Brioche, chiclete e arrogância

Versão publicada no Jornal Pequeno, edição de 31 de outubro de 2010

Fui juiz titular da 7ª Vara Criminal de São Luis do Maranhão por longos 18(dezoito) anos. Nesse período amealhei muitos desafetos, inspirei muita antipatia, como sói ocorrer. Não porque tivesse cometido alguma arbitrariedade ou porque tivesse sido injusto com os jurisdicionados. É que, sendo rigoroso, sobretudo com os roubadores, estimulei a má fama de duro e insensível. Nesse contexto eu não fui estimado pelos parentes e amigos dos acusados de assalto, e muito menos pelos seus advogados, os quais, em face das minhas convicções acerca dos crimes praticados com violência contra a pessoa, tinham os pleitos de liberdade provisória, ou relaxamento de prisão, sistematicamente indeferidos.

A par do exposto, a conclusão mais do que óbvia é que julgar não é tarefa fácil, conquanto seja nobre. Daí a inevitabilidade das malquerenças, das inimizades, das incompreensões, dos dissabores. Julgando, é forçoso convir, tem-se que desagradar. Não existe julgador bonzinho. O julgador criminal só é bom quando absolve ou concede liberdade ao autor do fato. O magistrado que, ao reverso, nega um pedido de liberdade provisória ou que se decida pela condenação do autor do fato, não é visto com bons olhos, sobretudo pelos acusados e seus familiares.

É preciso convir, no entanto, que há muitas fantasias e inverdades acerca da atuação de determinados magistrados; fantasias e inverdades que terminam por açular as malquerenças. Muito do que se fala e se comenta acerca desse ou daquele magistrado, com efeito, é pura invenção criadora, conquanto se tenha de admitir que há muitas verdades estarrecedoras envolvendo preclaros julgadores.

Todavia, tem-se que convir que, por conta dessas verdades, criam-se histórias, plantam-se notícias, usam e abusam do “direito” de achincalhar, de prejudicar, sem se importar com as consequências, com a dor e com o sofrimento que são infligidos às famílias dos magistrados vitimizados. E, o pior, é que, com o tempo, essas fantasias passam a compor a nossa história. E,quando isso acontece, não adianta tentar reverter a situação, pois na testa da vítima restará indelevelmente marcado o estereótipo.

Lembro, nesse sentido, que, muitas vezes, ouvi das mães de acusados que eu era tido e havido como um homem mau, razão pela qual tinham medo, pavor, de conversar comigo sobre a situação dos filhos presos ou que apenas respondiam a processos na 7ª Vara Criminal.

Pura sacanagem! Essa fama de mau foi construída por alguns desafetos gratuitos; exatamente aqueles que não suportam a diligência, o desvelo profissional e a postura moral do semelhante.

Por homem mau passei e nada pude fazer para desmistificar essa ignomínia, porque essa invencionice foi disseminada de tal forma, que não houve mais retorno.

Muitos dos que tiveram a oportunidade de conviver comigo, apesar desse estereótipo, chegaram à conclusão de que tudo não passava mesmo de maldade, de pura perfídia; os que não tiveram acesso a minha pessoa certamente que, até hoje, me têm na conta de um homem mau e insensível.

Esse estigma – e outros tantos – também prejudicou a minha ascensão profissional. Foi por essas e outras que fui o único juiz da capital impedido de integrar a terceira lista de promoção por merecimento, consecutivamente. É que muitos não suportavam a idéia de a Corte ser composta por um ser tão insuportável – além do mais, arrogante, prepotente e mau.

Pura maldade! Pura sacanagem! Insídia pura! Deslealdade plena!

Mas não foi só isso que os desafetos fizeram comigo. Para eles ainda era pouco. Era preciso, de qualquer forma, impedir que um ser tão “execrável” ascendesse, para não contaminar a pureza do ambiente do nosso Sodalício.

Vou contar uma historinha que seria hilária, não fosse pensada apenas como um ingrediente a mais para prejudicar a minha ascensão profissional.

