O medo que mata

O medo, sabe-se, pode matar. Isso todos sabemos. A ansiedade, versão moderna do medo, também mata. A violência – coletiva ou individualizada – é uma espécie de câncer da alma. As vítimas de violência – diretas ou indiretas – correm o risco de desenvolverem algum transtorno emocional.
juiz José Luiz Oliveira de Almeida
Titular da 7ª Vara Criminal

Ainda recentemente, nos autos do processo nº 1600162006, com vários acusados por crimes de roubo e formação de quadrilha, tive a oportunidade de examinar vários pedidos de LIBERDADE PROVISÓRIA, os quais foram todos indeferidos.
Do corpo da decisão que indeferiu os pleitos, transcrevo a seguir excertos relevantes, os quais, imagine, sirvam para refletir, em face da violência que grassa em nossa sociedade.
“(…)

No que se refere ao pleito dos demais acusados, creio que não há a mais mínima razão para restituir a sua liberdade.
Tenho dito, iterativamente, que não se faz concessão a quem comete crime com violência contra a pessoa.
Vivemos, todos sabem, numa verdadeira guerra urbana. Os meliantes infernizam a vida das pessoas de bem. Assalta-se, mata-se, estupra-se, atenta-se contra o puder, furta-se, lesiona-se, mata-se, sem controle, sem peias.
Não se pode, pois, em face desse quadro, fazer concessões a quem sai por aí assaltando as pessoas de bem, fazendo do crime uma habitualidade, disposto a matar ou morrer.
Nem a condição de primário, nem o fato de ser possuidor de bons antecedentes, nem a eventual definição de uma profissão, de um endereço e outras coisas que tais autorizam a concessão da LIBERDADE PROVISÓRIA de quem faz apologia do crime, de quem age sem controle.
Os crimes atribuídos aos acusados são daqueles que marcam indelevelmente a vida das vítimas. Seria um despautério, um destrambelho, uma insensibilidade, pois, fazer retornar ao convívio social quem não sabe conviver em harmonia com os seus congêneres.
Entendo que colocar os acusados em liberdade, sem que se tenha sequer iniciado a instrução, seria um despropósito, uma iniqüidade, uma salacidade, uma zombaria, um desrespeito às vítimas e as pessoas de bem de nossa comunidade. Seria autorizar os acusados a continuarem delinqüindo.
Do magistrado se pode e se deve exigir que seja imparcial. Do magistrado, no entanto, não se pode exigir parcimônia, insensibilidade, indiferença, pusilanimidade. O magistrado deve estar plugado nas aspirações da sociedade. A sociedade, as pessoas de bem, já não suportam tanta licenciosidade, tanta relaxação. Ninguém, em sã consciência, aceita que um assaltante seja preso hoje e colocado em liberdade amanhã.
Todos que militam nesta vara sabem que não faço concessão a criminosos violentos. Não tergiverso. Não sou insensível. Uso, por isso mesmo, com responsabilidade e sofreguidão, os poderes que me foram outorgados, para, se for o caso, segregar quem tenha uma convivência perniciosa em sociedade, ainda que primário e possuidor de bons antecedentes.
O medo e a insegurança minam, acabam com o nosso bem estar, com a nossa qualidade de vida. As vítimas da violência jamais recuperam o seu estado anterior, diferente dos réus, os quais, insensíveis, não se martirizam em face de uma prisão. Quando eles se definem por um assalto, por exemplo, ele já perscrutaram todas as possibilidades, inclusive a de ser preso. O assaltante vai mais longe ainda nessa avaliação prévia das conseqüências de sua ação. Ele trabalha, inclusive, com a perspectiva de matar a vítima. É por isso é que, todos os dias, em nossas casas, assistimos a mídia noticiar o assassinato desse ou daquele trabalhador, que ousou enfrentar um meliante.
Não há mais espaço pra esse tipo de gente em nossa sociedade. Esse tipo de pessoa tem que ser afastada do nosso convívio, pouco importando que seja primário, tenha bons antecedentes ou coisas que tais.
A violência urbana nos desgasta fisicamente, pois que absorvemos, constantemente, os hormônios do stress. A violência, porque mexe com a nossa psique, também muda a forma como vemos o mundo. Todo mundo passa, por isso, a ser uma ameaça, um inimigo em potencial. Por tudo isso, não é justo, não é razoável que se faça retornar ao convívio social, quem, como os acusados, a considerar os dados baseados na fase preambular da persecução, atentaram, de forma acerba, contra a ordem pública.
Vivemos e adotamos uma postura tensa nos ambientes públicos, por conta da ação desmensurada de pulhas que nos afrontam em todas as camadas sociais. Temos, até, dificuldades em nossos relacionamentos, pois que, aos poucos, vamos nos isolando, nos restringindo a viver em nosso ambiente familiar. A nossa capacidade produtiva já está prejudicada, pois que boa parte de nossa energia tem sido gasta nesse contínuo processo de preparação para nos defender dos meliantes.
Não se pode, diante desse quadro, fazer concessões a quem nos afronta a todos, sem pena e sem dó, disposto a matar ou morrer.
O medo, sabe-se, pode matar. Isso todos sabemos. A ansiedade, versão moderna do medo, também mata. A violência – coletiva ou individualizada – é uma espécie de câncer da alma. As vítimas de violência – diretas ou indiretas – correm o risco de desenvolverem algum transtorno emocional.
Disse dessas e de outras evidências, só mesmo um juiz sem compromisso com a ordem pública em geral e com as vítimas de um determinado processo, em especial, colocaria em liberdade quem, de arma em punho, violou a ordem pública.
Ações violentas sobre o psiquismo humano, não se pode deixar de refletir, em face dos fatos albergados na denúncia, são aquelas que afetam profundamente a vida psíquica do ser humano, isto é, que prejudicam o conforto psíquico. Submetida a essas ações violentas sobre o psiquismo humano, a pessoa deixa de ser dona e senhora de seu eu, deixa de governar-se e determinar-se a si mesma, perdendo, conseqüentemente, o domínio de seu ser e de sua liberdade.
Não se pode, por tudo isso, restituir a liberdade de quem surrupiou a liberdade das pessoas de bem.

(…)”

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.