Posse de munições. Atipicidade da conduta

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O voto que publico a seguir é instigante. Dele pode-se ver que considerei atípica a conduta do apelante, pois que, ainda que tenha sido preso de posse de munições, não tinha ao seu alcance nenhuma arma de fogo para efetuar disparos.

Em determinados excertos anotei:

“[…] No caso dos autos, restou indiscutivelmente comprovado que o apelante foi encontrado por dois policiais militares, em um local denominado Praça “da Maconha”, em Codó, portando 18 (dezoito) cartuchos de munição calibre 38 em seu bolso.

Registro que, consoante o patrimônio probatório encartado aos autos, em nenhum momento foi encontrada arma de fogo, ou qualquer artefato que viabilizasse o efetivo uso dos projéteis, seja em poder do apelante, seja em seu alcance.

Ora, na esteira do entendimento acima esposado, tenho que, por coerência, as munições desvinculadas de arma de fogo, assim como uma arma desmuniciada, não apresentam efetivo risco de lesão à bem jurídicos. Não há, na espécie, a real probabilidade desta conduta (portar munição sem arma) ser potencialmente lesiva à incolumidade pública.

Com efeito, é forçoso reconhecer, na vertente hipótese, a atipicidade material da conduta de portar munições desacompanhada de arma, porquanto, em minha compreensão, não representa potencial risco de lesão a bem jurídico.

Por conseguinte, o reconhecimento da atipicidade desta conduta prejudica a análise do respectivo patrimônio probante, já que, em essência, de crime não se cuida, sendo despiciendo falar-se em autoria e materialidade delitiva.

De outra sorte, os argumentos quanto à atipicidade da conduta do art. 17, parágrafo único, do Estatuto do Desarmamento – comercialização de munição de uso permitido -, também restaram-me suficientemente seguros, a dar o provimento pretendido.

Isso porque, de fato, a conformação do tipo penal sob retina exige a habitualidade, ou seja, o agente deve, de forma regular, praticar a venda de arma de fogo ou munição de uso permitido, na exegese da elementar “no exercício de atividade comercial”[…]”

 

A seguir, o voto, por inteiro.

PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL

Sessão do dia 26 de outubro de 2010

Nº Único: 0000683-67.2009.8.10.0034

Apelação Criminal Nº. 013437-2010 – Codó-MA.

Apelantes : L. dos S. N.
Advogado : J. R.r O. C.
Apelado : Ministério Público Estadual
Incidência Penal : Art. 14, e art. 17, parágrafo único, ambos da Lei 10.826/2003
Vara: : 3ª Vara Criminal da Comarca de Codó/MA
Relator : Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida

 

Acórdão nº………………

 

Ementa: PENAL E PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. CRIMES DE PORTE ILEGAL DE MUNIÇÃO DE USO PERMITIDO E RESPECTIVO COMERCIALIZAÇÃO ILÍCITA. ATIPICIDADE. APELO CONHECIDO E PROVIDO.

1. Os crimes de perigo abstrato não estão em perfeita sintonia com os princípios da intervenção mínima e da lesividade, pois representam resposta penal antecipada à conduta tão somente considerada, presumivelmente perigosa (presunção jure et de jure), sem denotar potencialidade de lesão a bens jurídicos.

2. O porte de munição, por si só, desacompanhada de arma ou artefato que viabilize sua efetiva utilização, é desprovida de tipicidade material, porque inapta a produzir dano potencial ou efetivo.

3. Não comprovada nos autos a regularidade da mercancia de armas ou munições, inviável a adequação típica no art. 17, parágrafo único, da Lei n. 10.826/2003, que exige, para sua exata configuração, habitualidade da conduta, na dicção da elementar “no exercício de atividade comercial”.

4. A prova colhida na fase inquisitorial não judicializada é imprestável para um édito condenatório. Inteligência do art. 155, do CPP.

6. Apelo conhecido e provido.

 

Acórdão – Vistos, relatados e discutidos estes autos, ACORDAM os Senhores Desembargadores da Primeira Câmara Criminal, por unanimidade, de acordo com o parecer da Procuradoria Geral de Justiça, em negar provimento, nos termos do voto do Desembargador Relator.

Participaram do julgamento os Excelentíssimos Senhores Desembargadores Antonio Fernando Bayma Araujo (Presidente), Raimundo Nonato de Souza e José Luiz Oliveira de Almeida. Presente pela Procuradoria Geral de Justiça o Dra. Domingas de Jesus Froz Gomes.

São Luís, de de 2010.

