O artigo que publico a seguir foi encaminhado ao Jornal Pequeno, para publicação no próximo domingo, dia 03.
JUIZ GARANTIDOR – PARTE FINAL
José Luiz Oliveira de Almeida*
Tenho dito, reiteradamente, que nós, magistrados, não podemos, nunca, sob qualquer pretexto, nos nivelar aos marginais, aos que não têm compromisso com a ordem e a lei. Nós, diferente dos delinquentes, que assumimos o compromisso de fazer valer a lei, temos que ter por norte, precipuamente, o respeito à dignidade da pessoa humana, de inegável primazia no âmbito da nossa arquitetura constitucional.
Nós, magistrados, temos que ter compromisso com o garantismo penal – na prática, no dia a dia – , como nossa principal ferramenta de trabalho, tendo por norte o apotegma de que a lei existe exatamente para por limite ao poder desmensurado.
O papel do juiz, tenho insistido, é atuar como garantidor da eficácia do sistema de direitos e garantias fundamentais do acusado no processo penal; processo que só se justifica, importa reafirmar, como garantidor das liberdades do cidadão.
A propósito, Santo Agostinho, citado por Francesco Carnelutti (As Misérias do Processo Penal), adverte, dando a exata medida da relevância do garantismo, que o processo penal é por si mesmo uma tortura. É concluir: tudo o mais é, por assim dizer, tortura em excesso.
Michel Foucault, de seu lado, lembra que, nos dias atuais, permanece um “fundo supliciante” nos modernos mecanismos da justiça criminal; fundo que não está inteiramente sob controle, “mas envolvido, cada vez mais amplamente, por uma penalidade incorporal” (Vigiar e Punir)
O Ministro Celso de Melo, a seu tempo e modo, lembra que “o processo penal não é instrumento de arbítrio do Estado. Ele representa, antes, um poderoso meio de contenção e de delimitação dos poderes de que dispõem os órgãos incumbidos da persecução”(HC 73338-RIO de Janeiro). E decreta, com incomum lucidez: “Ao delinear um círculo de proteção em torno da pessoa do réu, o processo penal se revela um instrumento que inibe a opressão estatal”.
Nessa linha de argumentação, devo dizer que extrapola os limites do aceitável o magistrado que, por exemplo, trata o acusado com arrogância, que o intimida, que o trata com descortesia, que arranca a fórceps uma confissão, que o trata com menoscabo.
O acusado maltratado, encurralado, pressionado, submetido a humilhação pública, por mais “experiente” que possa ser nas práticas delitivas, diz o que não deve dizer, confessa o que não pretendia confessar – “produz”, enfim, provas em seu desfavor, em aberta hostilidade aos princípios constitucionais que dão sustenção ao processo penal num regime de garantias.
De nada adianta, pois, a advertência de que o acusado não está obrigado a se autoacusar (nemo tenetur se detegere) se, ao longo do interrogatório, o juiz o pressiona psicologicamente a fazê-lo, tirando proveito de sua flagrante fragilidade diante do Estado.
O juiz que assim procede, não tenho receio de afirmar, não honra as vestes talares, procede como se marginal fora – por que age, sim, à reboque da lei.
O juiz tem que ter a capacidade de alcançar a verdade, sem escarnecer, sem fazer ameaças, sem intimidar o acusado – sem, enfim, ferir a dignidade do réu e a dignidade do cargo que exerce.
É verdade que muitos meliantes, em face mesmo do crime que cometeram, mereceriam, vivêssemos em sociedade primitiva, castigo igual ao que infligiram às vítimas. Conduto, se isso ocorresse, nos dias atuais, seria a consagração, pura e simples, do talião, de triste memória e inconcebível num Estado Democrático de Direito.
Nós, às vezes é preciso lembrar, não fazemos parte de uma sociedade primitiva, por isso mesmo que o processo não pode ser concebido como instrumento de arbítrio do Estado.
Nos dias atuais, já não se aceita, por exemplo, a tortura – psicológica ou física – como instrumento para alcançar a verdade; nem a descortesia e arrogância, para impor a autoridade.
O juiz que, para alcançar a verdade, usa do instrumento da tortura psicológica, demonstra, à evidência, a sua incapacidade para o exercício do mister.
Muitas, incontáveis foram as verdades que alcancei usando apenas a palavra – redarguindo, questionando, comparando, aproveitando-me das contradições do interrogado e/ou das testemunhas.
Todos que comigo militaram sabem que nunca usei o expediente da intimidação ou da descortesia para alcançar a verdade.
O magistrado garantista não ameaça e não agride, para ouvir da testemunha e/ou acusado aquilo que deseja que digam. Basta pequirir, com o mínimo de inteligência, que a verdade flui, mostra a sua cara, naturalmente.
O magistrado garantidor não deve deslembrar que o processo, nos dias presentes, não está simplesmente a serviço do poder punitivo. Ao contrário. O processo, nos dias presentes, desempenha, importa reafirmar, o relevante papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido.
*Membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão.
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