados. Foi o segundo emprego na área. Antes, passou pelo escritório França Ribeiro e Almeida Advogados, em São Paulo. No Pinheiro Neto, ficou por pouco tempo. Saiu antes de terminar o curso na PUC-SP, em 1984. Um ano depois, passou no último concurso público em que os procuradores paulistas poderiam advogar de maneira privada paralelamente à função pública. Em 2003, foi escolhida pelo presidente Lula na lista tríplice de indicados pela OAB para vaga de desembargador do TRF-3.
Segundo levantamento do Anuário da Justiça Federal 2012, que traz o perfil dos desembargadores dos cinco tribunais regionais federais do país, para Cecília Mello, o conceito de participação em “organização criminosa” é aplicável no Brasil mesmo sem que essa expressão esteja especificamente conceituada na lei penal, uma vez que o Código Penal prevê os delitos de quadrilha ou bando e associação para o tráfico. Em seus julgamentos, não aplica o princípio da insignificância nos crimes de moeda falsa e apropriação indébita, sendo que, neste último, concede perdão judicial quando os valores são pequenos. Segundo ela, antes de entrar com ação penal por crime tributário, o MPF precisa esperar o término do processo administrativo na Receita Federal se o contribuinte impugnar cobranças mesmo se informar em DCTF débitos não pagos. Porém, a impugnação deve tratar do valor principal da dívida, e não apenas de acréscimos, situação em que o devedor precisa depositar em juízo o valor do principal para não ser denunciado por sonegação.
Leia a entrevista no Consultor Jurídico