 

DESEMBARGADOR Antônio Fernando Bayma Araujo

PRESIDENTE

 

DESEMBARGADOR José Luiz Oliveira de Almeida

RELATOR

 

 

 

Relatório – O Sr. Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida (relator): Trata-se de recurso de apelação criminal interposto L. dos S. N., contra sentença oriunda da 3ª Vara Criminal da Comarca de Codó/MA, que o condenou por incidência comportamental no art. 14, e art. 17, parágrafo único, ambos da Lei 10.826/2003, na forma do art. 69, do CPB, à pena de 06 (seis) anos de reclusão, e ao pagamento de R$ 276,66 (duzentos e setenta e seis reais e sessenta e seis centavos).

Da peça de acusação, colho que no dia 31 de março de 2009, por volta das 21:00 horas, o apelante encontrava-se reunido com outros indivíduos, em uma localidade na comarca de Codó denominada Praça “da Maconha”, no bairro São Francisco, ocasião em que, diante de atitudes suspeitas daquele grupo, foram perseguidos pela polícia militar, sendo capturado o apelante, portando uma bolsa contendo 18 (dezoito) munições calibre 38, intactas, e a quantia em dinheiro no valor de R$ 440,50 (quatrocentos e quarenta reais e cinquenta centavos).

Prossegue a denúncia narrando que ao retornarem à referida Praça “da Maconha”, os policiais encontraram uma sacola contendo 8 (oito) cabeças de substância entorpecente conhecida como merla.

Vejo, ainda, da exordial, que durante a condução do apelante ao distrito policial, a viatura da PM foi alvejada por diversos disparos de arma de fogo, sendo atingido no antebraço esquerdo, o PM G. C. L. N..

Por fim, relata a inaugural acusatória que o apelante, ao ser interrogado pela autoridade policial, confessou que estava vendendo munição para diversas pessoas, e que o indivíduo de nome J. L. C. S. também estava no local do crime, armado com uma garrucha e um revólver calibre 38, imputando à este os disparos efetuados contra a viatura da PM.

A denúncia foi instruída com os autos do inquérito policial n. 683/2009, notadamente com o auto de apreensão e apresentação de fls. 18, auto de exame em eficiência de munição às fls. 20, relatório fotográfico da viatura da PM alvejada por disparos de arma de fogo (fls. 22/27), e do policial atingido (fls. 28).

Acolhendo representação da autoridade policial formulada às fls. 62/68, o juízo a quo, através da decisão de fls. 69/72, decretou a prisão preventiva do apelante e de outros indivíduos então investigados no mesmo inquérito, como garantia da ordem pública, por conveniência da instrução criminal e para assegurar a aplicação da lei penal.

O pedido de liberdade provisória formulado pelo apelante às fls. 118/121 foi indeferido pela decisão de fls. 133/134, ao argumento que ainda persistiam os motivos ensejadores da constrição cautelar.

O apelante apresentou defesa preliminar às fls. 136/142, aduzindo, em resumo, ausência de lastro probatório para a deflagração da ação penal.

No despacho exarado às fls. 153, o juízo de base suspendeu o processo e o curso do prazo prescricional em relação ao corréu J. L. C. S., por estar em local incerto e não sabido, e consequetemente, cindiu o processo em relação a ele.

Laudo de exame químico em substância acostado às fls. 161/162.

Regularmente citado, conforme se vê pela certidão de fls. 156/157, o apelante foi qualificado e interrogado em juízo às fls. 167/167v., e, ato contínuo, sucedeu-se a instrução do feito, com a oitiva de duas testemunhas arroladas pelo Ministério Público (fls. 169/169v. e 170/170v.). Em seguida, as partes desistiram da oitiva de outras testemunhas, conforme deliberado às fls. 171, encerrando-se a instrução.

Nas alegações finais encartadas às fls. 174/175, o Ministério Público postulou pela absolvição do apelante pelos crimes tipificados na Lei de Drogas, e reiterou os termos da inicial acusatória quanto as infrações penais descritas no Estatuto do Desarmamento, aduzindo que sua conduta delitiva foi confirmada pelas provas produzidas sob o crivo do contraditório.

A defesa, por seu turno, postulou a absolvição do apelante nas razões finais de fls. 177/182, alegando, em suma: I) a inconstitucionalidade do crime de porte ilegal de munição, por ser um crime de perigo abstrato, que viola os princípios da lesividade e a intervenção mínima do Direito Penal; II) que a conformação do crime previsto no art. 17, da Lei n. 10.826/2003 (comercialização de arma ou munição), exige habitualidade, o que não ficou evidenciado na espécie; III) que as provas nos autos são insuficientes para um édito condenatório.

