“A toga gostou dos meus ombros”
Gilberto de Mello Kujawski
Caro ministro Ayres Britto, nesta hora da despedida até sempre estamos lendo seu rosto. Sua fisionomia é dominada por uma ponta de malícia. Não a malícia vulgar dos espertos, mas a malicia superior da experiência da vida com sua carga de contradições, a malícia Zen dos sábios.
Os traços da sua fisionomia completam a mensagem de suas palavras, sempre densas, despedidas num relâmpago de presença de espírito e deslumbramento lírico.
Que nos ensina a comunicação silenciosa desta sua máscara tão sergipana e tão brasileira? Em primeiro e último lugar nos ensina que não basta enxergar a árvore isolada, sem vislumbrar a floresta na qual ela se ergue. Porque nada é estanque no mundo, e por se comunicarem entre si é que as coisas se constituem num mundo ou universo.
Em segundo lugar, ensina-nos que nossa missão, a de cada um de nós, é ligar coisa com coisa e todas elas conosco. O que só é possível com o amor. Recorda um grande filósofo que, segundo Platão, o amor é um divino arquiteto que baixa ao mundo para que tudo no universo viva em conexão. Enquanto o rancor separa, nega, agride, o amor soma, completa, afaga.
Como homem, como juiz e presidente do Supremo, V.Exa. não tem feito outra coisa, senão somar sem confundir, completar sem adulterar, e afagar sem adular. Viver “em estado de amor” constitui o imperativo de toda sua vida. Mas que ninguém se iluda com sua doçura de palavras e de maneiras. Pois seu segundo mandamento é este: Fortiter in re, suaviter in modo (enérgico na coisa, brando no estilo).
Ou em tradução mais livre: pulso de ferro em luva de pelica. Esta é outra lição que transpira de seu semblante.
Como se sabe, o direito não é nem pode ser uma ciência exata, como a matemática ou a física. Porque a matéria-prima do direito são as coisas humanas, e as coisas humanas são essencialmente variáveis e incertas, e não cabem em nenhuma fórmula numérica. Mas o fato de não ser ciência exata não impede que o direito seja ciência intransigentemente rigorosa. Na medida em que não exclui nenhuma circunstância objetiva ou subjetiva, intrínseca ou extrínseca do fato em causa. A decisão do magistrado será sumamente rigorosa na medida em que inclui, em que dá conta da mínima circunstância atinente aos fatos julgados.
Por isso mesmo, deve ser visto com reserva aquele princípio citado com tanta insistência por certo ministro, o digno ministro revisor: “o que não está nos autos não está no mundo.” Eis aí um critério a ser aplicado “cum grano salis”, expressão introduzida por Plínio, o Velho, que significa “com certa ressalva”.
Com efeito, os autos se constituem de textos. Os textos, por sua vez, são feitos de linhas e entrelinhas. Nas entrelinhas inserem-se outras fontes do direito somadas à lei, (que é a fonte formal), tais como os usos, a jurisprudência, e a doutrina. Nada disso consta dos autos formalmente, mas são fatores a serem levados em conta nos fundamentos da decisão. Coisas que não estão nos autos, embora estejam no mundo.
O ar sutilmente malicioso e os olhos atentos em profundidade do ministro Ayres Britto lembram como a rima certa que faltava ao verso, a sentença do nosso grande educador Paulo Freire, “a leitura do mundo precede a da palavra”. Não, não basta a destreza técnica para fazer o grande artista, humanista, pensador, político ou jurista. Sem a leitura do mundo, que se aprende vivendo e não na escola, nada se faz de grande.
Carlos Ayres Britto fez-se o grande jurista e humanista que é, porque antes de aprender a ler os autos aprendeu a ler o mundo com amor e em sua máxima plenitude.
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* Gilberto de Mello Kujawski é procurador de Justiça aposentado, escritor e jornalista