Ainda falta muito a ser revelado

Menina-de-12-anos-esta-presa-em-cadeia-publica-em-MSLi, no jornal o Globo, do dia 02/11 do corrente, a matéria sob o título “Detentos impõe ‘código penal’ próprio em presídios”, com a reafirmação, com tintas fortes, mas não definitivas, do que eu já denunciei reiteradas vezes, aqui mesmo, neste mesmo espaço.

A matéria em comento traz informações que não podem passar sem uma detida e responsável reflexão, a concitar a todos nós a nos unirmos para tentar, se não reverter, pelo menos amenizar essa grave situação, a nos envergonhar como nação; a nos conduzir, definitivamente, à conclusão de que não há mesmo, nessas condições, como reeducar, reinserir, preparar o detento para o retorno à sociedade, em face da sua submissão a tratamento cruel e degradante, com o abespinhamento da sua dignidade.

A matéria em comento traz informações mais do que estupefacientes a propósito de canibalismo, esquartejamento, estupro coletivo, decapitação, jogo de bola com cabeças, sevícia com cabo de vassouros, olhos vazados, ida para cela sem luz e com escorpião, que seriam exemplos de punições previstas numa espécie de “Código Penal” dos criminosos, conclusões que decorrem de denúncias da Justiça Global, do Ministério Público e do Conselho Nacional de Justiça.

Ao lado desse “Código Penal” tem-se, a potencializar a situação degradante que decorre da “Lei Penal dos Encarcerados”, a superlotação, a má alimentação, insalubridade, assistência médica precária, a evidenciar, definitivamente, a incapacidade do Estado em relação ao seu sistema prisional, a exigir de todos nós a adoção de providências tendentes a reverter essa situação que a todos nós nos envergonham.

O mais grave é que essas revelações não esgotam as mazelas do sistema. Novas revelações, tão estupefacientes quanto, decerto chegarão ao conhecimento público. Mas providências mesmo, para reverter essa grave situação, somente no dia em que a prisão tiver por destinatário todo e qualquer brasileiro; quando, enfim, todos forem iguais perante a lei. Nesse sentido, acho que Sérgio Moro dará uma grande contribuição para reverter essa situação. É só esperar para ver.

Há alguns anos refleti, aqui mesmo, neste mesmo espaço, acerca da falência das chamadas instituições totais. Em alguns dos excertos do meu artigo, anotei, dentre outras coisas, que era necessário admitir que as instituições denominadas de totais, como são os estabelecimentos criminais, funcionam, no Brasil, apenas como um depósito de gente, embora sejam apresentadas aos olhos do povo como locais eficientes e aptos a atenderem os seus fins. Disse, demais, que essas instituições são, em verdade, verdadeiras masmorras, por isso mesmo fracassaram; por isso não ressocializam; são uma fábrica de reincidência, de estatísticas estarrecedoras.

Recordo que, na oportunidade, reflexionei com as palavras de Evandro Lins e Silva, segundo o qual não se podia  ignorar que a prisão, nos moldes da brasileira, com todas as suas mazelas, não regenera nem ressocializa ninguém; antes, perverte, corrompe, deforma, avilta, embrutece,funcionando como uma fábrica de reincidência, uma universidade às avessas onde se diploma o profissional do crime.

No mesmo diapasão, lembrei as lições do não menos saudoso Heleno Fragoso, jurista de nomeada, segundo o como instituição total a prisão necessariamente deforma a personalidade, ajustando-a à subcultura prisional, para, noutro excerto, concluir que o problema da prisão é a própria prisão.

Barbero Santo, na sua obra, Marginalidade Social e Direito Repressivo, diagnosticou, na mesma balada, que a prisão é aterrorizadoramente opressora e seus muros separam o interno da sociedade e a sociedade do interno. Esse, prossegue, não apenas perde o direito à liberdade de deslocar-se, mas praticamente todos os seus direitos: de expressão, reunião, associação, sindicalização, escolher trabalho, receber um salário semelhante ao do trabalhador livre, assistência social, etc e até de desenvolver normalmente a sua sexualidade”.

Goffman, citado por Cervine, de seu lado, anotou ser impossível descrever esse ambiente com poucas palavras, pois que, privados da maioria de seus direitos de expressão e de ação por um regulamento meticuloso, os detentos encontram-se em estado de compressão psicológica como um gás sob pressão dentro de um recipiente fechado. Tendem, prossegue, continuamente a romper essa resistência e tal tendência manifesta-se às vezes de uma maneira dramática, por evasões, ataques e motins.

Diante do que se tem noticiado, repetidas vezes, sobre a falência do nosso sistema penitenciário, concluo, na esteira do que tenho reiterado, repetidas vezes, que a questão do preso se deve exatamente porque no Brasil a prisão é destinada apenas aos mais pobres.

Nesse cenário, imagino que no dia que as ações do sistema penal de dirigirem, indistintamente,  a todos os autores das condutas típicas e antijurídicas, passar-se-á a investir com mais responsabilidade para resolução do gravíssimo problema penitenciário brasileiro, sem que o legislador perca de vista que é preciso, sem mais delongas, modernizar, o quanto baste,  a nossa legislação penal, descriminalizando condutas, despenalizando, quando possível, para evitar-se, ao máximo, a carcerização”.

Diante desse quadro, me permito repetir o óbvio, ou seja, que o encarceramento, em nosso sistema prisional fracassado, não melhora o detido, não o corrige para o mundo exterior, não o recupera para o retorno à sociedade que perturbou com sua ação criminosa, razão pela qual muito mais cautela deve ter o julgador, quando se decidir pela condenação de alguém e pelo cumprimento de penas nas chamadas instituições totais.

Pode-se concluir, a par do exposto, que a dignidade da pessoa humana, quando o assunto é prisão, tem sido muito pouco pensada, quer pelos legisladores, quer pelos executores das leis, preponderando, com efeito, o desrespeito ao princípio da humanidade da pena.

Mas não se iludam com o que foi revelado na reportagem que mencionei no início deste artigo. Muito mais ainda será revelado a propósito do nosso falido e desumano sistema penitenciário. É só esperar para ver. À proporção que os envolvidos nas operações – Lava Jato, Zelotes, etc – em curso no Brasil forem sendo presos, as mazelas serão sendo aos poucos reveladas, sendo certo que a prisão, quando finalmente dor destinada, também, a um classe que sempre se julgou imune a ela, terá o poder de proporcionar uma revolução.

 

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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