Não somos semideuses

Tenho testemunhado  a avalanche de críticas assacadas contra os membros da Suprema Corte do nosso país, em face de algumas decisões decorrentes do julgamento da famigerada AP 470. É como se os juízes  não fossem simples mortais, como todo e qualquer ser humano. É como se não tivessem o direito de errar. É como se os críticos não tivessem consciência de que, a toda hora, erramos todos, em quaisquer circunstâncias.

No julgamento da AP 470, o que se constata, o que se reafirma é tão somente o que todos sabemos, ou seja, que todos erramos, que todos os juízes erram, e que os erros independem da importância do Sodalício que os abriga, do nível intelectual ou da inteligência de quem prolata a decisão.

Erramos cá, erram ali, erram acolá, pela singela razão de que o magistrado, ainda que tenha sobre os ombros uma esquisita e aterrorizante capa preta, não perde a sua condição de gente, mesmo admitindo que entre nós existam os que pensam que são semideuses. Mas esses são os que se embriagam com o poder, os que pensam que tudo podem; são tolos, pobres de espírito, despreparados para o exercício do podes. Esses, logo, não contam. Esses erram de má fé; e aqui eu reflito em face dos que dignificam a toga, dos que erram porque, afinal, todos nós erramos.

No caso da AP 470, o que a diferencia das incontáveis ações penais que tramitam nos Tribunais, é que os réus são pessoas destacadas da sociedade, daí o alarido em face, por exemplo, de um simples erro material, que, afinal, é uma rotina nos julgamentos. Fossem simples mortais, ou seja, fossem os réus da AP 470 os verdadeiros destinatários das agências de controle, aqueles contra os quais se voltam os olhos das instâncias persecutórias, e não haveria tanto frisson, tanto alarido, tanto questionamento, tantas críticas, muitas das quais apaixonadas e partidárias – não são isentas, portanto.

A verdade é que, como um homem qualquer, nós, magistrados, também cometemos os nossos deslizes, os nossos pecados;  nos deixamos envolver, como qualquer mortal, pelas mesmas paixões, pelas nossas preferências e ideologias – e mesmo pelas nossas idiossincrasias, como qualquer outra pessoa, daí a constatação, desde sempre, de que não existe juiz neutro, conquanto todos procuremos ser imparciais e garantidores, que, afinal, é o mínimo que se espera de um magistrado.

As Cortes de Justiça não funcionam com querubins.  Não somos, portanto, uma confraria de anjos; santos, também não somos. Mas é forçoso reconhecer, como contraponto, que no Poder Judiciário, como tenho reafirmado em incontáveis escritos, também habitam muitos diabinhos, muitos capetas que minam a nossa credibilidade. Aqui e acolá, infelizmente, despontam os que, além aneutrais, não são, no mesmo passo, imparciais. Entrementes, esses compõem  as exceções com as quais não trabalho nessas reflexões.

Reafirmo que nós, magistrados, por mais vaidoso que possa ser o togado,  somos apenas seres humanos, simplesmente. Somos como você, leitor amigo. E a maioria de nós é  sim, bem-intencionada, vocacionada, dedicada – tanto quanto qualquer outra pessoa que tenha compromisso com a prestação de serviços de natureza pública.

O que desejam os críticos,  irracionalmente, é que os magistrados  sejam neutros, que ajam como autômatos, que desprezem as suas emoções, que decidam como se nas suas veias ao invés de sangue corresse água.

É preciso convir que o magistrado, por mais digno que seja, por mais consciente da relevância de suas responsabilidades, nunca, jamais impedirá que uma dose de subjetividade, por mínima que seja, acabe por influenciar nas suas decisões. Se é verdade que haverá sempre uma dose de subjetividade nas decisões dos magistrados, não é menos verdadeiro que, no caso específico do processo penal,  o que não pode o magistrado é perder de vista que a sua função é de garantidor da eficácia dos direitos e garantias, e que, nessa perspectiva, não pode tangenciar os  direitos fundamentais do acusados, ainda que, nessa alheta, tenha que contrariar as expectativas de parte da comunidade.

Nesse cenário, tenho tido, repetidas vezes, que os juízes devem decidir , sempre, com a Constituição à vista dos olhos, pois que, de rigor, toda decisão é, ao fim e ao cabo, decisão constitucional. É dever do juiz, ainda que na contramão do que deseja a maioria, reparar injustiças, afinal, como lembra Ferrajoli, o objetivo justificador do processo penal é a garantia das liberdades do cidadão.

O juiz, no seu mister, não pode ser representativo de uma maioria e não deve decidir como quer a maioria. O juiz tem que decidir consciente de que o processo não está a serviço do poder punitivo, e que, por isso, deve desempenhar o papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido.

É preciso ter em mente que o processo penal só se legitima se, ao longo da persecução, forem rigorosamente observadas as garantias constitucionalmente a todos os litigantes asseguradas. O juiz, nesse sentido, não pode quedar-se inerte diante de violações ou ameaças de lesões aos direitos fundamentais, como pensam, por exemplo, os que querem condenação a ferro e fogo.

Retomando ao início dessas reflexões, reafirmo que o juiz, conquanto não se liberte de sua subjetividade,  tem o dever de ser imparcial e fazer valer, a qualquer custo, os direitos fundamentais dos acusados, ainda que, nessa senda, tenha que decidir contramajoritariamente.

Reafirmo, ao encerrar essas breves reflexões, que os juízes não são seres sem memória e sem desejos, libertos do próprio inconsciente e de qualquer ideologia, razão pela qual a sua subjetividade haverá, sempre, de interferir nos juízos de valor que formula (Luis Roberto Barroso)

É insustentável pretender que um juiz não seja cidadão, que não participe de certa ordem de ideais, que não tenha uma compreensão do mundo, uma visão da realidade. O juiz eunuco político é uma ficção absurda, uma imagem inconcebível, uma impossibilidade antropológica (Zaffaroni).

Além da sua independência, digo agora, para encerrar, que só o juiz que tenha consciência do seu papel de garantidor e que, ademais, tenha a dúvida como hábito profissional, é merecedor do poder que lhe é conferido.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

Um comentário em “Não somos semideuses”

  1. É realmente incrível como precisamos, ainda, lembrar o óbvio. Parabéns pelo artigo.

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