Cuida-se de mais uma crônica da minha autoria.
Antecipo a seguir o excerto no qual reflito sobre a Rainha da Áustria e a forma dramática como morreu, só para lembrar que nós, definitivamente, não sabemos o que nos preparo futuro.
- Depois do que li sobre Ana da Áustria e outros tantos que tiveram fim igualmente trágico, fico indagando: Será que as pessoas que vivem pelo poder e para o poder, que são vaidosas ao extremo, que nutrem inveja doentia pelo semelhante, que não hesitam em atropelar um congênere para se dar bem, que não honram pai e mãe, que sublimam os prazeres que só o poder e o dinheiro podem proporcionar, que vivem das traquinagens que o poder facilita, que valorizam muito mais o poder que o semelhante, que açoitam os direitos alheios, que matam, que roubam, que estupram, que são capazes de qualquer coisa para ascender, que não têm escrúpulos, que são egocêntricas, que vivem apenas os prazeres da carne, terão que passar pelas provações de Ana da Áustria para reavaliar os seus conceitos, para valorizar o semelhante, para cuidar, enfim, da própria alma?
A seguir, a crônica, de corpo inteiro.
Como acontece todos os dias, amanheci pensando, perscrutando. Refletindo sobre a vida e o porvir, indaguei-me, aparentemente sem motivo, se nós, seres humanos, que vivemos os prazeres do mundo material, saberemos o tempo certo de nos apartarmos das coisas terrenas para nos preocuparmos com a salvação da alma.
Claro que, a rigor, ainda não fiz essa indagação a ninguém. Faço-a a mim mesmo, tão-somente. Não gosto de proselitismo, não suporto tutelar o semelhante. Não me apraz dizer como deve se comportar o meu parecente; nem aos meus filhos eu digo como devem se comportar. Eu apenas ajo, dou exemplo, me conduzo, abro a vereda, abro o caminho, a trilha, o norte, o rumo, o prumo. Se quiserem me seguir, estou aceitando companhia. Mas no meu caminho tem muita renúncia, tem muito esmero, pouco luxo e muita dedicação. Todavia, nessa vereda, eu quero, sim, precipuamente, a companhia dos meus filhos.
Que fique claro, pois, que essa inquietação e a indagação dela decorrente faço a mim mesmo, pois tenho consciência de que estou entregue muito mais aos prazeres do mundo material do que à salvação da minha alma.
Detalhe: o que chamo de prazeres do mundo material, não são nada mais que o desfrute da boa convivência com a minha família, poder me abastecer intelectualmente para o exercício do meu trabalho, a leitura de um bom livro, uma viagem de férias, um bom filme e uma boa mesa. Nada mais que isso! Não sei, sinceramente, o que significam os outros prazeres. Até o contato com os poucos amigos que tinha eu perdi. Entreguei-me por inteiro à família, ao trabalho e a esses pequenos prazeres que, para mim, são tudo.
Hoje, aos cinqüenta e seis anos, já tenho a mais empedernida convicção de que tudo que estiver fora do aqui listado não está entre os prazeres que me aprazem. Sou do tipo caseiro. Nesse sentido, sou quase inflexível. Sou, posso afirmar, um quase ermitão. Um, digamos, eremita diferente, daqueles que sublimam a companhia da família e, secundariamente – mas não tão secundariamente assim – o trabalho, um bom filme e um bom livro.
Posso afirmar que estou, noutro giro, dentre aqueles que abominam, no mesmo passo e na mesma intensidade, as solenidades, as festas, as visitas, a aglomeração de pessoas – a muvuca, o burburinho e coisas do gênero.
Sendo como sou, tenho medo, sinceramente, de, um dia, diante de uma adversidade, dar-me conta de que não fui capaz de me preparar para outra vida, pois não tenho tido a capacidade de refletir sobre as coisas do mundo espiritual, muito embora procure conduzir a minha vida dentro dos mais rigorosos princípios morais – muito mais, imagino, do que muitos que vivem fazendo doutrinação com a palavra de Deus.
Fazendo essa introspecção, me vêm à lembrança, agora, excertos do livro que acabo de ler – Amantes e Rainhas, o Poder das Mulheres – no qual a autora (Benedetta Craveri, professora de língua e literatura francesa na Universitá degli Studi Suor Orsola Benincasa, em Nápoles) descreve, dentre outras passagens curiosas acerca da vida das Rainhas e das Amantes – que vai de Catarina de Médicis, princesa italiana que chegou à França no século XVI e reinou por trinta anos, até Maria Antonieta, executada pelo novo regime – , a forma trágica como morreu a regente Ana da Áustria e como ela, pouco antes de falecer, se retirou de cena e foi passar os seus últimos momentos no convento Val-de-Grace, para se dedicar à salvação da alma.
Narra a autora que a rainha confidenciou a sua dama de companhia (Madame de Motteville), já padecendo de intenso sofrimento em face da gangrena que lhe consumia, que não havia um só ponto do seu corpo em que não sentia dores terríveis. Mas a rainha, mostrando-se conformada, disse à mesma dama de companhia, erguendo os olhos para o céu:
“Deus assim quer. Sim, meu Deus, assim quereis, e eu também quero, de todo o meu coração. Sim, meu Deus, de todo o meu coração”.
Quando a gangrena se manifestou e os médicos começaram a retirar, com bisturi, a carne doente, a rainha lamentou dizendo que nunca imaginou ter um destino “tão diferente do das outras criaturas: todas apodreciam depois da morte, enquanto ela era condenada por Deus a apodrecer viva”.
Nessa hora de intenso sofrimento, pude inferir [do livro], que Ana da Áustria sentiu necessidade de cuidar da alma, vez que, ao que se saiba, cuidou muito mais de usufruir daquilo que a sua condição de mulher de Luis XIII – e, depois, de regente, até que seu filho alcançasse a maioridade – tinha a oferecer, registrando a história, inclusive, casos de traição ao marido, com quem casara aos 14 anos.
Depois do que li sobre Ana da Áustria e outros tantos que tiveram fim igualmente trágico, fico indagando: Será que as pessoas que vivem pelo poder e para o poder, que são vaidosas ao extremo, que nutrem inveja doentia pelo semelhante, que não hesitam em atropelar um congênere para se dar bem, que não honram pai e mãe, que sublimam os prazeres que só o poder e o dinheiro podem proporcionar, que vivem das traquinagens que o poder facilita, que valorizam muito mais o poder que o semelhante, que açoitam os direitos alheios, que matam, que roubam, que estupram, que são capazes de qualquer coisa para ascender, que não têm escrúpulos, que são egocêntricas, que vivem apenas os prazeres da carne, terão que passar pelas provações de Ana da Áustria para reavaliar os seus conceitos, para valorizar o semelhante, para cuidar, enfim, da própria alma?
Que fique claro: eu nem de longe me pareço com esse tipo de gente que descrevi no parágrafo anterior. Mas, ainda assim, me permito questionar por que, até hoje, ainda não procurei tempo para cuidar da alma se, de todas as certezas, a única sobre a qual ninguém tem dúvidas é a morte.