Nada é mais absoluto: em determinado momento da vida, nós não seremos mais úteis; e, nessa condição de inutilidade, somos (?) todos descartáveis.
Por isso a indagação: quando não somos mais úteis, como devem proceder em relação à nossa pessoa? Devemos, pura e simplesmente, ser descartados, como se descarta um bagaço de laranja?
A verdade é que, enquanto as pessoas são úteis, elas tratados com alguma consideração e, às vezes, até fidalguia, sobretudo pelos que dependem delas.
Mas um dia chegará que, mesmo as pessoas mais próximas, nos verão como um peso difícil de ser carregado. Nesse cenário, pode surgir a singela ideia de livrarem-se de nós.
Lembro, a propósito, de Gregor Samsa, protagonista da novela Metamorfose, de Franz Kafka.
Gregor Samsa, antes da metamorfose, não tinha vida própria: vivia para a família, trabalhando a plena carga, como caixeiro viajante, pois todos dependiam dele.
Determinado dia, transformado num inseto, dá-se conta de sua inutilidade; inutilidade que leva a sua própria família a cogitar a sua morte.
É dizer: no momento de maior dificuldade, em face de sua transformação, Gregor, que tão útil tinha à família, descobre que não tem nenhum valor, passa a ser tratado como algo que deva ser descartado, sem mais demora.
A irmã de Gregor Samsa, diante do quadro, em determinado instante concitou os próprios pais a se livrarem do irmão metamorfoseado, o fazendo, fria e calculadamente, como entremostra o excertos abaixo transcrito, apanhado, in verbis, da novela de Kafka:
– Queridos pais – disse a irmã, dando à maneira de introdução um forte soco sobre a mesa – , isto não pode continuar assim. Se vocês não compreendem, eu percebo isso. Diante desse monstro, não quero nem mesmo pronunciar o nome do meu irmão; e portanto apenas direi isto: é forçoso tentar livrar-nos dele. Fizemos o que era humanamente possível para cuidar dele e tolerá-lo e não creio que ninguém possa fazer-nos a menor censura.
– Tens mil vezes razão – disse então o pai.
Mais adiante, fascinada pela ideia de se livrar do irmão metamorfoseado, ponderou, ademais:
-É preciso que ele se vá – disse a irmã. – Este é o único meio, pai. Basta que procures desfazer a ideia de que se trata de Gregor. O tê-lo acreditado durante tanto tempo é na realidade a origem de nossa desgraça. Como pode isto ser Gregor? Se assim fosse, já há tempos teria compreendido que não é possível que alguns seres humanos vivam em comunhão com semelhante bicho. E a ele mesmo teria ocorrido partir. Teríamos perdido o irmão mas poderíamos continuar vivendo e sua memória perduraria eternamente entre nós.
A metamorfose, de Kafka, nos induz a refletir sobre o comportamento humano e a indagar, nos mesmo passo: o que nós, leitores, numa situação semelhante, seríamos capazes de fazer? O ser humano, afinal, quando deixa de ser útil, sejam quais forem as razões, deve, pura e simplesmente, ser descartado?
Pense nisso!