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“[…] O que todos testemunhamos, estarrecidos, a quase doer, é que as pessoas morrem nas filas dos hospitais em busca de atendimento, como conseqüência do dinheiro desviado; dinheiro que faz a felicidade de uns poucos, em detrimento da maioria. Essas mesmas pessoas – que nomino vítimas do desprezo estatal – , quando, enfim, conseguem ser “atendidas”, são jogadas nos corredores dos hospitais públicos, como se fossem de uma sub-raça, uma subespécie, como se pobre não tivesse sentimento, não sentisse dor, não chorasse a morte de um parente ou de um amigo, como se, enfim, não fosse digno de respeito. Como não se revolta.[…]”
José Luiz Oliveira de Almeida
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Abaixo, a crônica encaminhada para publicação no Jornal Pequeno.
Eu nunca perdi a capacidade de me indignar diante de determinadas situações. Todavia, ainda assim, apesar de tudo que me causa estupor e revolta, encontro tempo pra ser feliz, não obstante admita que, sobretudo nos dias atuais, com as informações batendo à minha porta, não tem sido fácil, sobretudo as que envolvem os homens públicos do meu país.
É impossível, por exemplo, deixar de indignar-me com o mau uso do dinheiro público, sobretudo nas prefeituras municipais. O que temos testemunhado, desde sempre, é que o cidadão assume hoje os destinos de um município, para, amanhã, ostensivamente, esbanjar, ostentar, sem pejo, sem o menor pudor, como se chamasse a todos nós de otários, ciente, tenho convicção, da impunidade. Um dado, para ilustrar: o procurador da República, Travavam Feitosa, disse que o Ministério Público apura desvios de recursos públicos federais em 122 das 244 prefeituras do Piauí. É de estarrecer!
Não posso, noutro giro, deixar de indignar-me com os gastos que são feitos nos pleitos eleitorais. É uma afronta, um desrespeito aos cidadãos que pagam impostos, sobretudo porque sei – sabemos todos, afinal – de onde sairá o dinheiro para cobrir os gastos de campanha, afinal, seria uma rematada tolice supor que alguém faça doações a troco de nada, por ideologia ou em face dos belos olhos ou do sorriso cativante do candidato, convindo consignar que há, sim, exceções, conquanto não sejam muitas.
Diante desse quadro ninguém diz, ninguém faz nada. Parece até que tem que ser assim mesmo, que está tudo bem, que não há meios de se coibir esses abusos. E parece que não há mesmo. Fico com a impressão, diante de tanta inércia, de tanta acomodação, que estamos todos anestesiados, que essas questões, de tão banalizadas, já não afetam a mais ninguém. É de causar insônia!
E o dinheiro da saúde? O dinheiro da saúde se esvai, também, no ralo da corrupção (vide caso FUNASA) e nada acontece. Quando muito vem a público um ou outro político dizer que tudo será apurado e que os responsáveis serão punidos. Pura enganação, deboche, falta de respeito. Tudo ficará como está. Ninguém será punido. Como não se indignar?!
O que todos testemunhamos, estarrecidos, a quase doer, é que as pessoas morrem nas filas dos hospitais em busca de atendimento, como conseqüência do dinheiro desviado; dinheiro que faz a felicidade de uns poucos, em detrimento da maioria. Essas mesmas pessoas – que nomino vítimas do desprezo estatal – , quando, enfim, conseguem ser “atendidas”, são jogadas nos corredores dos hospitais públicos, como se fossem de uma sub-raça, uma subespécie, como se pobre não tivesse sentimento, não sentisse dor, não chorasse a morte de um parente ou de um amigo, como se, enfim, não fosse digno de respeito. Como não se revoltar?!