Sobreveio a sentença de fls. 184/189, na qual o juízo de base absolveu o apelante das imputações relacionadas ao tráfico de entorpecentes, entretanto, o condenou por incidência comportamental nos arts. 14, e 17, parágrafo único, ambos da Lei 10.826/2003, na forma do art. 69 do CPB, a uma pena de 06 (seis) anos de reclusão, e o pagamento de multa, no valor de R$ 276,66 (duzentos e setenta e seis reais e sessenta e seis centavos).

Desta decisão, o apelante interpôs seu recurso às fls. 191, com as inclusas razões às fls. 196/201, reiterando a linha argumentativa das razões finais, nos seguintes termos:

I – a inconstitucionalidade do crime de porte ilegal de munição, por ser de perigo abstrato, o que viola os princípios da lesividade e intervenção mínima do Direito Penal;

II – que o crime previsto no art. 17, parágrafo único, do Estatuto do Desarmamento – comercialização de munição -, exige habitualidade para sua configuração, sob pena de atipicidade;

III – que não houve lesividade à incolumidade pública, reiterando a alegação de atipicidade de sua conduta; e,

IV – a imprestabilidade do acervo probatório para sustentar um édito condenatório.

Em suas contrarrazões acostadas às fls. 204/206, o Ministério Público pleiteou pela manutenção da sentença ora fustigada, sob o argumento de que se embasou nas provas coligidas nos autos, sobretudo aquelas produzidas no curso da instrução.

Guia de recolhimento provisório do apelante expedida às fls. 212.

A Procuradoria de Justiça opinou às fls. 227/235 pelo conhecimento e improvimento do apelo, cujos fundamentos principais, destacam-se:

I – que as provas coligidas nos autos são harmônicas e concludentes, não deixando dúvidas quanto à autoria e materialidade do crime;

II – que o próprio apelante confessou, perante a autoridade policial, que estava comercializando munição na Praça “da Maconha”;

III – que o tipo penal do art. 14, do Estatuto do Desarmamento configura-se com o simples enquadramento da conduta do agente, e, por ser de perigo abstrato, visa tutelar preventivamente a incolumidade pública, afastando o argumento de inconstitucionalidade.

Os autos vieram-me conclusos.

É o relatório.

 

Voto – O Sr. Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida (relator): Presentes os pressupostos de admissibilidade do presente recurso de apelação, dele conheço.

A irresignação recursal mira a absolvição, trilhando, primeiramente, a tese defensiva de atipicidade da conduta do apelante, e, em seguida, rechaça o conjunto probatório carreado aos autos, reputando insuficiente à condenação.

Vejamos, pontualmente, os argumentos da defesa.

O primeiro deles repousa na alegada inconstitucionalidade do crime de porte ilegal de munição, encartado no art. 14, da Lei 10.826/2003, por ofender, segundo asseverou, os princípios da intervenção mínima do direito penal, e da lesividade, já que se trata de um crime de perigo abstrato.

O princípio da intervenção mínima, como é ressabido, destina-se à atividade legislativa estatal, e serve como filtro de atuação do Direito Penal, que só deve tutelar determinado bem jurídico quando outros ramos do direito mostrarem-se insuficientes para este fim. No escólio de Rogério Greco[1]:

“O legislador, por meio de um critério político, que varia de acordo com o momento em que vive a sociedade, sempre que entender que os outros ramos do direito se revelem incapazes de proteger devidamente aqueles bens mais importantes para a sociedade, seleciona, escolhe as condutas, positivas ou negativas, que deverão merecer a atenção do Direito Penal. Percebe-se, assim, um princípio limitador do poder punitivo do Estado (…)”

Deste princípio, resultam outros, umbilicalmente anexados: a lesividade e a fragmentariedade. O primeiro deles, atua concomitantemente à intervenção mínima, mas sob uma perspectiva negativa, ou seja, seleciona as condutas as quais direito penal não deve ser preocupar, por não representarem um efetivo risco de lesão à bens jurídicos.

Ainda, em conformidade com os ensinamentos de Rogério Greco[2]:

“Os princípios da intervenção mínimia e da lesividade são como duas faces de uma mesma moeda. Se, de um lado, a intervenção mínima somente permite a interferência do direito penal quando estivermos diante de ataques a bens jurídicos importantes, o princípio da lesividade nos esclarecerá, limitando ainda mais o poder do legislador, quais são as condutas que poderão ser incriminadas pela lei penal. Na verdade, nos orientará no sentido de saber quais são as condutas que não poderão sofrer os rigores da lei penal. (…)”

Já a fragmentariedade é um princípio que reflete a concretização dos princípios da intervenção mínima e da lesividade. Uma vez delimitado o âmbito de atuação do direito penal, ou seja, de tutelar somente os bens jurídicos tidos por mais significativos, ante a constatação de estarem insuficientemente protegidos por outros ramos do direito, e, excluídas as condutas que não representam potencial lesão ao tecido social, temos o núcleo de proteção do direito penal, uma parcela de bens jurídicos selecionados a serem tutelados pelo Direito Penal. Daí o seu caráter fragmentário.

