Integrantes do Conselho Nacional de Justiça têm discutido um projeto de Proposta de Emenda Constitucional para que logo após a prisão em flagrante, os presos sejam apresentados diretamente ao juiz. Com a entrevista pessoal, e não a mera análise da cópia do auto de prisão em flagrante, especialistas dizem que a integridade do preso seria mais bem garantida.
O defensor público do estado de São Paulo, Carlos Weis, considera a proposta necessária porque cumpre o artigo 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da costa Rica) e 9.5 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que preveem que a pessoa presa seja levada o mais rápido possível à presença do juiz. Ambos documentos foram ratificados pelo Brasil.
“A entrevista física, logo após a prisão, é um compromisso jurídico assumido pelo país, e até agora o Brasil está descumprindo isso”, explica. De acordo com Weis, para cumprir as normas internacionais, já reconhecidas pelo Supremo Tribunal Federal como supralegais, bastaria a regulamentação por ato administrativo do Conselho Nacional de Justiça. Contudo, ele admite que a PEC é um instrumento interessante nesse caso, já que a incorporação “afastaria qualquer dúvida quanto à incompatibilidade do tratado com a Constituição”, que, por sua vez, só prevê que a prisão deve ser comunicada ao juiz.
Segundo o defensor público, a maior utilidade da medida é fazer do juiz um garantidor da integridade pessoal do preso e da legalidade da prisão. Isso porque evita a ocorrência de tortura e outros tipos de tratamentos desumanos, além da corrupção policial, que infelizmente acontecem no país.
O desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Geraldo Prado, explica que levar o preso à presença do juiz não é o mesmo que comunicar a prisão ao juiz. Segundo ele, a diferença está no propósito da primeira, de assegurar a integridade física e psíquica do preso, prevenindo e evitando a tortura, além de possibilitar o controle da legalidade da prisão, incrementando “a responsabilidade de todos os envolvidos com a custódia”, e permitindo o imediato contato do preso com um defensor.
O desembargador observou que a Lei 12.403/2011, de 4 de maio, que institui as medidas cautelares a serem adotadas no lugar da prisão, mantém o regime da “comunicação” e não o da “apresentação”.
Precedentes perigosos
Considerando que essa é uma possibilidade do preso explicar sua versão dos fatos, outro defensor público do estado de São Paulo, e professor da PUC-SP,Gustavo Junqueira questiona: “a quem interessa que o preso em flagrante não seja apresentado diretamente ao juiz?”.
O defensor lembra que Honduras e Equador já foram condenados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por descumprir essa mesma questão. As decisões são baseadas nos princípios do controle judicial e da oralidade, e é considerado que a medida é essencial para a proteção dos direitos a liberdade, vida e integridade. “O simples conhecimento judicial de que uma pessoa está detida não satisfaz essa garantia.” Em Tibi x Equador, o Estado foi condenado porque o cidadão foi apresentado a um “escrivão público” e não a um juiz.
A norma existe nas Constituições da Alemanha e da África do Sul. Na segunda parte do artigo 104 da Constituição alemã está expresso que o juiz, depois de ouvir o detido, deve, “sem demora, emitir ordem escrita de prisão ou ordenar a libertação do detido”. No artigo 35.1 da Constituição sul-africana é dito que os presos em flagrante devem ser levados perante o juiz o mais rápido possível, em até 48 horas depois da prisão.
Prática
O juiz maranhense Douglas de Melo Martins já adota essa atitude nas comarcas em que atua, e comparou um plantão criminal em São Luís no qual praticou a entrevista, com um em que outro juiz não fez o mesmo. No primeira caso foram soltos 53,85% dos presos (21 dos 39 apresentados), e no segundo só 7,14% (2 de 28).
Ele contou o caso de um surdo-mudo preso em flagrante por tentar assaltar uma passageira de um ônibus. Apesar do flagrante estar formalmente correto, o juiz pediu uma intérprete junto ao Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos para entrevistá-lo. Assim, foi informado pelo surdo-mudo de que estava em meio a uma briga com sua esposa e nem percebeu o assalto. Com esse relato, ele ganhou liberdade.
Em outra situação, o dono de um pequeno mercado foi preso em flagrante por receptação porque no seu estabelecimento comercial foram localizados produtos furtados de um supermercado. Ao ser ouvido pelo juiz logo após a prisão, mostrou ter notas fiscais dos itens e foi posto em liberdade.
O juiz considera que o maior dos efeitos da apresentação do preso em flagrante é a inibição da violência policial. Nesse sentido, conta que quando atua dessa forma, não entrevista nenhum preso machucado.
Letra morta
A redação atual do Código de Processo Penal obriga a Polícia a comunicar imediatamente a prisão ao juiz, com o envio da cópia do auto de prisão em flagrante em 24 horas.
Segundo Alexis Couto de Brito, professor de Direito Penal e Processo Penal do Mackenzie, muitas vezes nem essa obrigação é cumprida. Isso porque não há plantão judiciário de 24 horas, e em muitas cidades brasileiras, caso a prisão aconteça em uma sexta feira à noite, a cópia do auto somente será enviada na segunda-feira.
Apesar de observar que do ponto de vista jurídico a medida prestigia os direitos fundamentais e o Estado democrático de Direito, ele diz que a mudança sofre um entrave material.
De acordo com Brito, para se obrigar a apresentação do preso imediatamente deve-se instituir um plantão 24 horas do Judiciário em todas as comarcas do país, pois muitas prisões são efetuadas durante a madrugada, finais de semana e feriados. “Não sei se do ponto de vista prático isto seria possível e daí a alteração poderia ser letra morta, já que apenas algumas cidades poderiam cumprir.”
No que diz respeito à viabilidade da proposta, o defensor público Carlos Weis deixa claro que “é capaz que o Poder Judiciário não esteja apto a entrevistar todos os presos imediatamente, mas isso não significa que não possa ser feito, pelo contrário. O Estado precisa se reorganizar para atender a novas obrigações”.
Inutilidade defensiva
O presidente da Associação dos Magistrados Brasileiro (AMB) e desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Nelson Calandra, discorda da necessidade da medida. “Me parece demasiado, em pleno século 21, quando se fala em interrogatório por vídeoconferência, passar a movimentar presos para cumprir formalidade que só deve existir quando o juiz tem dúvidas, inclusive sobre a integridade do preso, após recebido a cópia do flagrante”, opina.
Para Calandra, a mudança não é muito útil e vai acabar por atrasar mais ainda a instrução processual penal de maneira mais custosa e perigosa, com o transporte e escolta dos presos. Ele lembra que os presos são submetidos a exames médicos antes de serem recolhidos à prisão, e os juízes e membros do Ministério público são obrigados a fiscalizar os estabelecimentos prisionais. Além disso, os advogados sempre podem pedir o relaxamento da prisão, e se o juiz entender necessário, pode requisitar a presença do preso.
Para ele, a grande finalidade da proposta, que a prisão processual só seja decretada quando estritamente necessário, já é garantida pelo ordenamento jurídico atual, inclusive pela lei 12.403, de 4 de maio, que estipula diversas medidas cautelares a serem adotadas antes da prisão.
Calandra lembra que países que adotam a medida como Alemanha e África do Sul são infinitamente menores do que o Brasil, e têm realidades sociais e financeiras muito diferentes. “Temos que procurar resguardar os direitos dos presos sim, mas pelas formalidades já existentes na lei”, expõe.