As desditas, os desmandos não param por aí. Nesse sentido, importa destacar o gravíssimo problema habitacional, que favorece a ocorrência de tragédias como a que testemunhamos, contristados e revoltados, no Rio de Janeiro. Todos os anos é assim, as pessoas humildes, sem onde morar, por pura falta de vontade política( gasta-se mais com reconstrução que com prevenção), sobem os morros, constroem seus casebres, enfrentando toda sorte de dificuldade, para, depois, com as primeiras chuvas, ver seu sonho, sua vida e sua história levados numa enxurrada. É que, nesses casos, as enxurradas não se limitam a levar a casa, a moradia, o abrigo, fisicamente considerados. Elas levam, também, toda uma história de vida, o resultado de muito labor, o suor derramado, as noites insones, os calos nas mãos, os sonhos sonhados, os projetos de vida, as perspectivas e as expectativas de uma vida melhor e mais digna. Com as águas das chuvas de verão são levados, na mesma balada, as fotografias da família, os(poucos) brinquedos dos filhos, a muda de roupa e o sapato engraxado, guardados para as ocasiões especiais. O sofá que reunia a família em torno da televisão, a carteira de trabalho com o registro do primeiro emprego, a mesa de jantar onde degustaram o que era possível num mundo tão desigual, as cartas recebidas dos parentes distantes, as lembranças do casamento e dos tempos de namoro, os presentes, a bandeira do time de coração, o troféu conquistado nos campos de várzea, as (poucas) economias sob o colchão da cama, a própria cama, que testemunhou momentos de entrega, os projetos de vida e a frustração de não poder realizá-los, também são levados pela inclemente enxurrada. Por culpa de quem?!
“Feliz” de quem, diante de uma tragédia como essa que se abateu sobre o Rio de Janeiro, testemunhou serem levados pelas águas da chuva “apenas” a casa, os utensílios domésticos e parte da sua história, permanecendo vivo para tentar reconstruir a sua vida – do zero, do nada, do que não restou, do pouco, do quase nada que ficou. E os responsáveis por essa situação, como ficam?!
Eu não sei encarar com indiferença esses fatos. Eu me entrego, me indigno, me revolto, tomo as dores dessas pessoas, conquanto entenda que nada possa fazer, mesmo porque os que podem fazer nada fazem, cruzam os braços, agem sempre pensando no seu próprio futuro e no bem-estar dos seus e dos que estão muito próximos dos seus. É isso aí. É assim mesmo, sem tirar nem pôr. É assim mesmo que agem os nossos homens públicos, salvante, claro, a exceções que confirmam a regra.
E o amanhã, como vai ser? No próximo verão teremos a resposta. Esperem pra ver.
Eu passaria um dia relatando as coisas que me causam indignação. Não vou fazê-lo agora, entretanto, porque preciso dar uma pausa para voltar a ser feliz, até a próxima notícia que me infelicitará outra vez.
Para que não se dê a esta crônica a dimensão que não tem, anoto que o magistrado é, antes de tudo, um cidadão, e como cidadão tenho o direito de expor as minhas inquietações, com o que, consigno, não afronto nenhuma norma de conduta.
? É desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão
Blog: WWW.joseluizalmeida.com
E-mail: jose.luiz.almeida@globo.com
Caríssimo Dr. José Luiz,
Parabéns pelo texto que, apesar de retratar a dura realidade das vítimas da região serrana e o descaso dos nossos governantes, revela mais uma vez a sua ENORME sensibilidade e a grandiosidade do seu coraçao.
De tudo o que li, destaco o que mais me comoveu:
“O sofá que reunia a família em torno da televisão, a carteira de trabalho com o registro do primeiro emprego, a mesa de jantar onde degustaram o que era possível num mundo tão desigual, as cartas recebidas dos parentes distantes, as lembranças do casamento e dos tempos de namoro, os presentes, a bandeira do time de coração, o troféu conquistado nos campos de várzea, as (poucas) economias sob o colchão da cama, a própria cama, que testemunhou momentos de entrega, os projetos de vida e a frustração de não poder realizá-los, também são levados pela inclemente enxurrada. Por culpa de quem?!”
Infelizmente, não dá para nomear os culpados. E assim, esta pergunta vai ficando sem resposta.
Um grande abraço,
Azenate