Considerável parte da doutrina entende que os crimes de perigo abstrato não se inserem, com tranquilidade, na dogmática penal, por não estarem em perfeita sintonias com referidos princípios informadores do Direito Penal, acima explicitados.

Nesse diapasão, as esclarecedoras palavras de Luiz Flávio Gomes[3]:

“A definição de crime deve ser dada pela lei. E a nossa lei (Código Penal, art. 13) estabeleceu que não há crime sem resultado, que é lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico. Entendido esse resultado em sentido material (consoante doutrina do bem jurídico), é sempre necessária a injuria (lesão ou potencialidade lesiva). A presunção legal dessa lesão ou do perigo de lesão, nesse diapasão, viola o princípio da legalidade, e, em conseqüência, a Constituição, que elevou tal princípio à categoria de norma constitucional. A injuria (lesão ou perigo de lesão), em síntese, sempre tem que ser demonstrada, nunca pode ser presumida. Sem sua concreta e efetiva demonstração não há crime ou contravenção, não há injusto penal. Pode a conduta inócua (do ponto de vista do bem jurídico tutelado pela norma penal) configurar infração administrativa, jamais o injusto penal”.

(Sem destaques no original).

De fato, entendo que os crimes perigo abstrato, a priori, são destituídos de tipicidade material, tendo em vista a ausência de potencialidade lesiva.

A produção legiferante dos tipos penais de perigo abstrato segue uma opção de política criminal que estabelece um critério de presunção absoluta (jure et de jure) de periculosidade, antecipado a resposta penal à conduta tão-somente considerada (desvalor da conduta), sem considerar qualquer possibilidade de potencial lesão à bens jurídicos (desvalor do resultado).

Em essência, as justificativas para leis penais dessa natureza arvoram-se no propalado discurso de “combate à criminalidade”, mediante o recrudescimento da resposta penal do Estado-Juiz, intensificando o apenamento de algumas infrações penais já existentes, e/ou, mais comumente, ciriminalizando condutas desvinculadas de qualquer pontecialidade lesiva, tachadas simplesmente de perigosas.

Como é sabido, a tipicidade não se contenta apenas com o simples enquadramento típico da conduta (tipicidade formal), embora necessário.

A conduta, para além tipicidade formal, deve lesionar, ou expor à risco de lesão efetiva, bem jurídicos protegidos, sob pena da atuação do direito penal evidenciar uma desproporcional resposta estatal, de violenta restrição ao direito fundamental de ir e vir, sem o necessário cotejamento, entre o desvalor da conduta e o desvalor do resultado, porque desvinculado de lesividade potencial.

O pressuposto desta análise valorativa reside no conceito de bem jurídico, critério material a partir do qual a doutrina estabelece os contornos e vetores da tipicidade material.

Nas lições de Cezar Roberto Bitencourt[4], com base na doutrina alinígena de Cobo del Rosal e Vives Anton:

“(…) A proteção de um bem jurídico, como fundamento de um Direito Penal liberal, oferece um critério material, extremamente importante e seguro na construção dos tipos penais, porque, assim, ‘será possível distinguir o delito das simples atitudes interiores, de um lado, e, de outro, fatos materiais não lesivos a bem algum. (…)

No atual estágio da teoria do delito, deve-se partir do ponto de vista de que no tipo somente se admitem aqueles elementos que fundamentam o conteúdo material do injusto. O tipo tem a finalidade precípua de identificar o bem jurídico protegido pelo legislador.”

No caso específico, em relação à alguns dos delitos previstos na Lei de Armas, instalou-se na doutrina e na jurisprudência significativa controvérsia acerca da tipicidade material, nos crimes de portar arma desmuniciada, ou munição desacompanhada de arma, ou artefato capaz de dispará-la.

No âmbito do próprio STJ, as suas Turmas são divididas.

A 5ª Turma defende o seguinte entendimento:

4. Ainda que assim não fosse, este Tribunal já firmou o entendimento segundo o qual o porte ilegal de arma de fogo desmuniciada e o de munições, mesmo configurando hipótese de perigo abstrato ao objeto jurídico protegido pela norma, constitui conduta típica[5].

