Comissão de especialistas inicia revisão da lei que define crimes e penas; risco agora é o Congresso reincidir no seu populismo habitual
Depois da Constituição, o Código Penal é a mais importante peça jurídica. É ele que define os limites de fato à liberdade individual e estabelece quando o Estado está autorizado a exercer violência contra o cidadão, encarcerando-o.
Nesse contexto, o código atual, com quase 72 anos e desvertebrado por dezenas de emendas, raramente pautadas pela sabedoria, representa grave deficiência. São bem-vindas, portanto, as medidas do Congresso para reformar diploma tão fundamental.
Especialmente oportuna foi a iniciativa do Senado de convocar especialistas para redigir um anteprojeto, já quase concluído, que será submetido ao Legislativo. A missão mais fundamental da comissão foi resgatar a proporcionalidade entre delitos e penas.
Em teoria, esse deve ser o princípio básico a fundar qualquer código. No Brasil, contudo, os ventos de décadas de populismo penal vergaram essa estrutura.
Ao sabor da repercussão que os crimes alcançavam nos meios de comunicação, parlamentares conferiram penas dilatadas a delitos de menor potencial ofensivo, o que acabou por banalizar os ilícitos realmente graves.
À parte corrigir absurdos similares e restaurar alguma coerência entre delitos e penas, a comissão conseguiu também chamar a atenção para problemas que os parlamentares preferem não abordar. Foi assim que o anteprojeto incorporou propostas liberalizantes para temas tabu como aborto, eutanásia e drogas. Lamentavelmente, é pouco provável que as sugestões dos especialistas encontrem guarida num Congresso conservador como é o brasileiro, mas não há dúvida de que é preciso avançar.
Esta Folha defende a ampliação dos casos em que o aborto pode ser realizado, bem como a descriminalização do uso de entorpecentes. Considera, ainda, que a comissão encontrou fórmula boa ao descriminalizar explicitamente a ortotanásia (descontinuação de tratamento fútil) e reduzir a pena da eutanásia (em que o agente provoca a morte do paciente terminal).
O grupo também apresentou inovações duvidosas, que talvez não sobrevivam ao debate. Uma delas é a responsabilização penal de pessoas jurídicas, que poderiam ser condenadas a construir casas populares, por exemplo, ou mesmo ter suas atividades suspensas.
Não são claras as vantagens da mudança. Empresas já podem ser responsabilizadas por muita coisa na esfera cível. Considerando que firmas não são agentes morais com vontade própria, é estranho condená-las em âmbito penal. Uma sentença condenatória pesada pode destruir uma marca, o que não interessa a funcionários, nem a acionistas e à sociedade.
Outra sugestão que deve ser recebida com desconfiança é a de estender o tipo penal de corrupção a relações entre particulares. Agentes de empresas privadas que exigissem, aceitassem ou recebessem vantagem indevida, bem como as pessoas que a oferecessem, estariam sujeitos a penas de prisão.
A intenção parece boa, mas amplia em demasia o poder do Estado de interferir na vida do cidadão com a mão pesada do direito penal. Empresas e usuários já encontram nas justiças cível e trabalhista os meios de defender-se.
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