Poder da República tem que se dar o respeito
Ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, o jurista Francisco Rezek assinalou recentemente que só falta um congressista atravessar a praça dos Três Poderes para reclamar no Supremo que lhe negaram a palavra ou não colocaram um projeto seu em votação.
A exorbitância de questões que senadores e deputados têm suscitado para que o Judiciário dirima querelas internas, a maioria peculiares aos regimentos das duas casas do Congresso, demonstra que o Parlamento perde a noção de sua independência. Em vez de resolver intramuros suas divergências protocolares, recorre à arbitragem de outro Poder.
Nestes dias, quando se debate se o Supremo tem o poder de cassar mandatos de deputados condenados, parlamentares conseguiram uma liminar, concedida pelo ministro Luiz Fux, para suspender uma decisão do Congresso que deu prioridade à apreciação de veto presidencial a pontos da nova lei de distribuição de royalties do petróleo.
O mandado de segurança foi ajuizado por um deputado do partido do governo, por convencido de que o veto seria derrubado pelo Legislativo e assim seu Estado, o Rio de Janeiro, perderia os bilhões de reais que recebe pelas regras em vigor.
Ocorre que a nova planilha de distribuição dos royalties entre a União, Estados e municípios foi aprovada por maiorias amplas e soberanas. No Senado, em votação simbólica, com a oposição da bancada fluminense e de mais três senadores. Na Câmara, por 286 votos a favor e 124 contra. A proporção elevou-se na votação do pedido de urgência para a apreciação do veto presidencial: 60 a 7 no Senado, 348 a 84 na Câmara.
Poder popular por excelência, talvez nossas casas legislativas estejam minadas por uma pulverização que vai além das duas dúzias de partidos nelas representados. Mas as decisões são sempre fruto de negociação e disputa política inerentes ao Parlamento. Nada é imposto, tudo é pactuado para a formação de maiorias que assegurem, além da jurisdição legislativa, a força moral das normas legais que se impõem a toda nação. Nos confrontos entre partidos, até por imposição da etimologia, a unanimidade é exceção.
Se os derrotados recorrem amiúde ao Judiciário para ganhar na sentença do tribunal o que perderam no voto em plenário, são os primeiros a desrespeitar não só a autonomia do Legislativo como também a separação dos Poderes harmônicos e independentes que é a base do governo republicano.
Lideranças mais experientes, como o ex-presidente da República e atual presidente do Senado e do Congresso, José Sarney, apontam o perigo de atravessar a praça: “O problema é que estamos judicializando a política e politizando a Justiça”.
Os aventureiros que transitam entre Poderes distintos deveriam guardar na cabeceira o fecundo discurso que Rui Barbosa pronunciou na sessão do Senado de 5 de agosto de 1905. “Que faz o legislador, quando confere a um tribunal a missão de legislar?”, perguntou retoricamente o maior dos nossos jurisconsultos. Sua resposta: “Anarquiza o regímen”.
Rui observou que os Poderes têm “a sua competência taxada na lei fundamental. Desta deriva, para cada um dos três, a autoridade que exercita”. E arrematou: “Logo, dessa autoridade, nenhum deles se pode aliviar em outro”. Nem ceder nem usurpar atribuições constitucionais. Ainda segundo Rui, “delegar a terceiro poder as prerrogativas de outro é ato de invasão, esbulho e alienação do alheio”.
O Congresso deve atentar no axioma político de que o poder não admite vácuo. Depois, não se queixe de “ingerências”.
JOSÉ ROBERTO BATOCHIO, 67, é advogado. Foi presidente nacional da OAB (entre 1993 e 1995) e deputado federal pelo PDT (de 1998 a 2002)