Frustração?

Na sessão de ontem, do Pleno, apresentei voto-vista, em face de um Mandado de Segurança, envolvendo questões afetas a concursos públicos.

O voto foi longo e, por isso mesmo, instigante e reflexivo; diria mesmo que foi provocativo, no sentido de estimular o debate acerca de questões relevantes, à luz do pós-positivismo.

Para minha frustração, no entanto, não tive a capacidade de mobilizar os meus pares para as reflexões que fiz, todas fincadas no modelo constitucional atual, de feição diamentralmente oposta ao estabelecido no  Estado Liberal Clássico, instituído após a revolução francesa.

Eu compreendo que a incapacidade foi  minha e não dos meus colegas, todos preparados para um debate dessa envergadura.

Do voto apresentado apanho os seguintes fragmentos, para reflexões do leitores deste blog:

[…]Nessa senda, importa assinalar, para real compreensão dos argumentos aqui esgrimidos, que o Poder Judiciário, em casos que tais, só decidirá bem se, permissa venia,  assumir definitivamente,  uma posição que seja compatível com o Estado Democrático de Direito; Estado que, todos sabemos,  não tolera decisões arbitrárias, gestadas à luz de pré-compreensões equivocadas e distanciadas do momento de plenitude constitucional pelo qual passamos, fruto de uma luta renhida travada contra a intolerância e o arbítrio.

Uma decisão, qualquer que seja, que se limitar a preterir um direito diante da simples alegação de que, por exemplo,  o Edital é a lei do concurso, sem qualquer outro juízo de ponderação, se distancia do Estado Constitucional, envolvido nos dias presentes pela atmosfera teórica e ideológica do denominado neoconstitucionalismo,  para, perigosamente, permissa máxima vênia outra vez, flertar com o Estado Liberal Clássico, instituído após a revolução francesa, que, todos sabem,  sublimava, a toda evidência, o princípio da legalidade, a serviço da burguesia, aviltada em face do poder absoluto do rei.

Nunca é demais repetir, ao ensejo dessa histórica reflexão, que o magistrado, no Estado Liberal, era um juiz mínimo, um mero longa manus da lei, diferente do que ocorre nos dias presentes, em face das bases constitucionais atuais, fincadas  em uma nova matriz espistemológica  do direito, consistente na compreensão de que a Constituição é a norma que irradia os seus  efeitos por todo ordenamento jurídico, dela se destacando o magistrado como protagonista na tarefa de interpretá-la.

O pensamento, de matriz liberal, de vincular o juiz à lei, tendo em vista o mito de que o legislador produz o texto e o sentido do texto, cai por terra. Com isso, tendo em vista não ser recomendável, nos dias presentes, que a atuação do juiz se restrinja à lei, e tendo em vista a abertura hermenêutica oriunda do neoconstitucionalismo, a existência de cláusulas gerais e conceitos indeterminados nas leis e princípios, o juiz passa a ter uma conduta muito mais reflexiva e crítica, convindo grafar que não estou advogando o ativismo judicial, que, sabemos, é outra coisa bem diferente[…].

Noutros fragmentos:

“[…]Diante das enormes diferenças entre o modelo atual e o Estado liberal, não é difícil compreender a guinada que a atividade jurisdicional e a atuação do juiz sofreram nos dias presentes.

O juiz, no modelo atual, tem o dever de confrontação de valores e deve recorrer, sempre que necessário, a outros recursos, como a ponderação de princípios e a adoção de critérios de proporcionalidade e razoabilidade nas suas decisões.

Nessa perspectiva, remarco, para ilustrar,  que a ideia de Kelsen ( e de Gustav Radbruch)e que toda norma legal é direito, sem consideração de seu conteúdo, foi duramente combatida no pós-guerra, tendo sido atacada como responsável pela legitimação dos regimes autoritários que tiveram lugar em várias nações durante o século XX.

