Nós, autoridades, não somos marginais.

 

Tenho dito, iterativamente, que nós, autoridades, não podemos, nunca, sob qualquer pretexto, nos nivelar aos meliantes. Os meliantes, por óbvias razões, não têm compromisso com a lei, com a ordem pública, com a moral, com a ética, com os bons costumes. Nós, diferente deles, assumimos o compromisso de fazer valer a lei. Nós, magistrados – sobretudo – temos compromisso com o garantismo penal. Nessa linha de argumentação, devo dizer que extrapola os limites do aceitável o magistrado que, ad exempli, trata o acusado com arrogância, que o intimida na sala de audiências, que o trata com descortesia, que arranca a fórceps uma confissão, que o trata como se marginal fosse – ainda que o seja, ainda que o fosse.

O acusado, numa sala de audiência, maltratado, submetido a humilhação, diz o que não deve dizer, confessa o que não pretendia confessar. De nada adianta, pois, a advertência de que o acusado não está obrigado a se autoacusar (nemo tenetur se detegere) se, ao longo do interrogatório, o juiz o pressiona psicologicamente. O juiz que assim procede, desde o meu olhar, não honra as vestes talares. O juiz tem que ter a capacidade de alcançar a verdade, sem escarnecer, sem fazer ameaças, sem intimidar o acusado – sem ferir a dignidade do acusado e a dignidade do cargo que exerce.

Essas notas preambulares decorrem das denúncias que recebi – estarrecedoras – em face da ação de uma determinada autoridade policial, que, tudo indica, torturou os indiciados – e até quem nada tinha a ver com o crime. Tenho dito que a polícia judiciária tem que formar bons profissionais e dar eles condições de trabalho de modo a possibilitar que esclareçam um determinado crime, sem que tenham que fazer uso da força, sem torturar, sem agredir com palavras, usando, tão-somente, a inteligência.

É verdade que muitos meliantes, em face mesmo do crime que cometeram, mereceriam, vivêssemos em sociedade primitiva, castigo igual ao que infligiram às vítimas – mas, se ocorresse, nos dias atuais, seria a consagração, pura e simples, da lei de talião: olho por olho, dente por dente.

Nós não fazemos parte de uma sociedade primitiva. Nos dias atuais já não se aceita a tortura como instrumento para alcançar a verdade. Se agirmos assim, nós nos nivelaremos ao pior dos meliantes.

Não é papel do agente público agir como agem os facínoras. O poder que a nós nos foi delegado nos impõe agir de acordo com o direito. Delegado e/ou Juiz que, para alcançar(em) a verdade, usa(m) do instrumento da tortura – física ou psicológica -, demonstra(m), à evidência, a sua incapacidade para o exercício do mister.

Muitas, incontáveis foram as verdades que já alcancei usando apenas a palavra, redargüindo, questionando, indagando, comparando, aproveitando-me das contradições do interrogado. Nunca usei o expediente da intimidação para alcançar a verdade.

O magistrado garantista não tem o direito de ameaçar o acusado, de bater na mesa, de agredir o acusado com palavras. Basta perguntar com inteligência que a verdade flui, assoma, mostra a sua cara – naturalmente. A menos que o acusado opte, de logo, pelo silêncio. Mas, nesse caso, há outras provas, máxime a testemunhal.

Nessa linha de pensar, devo dizer que me enoja, me causa asco imaginar que um agente do poder público possa se de sua condição, de suas prerrogativas, dos aparatos colocados às suas mãos, com o dinheiro do contribuinte, para intimidar, torturar, maltratar, humilhar. A autoridade que uso desses sórdidos expedientes se nivela ao pior dos marginais -e nós, autoridades, não somos, ou não deveríamos ser, marginais.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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