Já a 6º Turma daquele Sodalício, em sentido oposto, sustenta que:

Arma de fogo (porte ilegal). Falta de munição (caso). Atipicidade da conduta (hipótese).

1. A arma, para ser arma, há de ser eficaz; caso contrário, de arma não se cuida. Tal é o caso de arma de fogo sem munição, que, não possuindo eficácia, não pode ser considerada arma.

2. Não comete, pois, crime de porte ilegal de arma de fogo aquele que consigo tem arma de fogo desmuniciada.

3. Agravo regimental a que se nega provimento[6].

O Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de enfrentar a matéria, conforme se vê no aresto abaixo, cuja relatoria ficou a cargo do Min. Ricardo Lewandowiski[7]:

Ante as peculiaridades do caso, a Turma, por maioria, deferiu habeas corpus para reconhecer a atipicidade da conduta imputada a denunciado pela prática do delito previsto no art. 16 da Lei 10.826/2003, por ter sido apreendida munição de uso proibido ou restrito no interior de sua residência. Na espécie, as instâncias inferiores reputaram a conduta materialmente atípica, em face da ausência lesiva da munição, porquanto desacompanhada da arma de fogo. Ocorre, contudo, que o STJ reformara tal acórdão por considerar irrelevante a não apreensão da arma para configuração do tipo, haja vista cuidar-se de delito de perigo abstrato. Inicialmente, salientou-se que, durante o seu interrogatório, o paciente afirmara que mantinha as munições em roupeiro a título de recordação do período em que servira o Exército. Em seguida, assentou-se que a conduta em apreço, a rigor, enquadrar-se-ia no tipo previsto no art. 16 do Estatuto do Desarmamento. Destarte, asseverou-se que se estaria diante de conduta formalmente típica, a qual, todavia, não se mostraria típica em sua dimensão material, na medida em que não seria possível vislumbrar, nas circunstâncias, situação que expusesse o corpo social a perigo, dado que a munição apreendida — guardada em armário e desacompanhada da arma de fogo — seria incapaz, por si só, de provocar qualquer lesão ao bem jurídico tutelado — a incolumidade pública. Por fim, enfatizou-se que não se estaria a firmar tese segundo a qual a munição desacompanhada da arma seria conduta atípica, mas apenas se atentando às singularidades do caso concreto. Vencido o Min. Marco Aurélio, que indeferia o writ por entender típica a conduta. Aduzia que a quadra vivenciada levara ao abandono do enquadramento do porte de munição como simples contravenção penal e o Congresso Nacional, em uma opção político-normativa, trouxera à balha o art. 16 da Lei 10.826/2003, que possui diversos núcleos — que são conducentes a concluir-se que se tem crime formal e não material. Salientava que no referido tipo penal se teve presente, numa ficção jurídica, que qualquer das condutas colocaria em risco a paz pública, os cidadãos em geral”

Em caso similar, mais recente na Excelsa Corte[8], ainda pendente de julgamento, o Min. Cezar Peluso, em seu brilhante voto-vista, cujos excertos trazemos à colação, assentou os seguintes argumentos:

A Turma retomou julgamento de habeas corpus em que se pretende, por ausência de potencialidade lesiva ao bem juridicamente protegido, o trancamento de ação penal instaurada contra denunciado pela suposta prática do crime de porte de munição sem autorização legal (Lei 10.826/2003, art. 14), sob o argumento de que o princípio da intervenção mínima no Direito Penal limita a atuação estatal nesta matéria — v. Informativos 457 e 470. O Min. Cezar Peluso, em voto-vista, por reputar atípica a conduta imputada ao paciente, deferiu o writ para determinar o trancamento da ação penal. Observou, de início, que a matriz definidora e legitimadora do Direito Penal residiria, sobretudo, na noção de bem jurídico, sendo ela que permitiria compreender os valores aos quais o ordenamento concederia a relevância penal, de acordo com a ordem axiológica da Constituição, e, por isso, legitimaria a atuação do instrumento penal. Ressaltou que, na chamada sociedade do risco, com a pretensão de se atenuar a insegurança decorrente da complexidade, globalidade e dinamismo social, demandar-se-ia a regulação penal das atividades capazes de produzir perigo, na expectativa de que o Direito Penal fosse capaz de evitar condutas geradoras de risco e de garantir um estado de segurança. Considerou que, para justificar a antecipação da tutela penal para momento anterior à efetiva lesão ao interesse protegido, falar-se-ia em prevenção e controle das fontes de perigo a que estão expostos os bens jurídicos, para tratar situações antes não conhecidas pelo Direito Penal tradicional. (…) Esclareceu que as normas de perigo abstrato punem a realização de conduta imaginada ou hipoteticamente perigosa sem a necessidade de configuração de efetivo perigo ao bem jurídico, na medida em que a periculosidade da conduta típica seria determinada antes, por meio de uma generalização, de um juízo hipotético do legislador, fundado na idéia de mera probabilidade. Avaliou que, nos tipos de perigo concreto, se exigiria o desvalor do resultado, impondo o risco do bem protegido, enquanto, nos tipos de perigo abstrato, ocorreria claro adiantamento da proteção do bem a fases anteriores à efetiva lesão. Asseverou, todavia, que deveria restar caracterizado um mínimo de ofensividade como fator de delimitação e conformação de condutas que merecessem reprovação penal. Nesse sentido, registrou que a aplicação dos instrumentos penais de atribuição de responsabilidade às novas realidades haveria de se restringir aos casos em que fosse possível compatibilizar a nova tipificação com os princípios clássicos do Direito Penal. (…)”

