O artigo que publico a seguir foi publicado neste blog e agora encaminhado do Jornal Pequeno, com reparos e acréscimos
O BOM INTÉRPRETE DOS ENUNCIADOS LINGUÍSTICOS
José Luiz Oliveira de Almeida*
O bom intérprete dos enunciados linguísticos, desde o meu ponto de observação, é aquele que tem, acima de tudo, consciência de suas circunstâncias, ou seja, que tem consciência de sua visão ideológica, das suas neuroses e frustrações; que sabe que no direito vigora o primado da relatividade; que sabe que ninguém carrega nas costas uma mochila cheia de verdades; que sabe, por isso mesmo, que uma decisão judicial tem que ser construída argumentativamente; que, sabe, portanto, que no mundo do direito não existe decisão prêt-à-porter; que sabe que o ponto de observação do intérprete faz toda diferença; que sabe que a neutralidade – entendida como distanciamento da questão submetida a intelecção – é uma inviabilidade antropológica; que sabe que um magistrado não é um ser sem memória, sem história e sem desejos; que sabe que, para decidir bem, o magistrado precisa fazer uma leitura moral do texto legal; que tem que ter consciência de que, não estando liberto do seu próprio inconsciente, a sua subjetividade haverá de interferir, ainda que minimamente, nos juízos de valor que formula; que não permite que a sua razão seja instrumentalizada; que sabe, noutro giro, que deve fazer uso crítico da razão; que sabe que, como sujeito do conhecimento, deve buscar, com sofreguidão, não fazer juízo equivocado da realidade, sob pena de emitir juízo de valor também equivocado; que sabe que o legislador formula o texto mas não é dono do seu sentido; que sabe, por isso, que quem dá sentido ao enunciado linguístico é o intérprete, ou seja, o sujeito cognoscente, mas que o magistrado, nessa condição, não pode se limitar a traduzir as “verdades” abrigadas no comando geral e abstrato da lei; que sabe que a lei, depois de publicada, rompe os seus vínculos com o seu criador e passa a ter sentido à luz das conclusões do seu intérprete; que, muitas vezes, é necessário, para decidir com justiça, superar a cultura positivista antes sedimentada e temperar a interpretação da lei com a filosofia moral; que sabe que a segurança jurídica está imbricada com a decisão judicial e não com norma em abstrato, daí o esforço intelectivo que deve ser feito, pelo magistrado, para bem interpretar o texto legal; que sabe que a moderna dogmática superou a ideia de que as leis possam ter sempre um sentido unívoco; que sabe que a interpretação da lei não é apenas um ato de conhecimento, de revelação do sentido da norma pré-existente, mas também um ato de vontade, de escolha de uma possibilidade entre as várias que se apresentam; que sabe que o conhecimento é próprio do homem, mas que nem todos os homens conhecem da mesma forma, daí as incongruências que decorrem dos mais diversos julgados, a fomentar insegurança jurídica; que sabe que o direito não pode ser uma loteria; que sabe que a letra da lei é apenas o ponto de partida da atividade hermenêutica e que, portanto, o direito não se esgota na literalidade das normas; que sabe que o direito, muitas vezes, deve ser interpretado evolutivamente, devendo o interprete, nesse sentido, conciliar velhas fórmulas com as exigências atuais; que sabe, ademais, que o juiz não nega a importância da lei, mas deve interpretá-la à luz de determinados valores morais, notadamente a dignidade da pessoa humana; que sabe que a dignidade da pessoa humana não é apenas um patrimônio pessoal, mas é, sobretudo, um patrimônio social; que sabe que é preciso superar o formalismo exagerado e criar uma cultura pós-positivista, consciente, sempre, de que a interpretação da lei deve ser temperada, como antes anotado, pela filosofia moral; que sabe que só a norma jurídica impõe limite ao poder desmesurado, e que interpretar, de mais a mais, é, fundamentalmente, um ato de vontade, que, não raro, resulta de influências de ordem psíquica, social e política; e que, finalmente, tem consciência de que no Estado de Direito a legitimidade de sua ação não é política, mas constitucional, e seu fundamento é, precipuamente, a intangibilidade dos direitos fundamentais. É isso!
É desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão
e-mail: Jose.luiz.almeida@globo.com
blog: www.joseluizalmeida.com