O dia-a-dia de um magistrado-VI

Ainda recentemente, indignado com a falta de condições de trabalho, prestei informações em um habeas corpus, nas quais manifestei a toda minha revolta com a impossibilidade de se trabalhar.

Abaixo, os principais excertos.

“(…)
Em face as gravidade do crime imputado ao paciente, portanto, é que entendi devesse mantê-lo preso, em homenagem à ordem pública e em respeito à lei vigente.
Anoto que a eventual liberdade do paciente, ainda que pequeno excesso houvesse- e não há, ver-se-á oportunamente – não será compreendida pela sociedade. Entendo – e peço todas as vênias acaso discorde Vossa Excelência desse entendimento – que um pequeno excesso é sempre tolerável, máxime se se considerar que no Maranhão, diferente de vários outros Estados, as coisas foram feitas para não funcionar.

De efeito, em todos os Estados procuram-se meios para que a Justiça responda aos anseios da sociedade com mais rapidez. Aqui, ao que constato, as coisas só pioram – e consideravelmente. E não se vê a adoção de providências por quem de direito.
Nesta vara, da qual sou titular desde o ano de 1994, só tenho visto as coisas piorarem. Nada obstante me esforce, quase nada tenho feito. Ofícios vários já encaminhei – inclusive a Vossa Excelência –denunciando as nossas condições de trabalho. Do Tribunal e da Corregedoria só tenho ouvido – se é possível – silêncio, nada mais que silêncio.
O tempo passa, a sociedade evoluiu e nós, nesse pobre Maranhão, só vemos as coisas piorarem. Enquanto noutros Estados vemos, dias após dias, a produtividade dos magistrados aumentar, aqui, na contramão da história, vê-se a produtividade diminuir. E nada se faz! E não se age! E não se reage! E não se move uma palha! E todos se mantém silentes, num mutismo que traduz, à toda evidência, o espírito dos homens públicos da nossa terra.
Tudo tenho feito para responder aos anseios dos nossos jurisdicionados; quase nada tenho conseguido, nada obstante, por faltar-me as mais mínimas condições de trabalho – a mim e a tudo o mais que gira em torno de mim. E assim vou levando, fingindo que sou útil à sociedade. Fingindo que faço justiça. Iludindo os incautos. Mas sem conseguir me iludir. Sou, por formação, irrequieto, ansioso e insatisfeito. O que conforta alguns, a mim me inquieta. Poderia, sim, aproveitar a falta de condições de trabalho para, como muitos, apenas usufruir do lado bom do poder. Não o faço, entrementes, porque não é essa a minha formação. Não foi pra isso que tanto lutei. Quando deixei o MINISTÉRIO PÚBLICO, fi-lo porque julgava que não tinha liberdade para trabalhar. Iludi-me imaginando que as coisas, no Poder Judiciário, fossem diferentes. Pese tenha liberdade para decidir, a mim me faltam condições materiais para exercer as minhas atividades, como, de resto, devem faltar aos demais colegas. Só que, diferente de muitos, essa situação me inquieta e revolta.
Vejo, hoje, dois Promotores de Justiça designados para esta vara, com tempo de sobra para trabalhar, além de não faltar-lhes apoio. Enquanto as condições deles são absolutamente favoráveis, de meu lado, sozinho, decidindo, lutando em várias frentes, disparando telefonemas para delegacias, IML, Superintendência de Polícia, Centrais de Custódia, Comando da Polícia Militar, oficiando para Corregedoria, apelando para um e para outro vou enfrentando toda sorte de intempérie para decidir. Até quando esse quadro vai perdurar? Várias têm sido as razões pelas quais não consigo desempenhar a contento o meu trabalho. Primeiro, veio a greve dos Defensores Públicos. Em seguida, veio a famigerada Central de Mandados. Após, veio a sua extinção. Veio, em seguida, a substituição dos antigos funcionários pelos concursados. Tudo feito sem o mais mínimo planejamento. Resultado: os feitos restaram paralisados, audiências foram adiadas, réus foram colocados em liberdade, sem que se ouça uma única voz se insurgir contra esse estado de coisas. Fico eu, cá embaixo, lutando para dar resposta aos cidadãos, como contra-prestação pela remuneração que recebo, sem quase nada poder fazer. Fico atormentado, agastado e desiludido. Pobre Maranhão! Pobres jurisdicionados! Pobres vítimas do nosso descaso! 

O quadro cá embaixo é sombrio. Não há carros para as diligências. A polícia não dispõe de condições para atender os nossos pleitos. O IML só trabalha – por faltar-lhe condições – se instado a fazê-lo por nós outros. Incontáveis são os telefonemas que disparamos, todos os dias, aos mais diversos órgãos do Estado buscando solução para esse estado de letargia. As delegacias não têm controle dos presos. As varas da mesma forma. As investigações criminais ficam ao sabor das circunstâncias. As autoridades policiais não têm a quem dar satisfação de suas ações e/ou omissões. Os prazos se excedem nas delegacias. As acusações de tortura e peculato se avolumam. As providências não chegam. E tudo vai ficando com dantes. A produtividade dos juízes não melhora. Os órgãos de controle interno não funcionam. Cada juiz faz o que quer. Ninguém lhes cobra produtividade. As audiências não se realizam. Não se respeitam as testemunhas. Há dias que não tem água nos gabinetes. Há dias que não se tem papel. As audiências são adiadas porque a polícia não dispõe de veículos para fazer o transporte dos acusados. E tudo vai ficando assim mesmo. Nada se faz! Ninguém move uma palha. Marco audiências para todos os dias, pela manhã e pela tarde e não as realizo. Os processos não são julgados. Prepondera a sensação de impunidade. E nada se faz! O que se ouve em face dessa minha tenacidade é que não vou consertar o mundo. O que ouço dizer é que sou arrogante e prepotente, como se ser correto afrontasse os outros. E assim vamos levando! Na marra! Sem carro para diligências, sem apoio logístico, apoquentados, irritados, tristes e, às vezes, deprimidos com o quadro que se descortina à nossa frente.

A sociedade que nos paga assiste, de mãos atadas, a nossa inoperância, a impunidade, a multiplicação da violência, os deferimentos dos pedidos de liberdades dos mais perigosos meliantes, como se fossemos todos insensíveis. É pena que muitos só se dêem conta desse quadro dramático quando um parente sucumbe diante da arma de um meliante. Enquanto isso não ocorre fingimos que não temos nada a ver com isso. Aqui na sétima vara criminal, por absoluta falta de condições de trabalho, com apenas um oficial de justiça, sem apoio logístico e, praticamente, sem carro para realizar diligências, só realizamos, quando muito, três, quatro, às vezes cinco audiências por semana. É essa a nossa situação. E, conquanto tenhamos oficiado, reiteradas vezes, da Corregedoria não veio qualquer solução. E assim vamos levando. Quiçá o meliante que seja posto em liberdade não nos faça a sua próxima vítima.
.
(…)” 

E aí, alguém acha que estou exagerando? Se acha, venha ao meu gabinete de que te provo o que digo com dados irrefutáveis.

 

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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