Com o mesmo propósito, consigno a afirmação de Gustavo Zagrebelsky– multicitado pelos principais pensadores brasileiros – de que, atualmente, o positivismo jurídico não constitui mais que uma inércia mental ou um puro e simples resíduo histórico ( Derecho Dúctil)

Noutros excertos:

[…]Trazendo as reflexões para o caso concreto, reafirmo, sem temer pelo excesso, que não se pode, nos dias atuais, com o modelo implantado com a CF de 1988,  decidir uma questão com essa complexidade, com a simples conclusão de que o edital, como lei do concurso, deve prevalecer, espancando, defenestrando, às claras ou à sorrelfa,  qualquer reflexão que se mostre mais consentânea com o Estado Democrático de Direito.

Não se pode olvidar que, no atual período pós-moderno, com a relativização do positivismo, a conciliação e a convivência entre princípios se traduzem em um dos assuntos mais relevantes do Estado Democrático de Direito, convindo anotar que  não obscureço que a busca do positivismo é pela segurança jurídica. Não se pode perder de vista, inobstante, que o excesso de positivismo para descambar para o autoritarismo.

Não se pode esquecer, de mais a mais, a contribuição do realismo jurídico, um dos mais importantes movimentos teóricos do direito no século XX, para superação do formalismo jurídico e da crença equivocada, mas intrometida  e enraizada entre nós, de que a atividade judicial seja mecânica, acrítica e unívoca.

Nessa linha de argumentação, convém anotar que, no exame de questões desse matiz, diante da inviabilidade da formulação de um juízo de subsunção, em face de suas peculiaridades,  os princípios – como espécies de normas jurídicas, repito – despontam com singular importância, daí a razão pela qual antecipei algumas reflexões acerca do tema.

É necessário, repito, flexibilizar a quase axiomática afirmação de que o edital é a lei inquebrantável do concurso, e que, nesse viés, compatibilizá-la, dependendo das circunstâncias, com a nova ordem constitucional, seria afrontar o princípio da legalidade.

O edital é, sim, a lei do concurso. Mas nada impede – antes, há situações em que a lógica e o bom senso recomendam –  que, em determinados casos, como o que ora discutimos, que essa máxima seja flexibilizada, como, aliás, tem sido feito nesta mesma Corte.

Se o edital é a lei do concurso, então como tal deve ser interpretada. É o papel do intérprete dar-lhe sentido, exprimir a sua vontade. Não como um autômato, como se dava, repito, no Estado Liberal da burguesia, onde assumia a neutralidade de um matemático quando resolvia um problema algébrico.

Não se pode quebrantar a compreensão hermenêutica do sistema jurídico. O processo interpretativo não pode ser apenas reprodutivo Não nos é permitido, nos dias presentes, inviabilizar a descoberta da vontade da lei, ficando indiferente ao conceito de justiça, em tributo à segurança jurídica inspirada no Estado Liberal Clássico. 

Convém grafar que a flexibilização do edital, enquanto lei do concurso,  não é um equívoco; uma heresia jurídica não é, como pode parecer aos olhos dos normativistas[…]”

Mais adiante:

“[…]Vivemos novos tempos. Vivemos a expansão do  pós-positivismo,  que decorre da busca incessante e frenética para superar a dicotomia jusnaturalismo-positivismo jurídico, para fixar o entendimento de que deve-se, na busca incessante pela justiça, ir além da legalidade estrita, sem desprezar, no mesmo passo, o direito posto.

Nos dias presentes, já não se concebe a lei – e tão somente a lei – como valor-guia para realização do direito justo. E digo mais: não se encontrará, no positivismo jurídico, por mais profunda que seja a análise, ainda que se vá à exaustão, solução para o caso em análise, pela singular conclusão de que só um juízo de ponderação nos levará à decisão que mais se harmoniza com a atual ordem constitucional.

Só recorrendo aos princípios, próprios de um sistema aberto como o nosso, se encontrará solução justa para o caso sub examine, visto, sob a minha ótica, como um verdadeiro hard case, vez que, como antecipei algures, a solução não está na lei, mas nos princípios.