Registro que lembrei-me desse episódio, a propósito do que ocorreu com Maria Antonieta, a quem se atribuiu, sem nenhuma prova, o conselho que teria dado aos franceses famintos para que comessem brioches. O resultado dessa mentira, todos sabem.

Pois bem. Determinado dia, estando eu realizando uma audiência, uma testemunha apresentou-se com a boca cheia de goma de mascar. A proporção que tentava responder às minhas indagações, a testemunha deslocava a goma de mascar dum lado para o outro, a ponto de escorrer saliva pelos cantos da boca.

Percebendo o desconforto da testemunha, puxei um balde de lixo que estava sob a minha mesa, e pedi a ela que jogasse fora a goma de mascar, no que, claro, fui atendido prontamente.

Nessa época, insta anotar, eu era um dos fortes concorrentes à promoção por merecimento para segunda instância.

Pois bem. Esse fato ocorreu numa sexta-feira, pela manhã. Na segunda-feira, quando fui a Tribunal de Justiça, para “trabalhar” a minha promoção, estando na sala do presidente, Des. Jorge Rachid, entra um desembargador, hoje aposentado, o qual, na frente de todos os presentes, antes mesmo de um bom dia, dirigiu-se a mim, com ar de, digamos, deboche, para afirmar:

Dr. José Luiz, o juiz brabo da Comarca.

Em seguida, olhou para os circunstantes e arrematou, sem perder tempo:

Com o Dr. José Luiz ninguém tem direito nem de mascar chicletes.

Pronto! Depois disso, ninguém teve mais dúvida: eu não podia mesmo ser promovido, pois a minha arrogância tinha chegada ao ápice e a minha presença, por isso, faria muito mal ao Tribunal.

Muito pensaram: um homem capaz de proibir o uso de goma de mascar em seu gabinete é capaz de qualquer coisa.

Não tive direito de resposta. Ninguém nunca me indagou se o fato era verdadeiro ou não, afinal, a afirmação tinha sido feita por um desembargador. Nesse sentido, quem ousaria questionar?

Registre-se, por oportuno, que, como previsto, não fui promovido por merecimento. Por essas e por outras inverdades que plantaram sobre a minha pessoa, tive que esperar a antiguidade, convindo destacar que até cartas anônimas foram distribuídas no Tribunal, apontando-me como incendiário e desagregador, tudo para obstar a minha promoção. A minha luta, a minha dedicação, o meu empenho de nada valeram. O que valia mesmo era a certeza de que eu, sendo arrogante, bem não faria ao Tribunal, como se o Tribunal fosse composto de pessoas humildes, como se nos Tribunais não vicejassem, a plena carga, a arrogância e a prepotência.

Hoje, aqueles mesmos que disseminaram que eu era arrogante, são forçados a admitir que tudo não passava de fantasia.

Fazer o quê? Agora é tarde. A minha carreira foi prejudicada pelo que não fiz. O meu único consolo é que nunca deixei de ser feliz, nunca deixei de me dedicar ao trabalho, nunca deixei que as injustiças tirassem o meu estímulo, nunca perdi uma noite de sono pensando no mal que me fizeram.

Hoje, para o desprazer dos meus desafetos, tenho convicção de que a minha ascensão não está nem próximo do que de melhor aconteceu na minha vida; tenho-a, até, como um fardo difícil de carregar, quase insuportável.

O exercício do poder não me fascina, definitivamente. O poder pelo o qual muitos são capazes de matar ou morrer, para mim é apenas um compromisso; nada mais que isso. Saberei, pois, a hora de sair da ribalta e deixar o pano cair. Não sou do tipo que se apega ao poder com unhas e dentes.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

2 comentários em “Brioche, chiclete e arrogância”

  1. Excelentissimo,
    Grandes histórias e belos comentários. O evento ocorrido apenas mostra a vulgarização da meritocracia na magistratura maranhense, onde seguir fielmente a Lei é visto como algo robótico e, as vezes, arrogante. Sendo este, um titulo carregado por V.Exª em sua jornada, infelizmente.
    Continue na perseverança e probidade de sempre. Abraços.
    Visite: http://peregrinodeuminstante.blogspot.com/

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