O mestre Luiz Flávio Gomes[9], ao comentar precedente anterior da Suprema Corte, de relatoria da Min. Ellen Gracie, em sentido contrário aos julgados acima, teceu duras críticas:

“Comentários: a ementa que acaba de ser transcrita é o retrato (acabado) do velho Direito penal, positivista legalista, causalista, subjetivista, antinormativista formal etc. Está na mesma linha de outra recente decisão do STF: HC 96.922-RS, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 17.3.2009.

Para nossa teoria constitucionalista do delito nada disso se sustenta, na atualidade. O crime é de mera conduta, mas essa classificação (do provecto Direito penal) é puramente naturalista. Depois de Roxin (1970), sobretudo, o Direito penal e, especialmente, a tipicidade, se desenvolve, necessariamente, em dois planos: formal e material. O crime (portar arma de fogo), no plano formal, é de mera conduta. No plano jurídico-material é um crime de perigo (perigo de lesão). Por força do princípio da ofensividade, sem a comprovação efetiva do perigo (concreto) não existe crime.

Para a Ministra basta a ação (desvalor da ação) para a configuração do crime, porque tratar-se-ia de perigo abstrato. Com a devida vênia, não existe mais (já não pode existir) crime fundado exclusivamente no desvalor da ação. Todo delito, necessariamente, exige também desvalor do resultado jurídico (que é a lesão ou o perigo de lesão ao bem jurídico protegido). Para a Ministra a ofensividade reside no poder de intimidação da arma. Ocorre que o bem jurídico protegido não é a tranquilidade social (tranqüilidade das pessoas), sim, a incolumidade pública (de forma direta) assim como bens jurídicos pessoais tais como a vida, integridade física etc. (de forma indireta). Claro que a arma de fogo (municiada ou desmuniciada) tem poder de intimidação. Precisamente por isso, quando usada numa subtração, o delito é o de roubo (não o de furto). A arma desmuniciada pode ser instrumento do delito de roubo (não há nenhuma dúvida). Mas a questão, problemática, é outra: e quando a posse da arma é o único fato cometido? Para nós (teoria constitucionalista do delito) só existe crime, nesta situação, se a arma tem capacidade de disparo e disponibilidade de uso (RHC 81.057-SP).

Com a devida vênia, a decisão ora comentada é muito preocupante. Espelha um grande retrocesso na jurisprudência do STF (firmada no HC 81.057), que coloca em risco o estatuto das liberdades típicas do Estado de Direito. Segue a linha do perigo abstrato, que ignora o Direito penal da ofensividade assim como a teoria do bem jurídico, a questão da proporcionalidade etc. Filia-se, ademais, à concepção do delito como mera violação – formal – da norma, sem nenhum questionamento sobre o verdadeiro bem jurídico protegido e a ofensa respectiva.”

(Sem destaques no original).

À guisa concludente, inclino-me ao posicionamento mais consentâneo com a dogmática penal moderna, segundo a qual os delitos de perigo abstrato, a priori, são atípicos, porque destituídos de potencialidade lesiva.

No caso específico dos crimes de porte ou posse de armas, ou munições, as peculiaridades do caso são importantíssimas para o deslinde da causa.

Existindo prova nos autos que, inobstante desmuniciada a arma, o agente tinha à disposição, ainda que não portando consigo, mas em seu alcance, munição, tornando a arma de fogo efetivamente lesiva, neste caso, não há que se falar em atipicidade da conduta, porque o risco, em minha ótica, transmuda-se em concreto.