Entendo, e agora defino, definitivamente, a minha posição, que alijar o impetrante de um concurso, para o qual concorreu com destaque, pela sua competência,  em face de uma simples formalidade,  é espezinhar o Estado Democrático de Direito, mesmo porque o que mais interessava, em face das exigências contidas no edital, foi respeitado. É dizer: ainda que a fora de tempo o impetrante provou não ter antecedentes criminais, tendo, antes, demonstrado, quantum satis,  a sua real capacidade intelectual para o exercício do cargo para o qual concorreu democraticamente.

O rigor formal nem sempre é o melhor caminho, conquanto deva admitir que é o mais cômodo, como cômodo  apostar na divindade do legislador ou na infalibilidade do pai Tribunal, daí a razão pela qual, na decisão de casos dessa relevância, pode-se, sem um exame mais acurado, à luz dos cânones constitucionais,  a demandar maior esforço intelectual, decidir com base em axiomas equivocados ou em decisões que, por serem de um órgão superior, podem parecer – mas só parecem – mais acertadas.

Entendo que nós do Poder Judiciário do Maranhão, podemos, sim, ante casos dessa natureza, construir a nossa própria história. Muitas vezes, no entanto, por apego excessivo à lei, temos deixado o bonde da história passar, como tem ocorrido, por exemplo, no caso das contratações temporárias, contra as quais alguns de nós temos nos insurgido, todavia em número insuficiente para fazer valer os valores constitucionais[…]”

Atenção: No voto, diferente dos excertos que publico acima, estão declinados os nomes dos autores nos quais me louvei para formulação da minha linha de argumentação.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

3 comentários em “Frustração?”

  1. Desembargador,

    parabéns pelo excelente voto. Acho que o senhor deveria publicar o voto por completo.

    Quanto ao mérito, apenas a título de argumentação, discordo do senhor em alguns aspectos, mas acredito que o interessante é o debate de pontos de vista.

    Na esteira de Lênio Streck, as teorias da argumentação, sob o pretexto de ultrapassar o positivismo, apresentando-se como uma “terceira via” ao binômio jusnaturalismo-positivismo, restaram por deixar intocado um ponto crucial, a meu ver, que o positivismo também não tocou: a discricionariedade judicial. Enquanto que, no positivismo, a discricionariedade judicial apenas era aceita em caso de “lacuna na lei” (analogia, costumes e princípios gerais do direito – art. 5º da antiga LICC); as teorias da argumentação acabam por deixar todos os casos ao arbítrio do juiz, porque centralizam a decisão na ponderação de normas, o que, na verdade, é retórica, no exato termo dito por Chaim Perelman. Por isso, a meu ver, o momento próprio para ponderações é o momento da feitura da norma jurídica (Congresso ou Administração). No caso em análise, creio que o momento correto para ponderação seria a feitura do edital.

  2. Prezado Desembargador,
    Todo processo de mudança, sobretudo de pensamento que inevitavelmente reflete no comportamento humano é lento e exige profundas reflexões e grandes debates.
    No caso em apreço, Vossa Excelência defende a necessidade premente de mudança com relação a atuação daqueles julgadores que insistem em permanecer “engessados” à letra fria da lei, sem qualquer esforço hermenêutico mais ousado.
    Concordo com vosso posicionamento, de convocar seus pares a fazerem um grau mínimo de esforço para libertarem-se destas amarras, que impedem o avanço de decisões judiciais importantes ao crescimento comportamental da sociedade, contudo Excelência, paradoxalmente, nós advogados militantes na área criminal, nos sentiríamos aliviados caso os julgadores criminais estivessem totalmente vinculados, sintonizados e fossem até escravos da lei penal, pois desta forma evitaríamos decisões arbitrárias com relação à liberdade humana; os presídios não estariam abarrotados, servindo de fábrica de aliciadores de pessoas de bem ao crime e aperfeiçoamento de bandidos; evitaríamos destruição de lares e de famílias, enfim Desembargador, evitaríamos tantas frustrações…
    Sâmara Braúna
    Advogada da Serejo & Braúna Advogados e Associados

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