A flexibilização da regra editalícia

A baixo, publico mais excertos do voto que proferi, em face de um MS, a propósito do tema flexibilização da regra editalícia, à luz do pós-positivismo.

“[…]É um rematado equívoco, data máxima vênia, nos dias atuais, desembocar numa ideologia conservadora que identifica a legalidade como valor-guia, em face da crença na divindade do legislador.

Vivemos novos tempos. Vivemos a expansão do  pós-positivismo,  que decorre da busca incessante e frenética para superar a dicotomia jusnaturalismo-positivismo jurídico, para fixar o entendimento de que deve-se, na busca incessante pela justiça, ir além da legalidade estrita, sem desprezar, no mesmo passo, o direito posto.

Nos dias presentes, já não se concebe a lei – e tão somente a lei – como valor-guia para realização do direito justo. E digo mais: não se encontrará, no positivismo jurídico, por mais profunda que seja a análise, ainda que se vá à exaustão, solução para o caso em análise, pela singular conclusão de que só um juízo de ponderação nos levará à decisão que mais se harmoniza com a atual ordem constitucional.

Só recorrendo aos princípios, próprios de um sistema aberto como o nosso, se encontrará solução justa para o caso sub examine, visto, sob a minha ótica, como um verdadeiro hard case, vez que, como antecipei algures, a solução não está na lei, mas nos princípios.

Entendo, e agora defino, definitivamente, a minha posição, que alijar o impetrante de um concurso, para o qual concorreu com destaque, pela sua competência,  em face de uma simples formalidade,  é espezinhar o Estado Democrático de Direito, mesmo porque o que mais interessava, em face das exigências contidas no edital, foi respeitado. É dizer: ainda que a fora de tempo o impetrante provou não ter antecedentes criminais, tendo, antes, demonstrado, quantum satis,  a sua real capacidade intelectual para o exercício do cargo para o qual concorreu democraticamente.

O rigor formal nem sempre é o melhor caminho, conquanto deva admitir que é o mais cômodo, como cômodo  apostar na divindade do legislador ou na infalibilidade do pai Tribunal, daí a razão pela qual, na decisão de casos dessa relevância, pode-se, sem um exame mais acurado, à luz dos cânones constitucionais,  a demandar maior esforço intelectual, decidir com base em axiomas equivocados ou em decisões que, por serem de um órgão superior, podem parecer – mas só parecem – mais acertadas.

Entendo que nós do Poder Judiciário do Maranhão, podemos, sim, ante casos dessa natureza, construir a nossa própria história. Muitas vezes, no entanto, por apego excessivo à lei, temos deixado o bonde da história passar, como tem ocorrido, por exemplo, no caso das contratações temporárias, contra as quais alguns de nós temos nos insurgido, todavia em número insuficiente para fazer valer os valores constitucionais.

Retomo o tema central dessas reflexões para fazer um indagação: o impetrante, ao acostar certidão exigida pelo edital, ainda que a destempo, deixou de cumprir a regra editalícia ou apenas descumpriu uma formalidade?

Do meu ponto de observação, a partir de uma análise que faço à luz dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, entendo que o impetrante cumpriu, sim, a exigência do edital. Resposta diversa, peço vênia, só a partir de uma análise puramente literal do texto. É dizer, em outras palavras: se for privilegiada a forma em detrimento dos fins.

Compreendo que se o impetrante, de ma-fé, por saber-se possuidor de maus antecedentes, tivesse tentado, com a certidão acostada (de um Tribunal Federal e não da secção judiciária),ludibriar os membros da Comissão, aí, sim, não poderia argumentar sobre a possibilidade de  flexibilização do princípio da legalidade.

Compreendo que se o fim, o objetivo do concurso público é escolher, democraticamente, os melhores, seria um rematado e inominável equívoco alijar um dos melhores quadros, com enorme perspectiva de realizar um serviço de excelência, pelas sua reconhecida qualificação profissional, em conta de um detalhe irrelevante para os fins colimados no certame.

Nenhum de nós terá condições de explicar, ao mais leigo dos mortais, que uma Comissão de Concurso deixou de aprovar um dos mais destacados candidatos,com a chancela do Poder Judiciário, apenas porque acostou uma certidão a destempo, sem que tivesse agido de má-fé.

Não se pode esquecer a busca da justiça em troca de uma formalidade, a qual, muitas vezes, sob a aparência de rigor científico, reduzem o direito a uma superficialidade mesquinha, como ensina Dalmo Dallari, segundo o qual essa concepção do direito é conveniente para quem prefere ter a consciência anestesiada e não se angustia com a questão da justiça, ou então para o profissional do direito que não quer assumir responsabilidades e riscos e procura ocultar-se sob a capa de uma aparente neutralidade política. Os normativistas, arremata o insigne mestre, não precisam ser justos, embora muitos deles sejam Juízes.( O poder dos juízes, 1996).

O juiz, para ser independente, tem que ser capaz de decidir sem sujeição ao que dizem os Tribunais, sabido que uma decisão vale pelo que ela tem de boa e não porque foi proferida por esse ou aquele tribunal.

O juiz justo não é um repetir acrítico e autofágico de decisões; mesmo que sejam as suas próprias decisões, pois que ele deve estar sempre preparado para evoluir, dissentindo, se necessário, até mesmo do entendimento do nosso Sodalício maior.

Compreendo – e aqui é uma autocrítica que faço em face de algumas posições que assumi no passado – que somente um juiz inseguro e acrítico – como tantas vezes fui –  se sente confortável diante da vinculação normativa das decisões do Pretório Excelso, pois que, assim o fazendo, sem sequer esboçar uma tênue reação crítica, ele se constitui num mero e acomodado burocrata repetidor de decisões alheias.

Os Tribunais, todos sabem, têm defeitos e virtudes, razão pela qual deles emergem decisões preciosas que devem ser seguidas, e outras nem tanto.

Faço essas ponderações para dizer que a mim, na formação da minha convicção, em face do caso sub examine, pouco importa se eu próprio tenha, noutra época, me aliado, acrítica e, quiçá, comodamente,  ao  argumento de que o edital é a lei do concurso, seguindo uma linha de entendimento que privilegia a lei do menor esforço, numa ação (ou inação) entorpecedora da minha criatividade.

O magistrado, tenho a mais empedernida convicção, tem que proferir as suas decisões, como o faço agora, com sentimento ( daí a etimologia da palavra sentença, que vem de sententia, que significa sentir) , para que não se transforme num mero burocrata repetidor de decisões alheias, numa cruel e perigosa inibição criativa[…]”

Anoto que, no voto, estão mencionados os créditos dos autores das citações.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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