De igual sorte, trazendo o agente consigo apenas munições, mas, havendo uma arma de fogo apta a realizar disparos em suas proximidades, também não se afigura na espécie a atipicidade da conduta, pelas mesmas razões.

Pois bem.

No caso dos autos, restou indiscutivelmente comprovado que o apelante foi encontrado por dois policiais militares, em um local denominado Praça “da Maconha”, em Codó, portando 18 (dezoito) cartuchos de munição calibre 38 em seu bolso.

Registro que, consoante o patrimônio probatório encartado aos autos, em nenhum momento foi encontrada arma de fogo, ou qualquer artefato que viabilizasse o efetivo uso dos projéteis, seja em poder do apelante, seja em seu alcance.

Ora, na esteira do entendimento acima esposado, tenho que, por coerência, as munições desvinculadas de arma de fogo, assim como uma arma desmuniciada, não apresentam efetivo risco de lesão à bem jurídicos. Não há, na espécie, a real probabilidade desta conduta (portar munição sem arma) ser potencialmente lesiva à incolumidade pública.

Com efeito, é forçoso reconhecer, na vertente hipótese, a atipicidade material da conduta de portar munições desacompanhada de arma, porquanto, em minha compreensão, não representa potencial risco de lesão a bem jurídico.

Por conseguinte, o reconhecimento da atipicidade desta conduta prejudica a análise do respectivo patrimônio probante, já que, em essência, de crime não se cuida, sendo despiciendo falar-se em autoria e materialidade delitiva.

De outra sorte, os argumentos quanto à atipicidade da conduta do art. 17, parágrafo único, do Estatuto do Desarmamento – comercialização de munição de uso permitido -, também restaram-me suficientemente seguros, a dar o provimento pretendido.

Isso porque, de fato, a conformação do tipo penal sob retina exige a habitualidade, ou seja, o agente deve, de forma regular, praticar a venda de arma de fogo ou munição de uso permitido, na exegese da elementar “no exercício de atividade comercial”.

Nas esclarecedoras lições de Guilherme de Souza Nucci[10], litteris:

101. Atividade comercial ou industrial por equiparação: a preocupação do legislador foi a mesma estampada no art. 180, § 2º, do Código Penal, quando quis atingir o “comerciante de fundo de quintal”, nos casos de desmanches de veículos, no cenário do crime de receptação. Portanto, o disposto no parágrafo único, do art. 17, desta Lei, tem a mesma finalidade. Há quem exerça (a habitualidade preexistente permanece) o comércio ou a indústria em caráter informal, prestando serviços (consertando armas, por exemplo), fabricando (construindo acessórios ou munições, em outro exemplo), ou comercializando (comprando, vendendo e alugando armas de fogo, como ilustração), em sua própria casa, sem a aparência de atividade comercial ou industrial regular. Aliás, na verdade, cuida-se, de fato, de atividade irregular, vale dizer, ilegal.

(Itálicos no original. Negritos acrescentados).

Na mesma senda, a jurisprudência vaticina:

EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL – COMÉRCIO ILEGAL DE ARMAS DE FOGO — AUSÊNCIA DE PROVA – DESCLASSIFICAÇÃO – POSSE ILEGAL DE ARMA – POSSIBILIDADE – MEDIDA PROVISÓRIA N.° 417/2008 – PRORROGAÇÃO DO PERÍODO DA “VACATIO LEGIS INDIRETA” – ABSOLVIÇÃO. 1. Inexistindo provas judicializadas de que as armas em poder dos apelados seriam destinadas ao comércio habitual, deve a conduta ser desclassificada para o art. 12 da Lei 10.826/03. (…)[11]

(Sem destaques no original)

Do compulsar dos autos, com detença e vagar, pude notar que o apelante declarou, na fase inquisitiva, que já havia vendido munições, em várias ocasiões, à diversas pessoas.

Nada obstante, esta prova indiciária não encontrou eco em nenhum elemento probante judicializado, na fase franqueada pelas inafastáveis garantias constitucionais do devido processo legal e seus consectários (contraditório e ampla defesa), pois o próprio apelante negou em juízo tal assertiva (fls.167/167v.):

“(…) Que na verdade não chegou nem mesmo a ver as munições as quais foram apresentadas na Delegacia; (…) Que só tomou conhecimento de que estava acontecendo venda de munições para facções de traficantes inimigos, através dos relatos dos policiais;(…)”

Nesse diapasão, as duas únicas testemunhas ouvidas no curso da instrução afirmaram que nunca ouviram dizer que o apelante já havia vendido munições à terceiros.

L. dos S. N. declarou às fls. 168:

“(…) Que o acusado revelou aos policiais no momento da sua prisão que as balas encontradas no seu bolso eram destinadas para a venda; (…) que não sabe informar se algum preso ou indivíduos com passagens pela polícia por crime de tráfico ou porte de arma teriam revelado que já compraram munições com o acusado; (…)”

A testemunha J. E. da S. N., em igual sentido, afirmou às fls. 171:

“(…) Que não se recorda se o acusado lhe disse ou fez comentário de quem ele havia adquirido as munições e para quem ele estava vendendo; Que não sabe informar se algum preso ou alguém que tenha sido envolvido em delitos de tráfico ou porte ilegal de arma tenha mencionado o nome do acusado como fornecedor de munições; (…)”

Ante a notória ausência de prova de habitualidade da conduta (venda de munição), observo, na espécie, a atipicidade da conduta.

Nesse particular, poder-se-ia vislumbrar, em tese, a ocorrência da atipicidade relativa, recaindo o enquadramento da conduta em outra figura típica, nos moldes em que preconizados pelos vetores do princípio da subsidiariedade.

Entretanto, tal operação, desde meu olhar, afigura-se inviável na espécie, pois o apelante já havia sido incurso nas sanções de tipo previsto no art. 14, da Lei de Armas, cujas peculiaridades acima explicitadas, desaguaram no reconhecimento da atipicidade material da conduta.

Desta forma, sou compelido a reconhecer, como de fato reconheço, que a conduta perpetrada pelo apelante, outrora tipificada no art. 17, da Lei n. 10.826/2003, não encontra o necessário emolduramento típico, ante a ausência da elementar “no exercício de atividade comercial” devendo, portanto, ser afastada a imputação criminosa.

Ao lume dessas considerações, conheço do presente recurso de apelação, para, em desacordo com o parecer da Procuradoria Geral de Justiça, dar-lhe provimento, para absolver o apelante das imputações previstas no art. 14, e art. 17, parágrafo único, da Lei 10.826/2003, por não constituírem os fatos infrações penais, o que faço com base no art. 386, III, do CPP.

É como voto.

Sala das Sessões da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, em São Luís, ___ de ______________ de 2010.

 

DESEMBARGADOR José Luiz Oliveira de Almeida

RELATOR

 

 

 


[1] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – parte geral. Impetus, 2005, p. 50.

[2] Ob. cit., p. 54.

[3] GOMES, Luiz Flávio. A contravenção do artigo 32 da lei das contravenções penais é de perigo abstrato ou concreto? – a questão da inconstitucionalidade do perigo abstrato ou presumido. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Rio de Janeiro: RT, 1994, v.8

[4] BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal. Parte Geral RT. 6. ed., 2000, v. 1, p. 198-199.

[5] STJ – RECURSO ESPECIAL Nº 882.532 – RJ (2006?0137183-0). Min. Laurita Vaz. DJ: 05/04/2010.

[6] STJ – AgRg no HABEAS CORPUS Nº 149.191 – RS (2009?0192016-4). Rel.: Min. Nilson Naves. DJ: 17/05/2010.

[7] HC 96532/RS, rel. Min. Ricardo Lewandowiski. 1ª T. j. 6.10.2009. (Noticiado no informativo n. 562).

[8] STF – HC 90075/SC, rel. Min. Eros Grau, 20.4.2010. (Noticiado no Informativo n. 583).

[9] GOMES, Luiz Flávio. Arma de fogo desmuniciada: perigo abstrato ou concreto? A polêmica continua. Disponível em http://www.lfg.com.br – 08 outubro. 2009.

[10] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 3. ed. RT, 2008, p. 97-98.

[11] TJ/MG – APELAÇÃO CRIMINAL N° 1.0433.07.217646-7/001. RELATOR: EXMO. SR. DES. ANTÔNIO ARMANDO DOS ANJOS. DJ: 15/12/2009.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

4 comentários em “Posse de munições. Atipicidade da conduta”

  1. Uma das suas melhores decisões que tive a oportunidade de ler até o momento.
    Parabéns.

  2. Coaduno da mesma linha de raciocínio, uma vez que atípico tal conduta delituosa.

  3. Boaas tarde. Seria gratificante se pudesse ter acesso as decisões do merítissimo juiz, principalmente no que se refere a absolviçoes do crime de porte ilegal de arma em decorrencia do propter officium por parte de policiais militares, pois, entendo que o policial que traz arma de fogo registrada em nome de terceiro não incorre em tal prática delitiva, visto que, ele tem o porte funcional permanente e para o estado interessa que a arma esteja devidamente registrada.

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