Viver é enfrentar, necessariamente, dissabores, intempéries, injustiças, traições, bonanças e borrascas. Viver é sorrir, ser feliz, ser infeliz, cantar, chorar, sofrer, amar, etc. Essa é uma realidade da qual não podemos fugir. Nada mais elementar, pois. É por isso que, diante de uma dificuldade, de um infortúnio, à falta de outra justificativa, nos limitamos a dizer: “é a vida” ou “a vida é mesmo assim”.
Os dissabores, os maus momentos, a dor, a insônia, a fome, a sede, numa visão puramente maniqueísta, existem para que valorizemos a água que sacia a nossa sede, as noites bem dormidas, os momentos de felicidade e de prazer que a vida nos proporciona. E só mesmo vivendo e convivendo podemos nos defrontar com duas realidades tão díspares, para delas, com o mínimo de inteligência, sorver, apreender e aprender os ensinamentos. É a escola da vida em toda a sua plenitude.
Viver sempre foi assim e assim sempre o será. Não podia ser diferente. Para não enfrentarmos as inquietações e os desgostos que nos afligem, daqueles que, às vezes, apoquentam e hostilizam a alma ao longo da nossa existência e em face da convivência entre os nossos congêneres, só há uma solução: morrer, ou seja, deixar de existir. Todavia, essa é a experiência que ninguém que goze de higidez mental deseja vivenciar, visto que, por pior que sejam, por mais difíceis que sejam os momentos vividos, todos nós preferimos estar vivos e com saúde para enfrentá-los. E, a cada desafio, nós, alunos diletos da escola da vida, nos fortalecemos, nos imunizamos, nos credenciamos para novas batalhas, para novos embates, para novas conquistas.
Mas por que as pessoas que sabem que a vida não é feita só de sonhos, que a felicidade pode ser algo efêmero, e que, mais dia, menos dia, teremos que enfrentar problemas de especial magnitude, nunca estão preparadas para essa realidade? Como seres dotados de inteligência, o que nos falta para compreendermos que a vida não é só prazer, não é só felicidade?
O mundo é um moinho e pode triturar os nossos sonhos mais mesquinhos, como dizia Cartola. Digo eu, parafraseando o poeta, a vida é um moinho e, muitas vezes, tritura os nossos sonhos, mesmo os não mesquinhos. Isso é fato.
Quantos dos meus, dos nossos sonhos esse moinho inclemente e impiedoso já destruiu? Cá do meu lado, sem muito esforço, respondo que já perdi a conta dos sonhos que vi destruídos. Mas não me desesperei, não me apequenei diante da intempérie, não molifiquei, não baixei a guarda, não sucumbi, não autoflagelei. Estou de pé! Altivo, corajoso, destemido, voluntarioso, sonhador. Às vezes, bobo é verdade. Mas bobo todos somos. E daí?
Sou teimoso, empedernido, duro como pedra, quando estão em jogo os meus ideais, os meus sonhos e as minhas perspectivas; obstinado, perseverante, persistente, renitente como uma mula, diriam os menos sutis. Sou tudo isso e, também por isso, continuo sonhando, imaginando, supondo, querendo, lutando, esbravejando, sofrendo, estimulando – e clamando por um mundo melhor. Ah, como me dói uma injustiça! Não lido bem com o malfeito; e do malfeitor consciente tenho, às vezes, aversão. Nutro pelo malfazejo – quanta intolerância! – uma certa repugnância que não condiz com a minha condição de cristão. É um sentimento quase incontrolável. Contudo, eu, com muito esforço, com o que me resta de sensatez, ainda consigo domar esse sentimento menor, que não condiz com a minha condição de pai, de filho e de magistrado.
Sou tenaz, pertinaz e intransigente no enfrentar da ação marginal, sobretudo dos que exercem cargos públicos, dos que usam o poder para triturar os sonhos dos iguais, para fazer o mal, para dele apenas usufruir como se fora patrimônio particular.
Abomino, com veemência, a utilização do Estado para servir aos interesses dos oportunistas e dos parasitas, que nada edificam, que cuidam apenas dos seus interesses pessoais e dos seus, que vêem o poder apenas como uma folgança, uma patuscada. Essa ação marginal é um dos muitos dissabores que a vida me oferece e diante do qual às vezes me julgo impotente. E se o malfazejo, se o malfeitor for um magistrado, aí então a minha repugnância vai muito mais além – chego a ter nojo, asco, ojeriza.
Sonhando, vou vivendo; e vivendo, vou sonhando. Sonhando – vejam como sou tolo! – com uma sociedade mais fraterna, mais justa, menos discriminatória. Sonhando com o exercício pleno do poder para atender as expectativas da sociedade, sobretudo das camadas desprotegidas e abandonadas, mas que servem para ser utilizadas, principalmente, no período eleitoral, como massa de manobra, para encher as praças públicas, para se exporem com bandeiras sob um calor de quarenta graus, sem se dar conta que lhes sugam a força física e moral para se perpetuarem no poder junto ao qual defendem apenas os seus interesses pessoais.
Caindo aqui, levantando acolá, vou levando e vou sonhando, regando os meus sonhos com algumas poucas ações que posso desenvolver para reverter o quadro.
É a vida! Cheia de altos e baixos. Mas como é bom viver, como é bom poder ter a capacidade de pensar e de dizer o que se pensa.
Eu sonhei – e sonho – com uma sociedade mais justa e igualitária. É que sou assim mesmo. Sou meio bobo, meio tanso, quase parvo, um pouco palerma – um sonhador incorrigível. Idiota? Tolo? Ficcional? Utópico? Sei lá! Sou sei que sou assim. Sei que viver é enfrentar dissabores. Mas viver é, também, fazer o bem – olha que belo clichê! – sem olhar a quem.
O que tenho visto ao longo dos anos dedicados à causa pública era para desanimar, para depor as armas, jogar a toalha, entregar os pontos – deixar as coisas acontecerem, enfim, já que, solitário, com uma migalha quase insignificante de poder, quase nada posso fazer para mudar o curso dos acontecimentos. Mas não cedo! Não arredo o pé! Sou todo esperança! Sou a fé materializada! Vou em frente! Um dia, como dizia minha mãe, a casa cai e a coisa muda – outro belo clichê.
Ao longo da minha vida, tenho testemunhado muitas injustiças, às vezes protagonizadas exatamente por quem tinha o dever de ser justo. Mas eu não deixo, ainda assim, que essa triste realidade reduza as minhas ilusões a pó. Sou duro no embate e vou continuar dando uma pequena, diminuta, quase insignificante contribuição para reverter esse quadro. Nem que essa luta se traduza apenas em palavras, como o faço aqui e agora. Sem ódio, sem rancor, sem sentimento de vingança – apenas refletindo e levando adiante a minha mensagem.
Desde que ingressei na magistratura, sonho com o dia em que todos serão tratados da mesma forma. E o que tenho visto, ao longo de tantos anos de dedicação integral à magistratura do meu Estado, dolorosamente, é muita discriminação. Discrimina-se o igual (?) em face da cor, em face da roupa que veste, em face do bairro em que mora, em face da bebida que bebe, em face dos amigos que tem, em face dos lugares que freqüenta.
No caso específico da Justiça Criminal, onde milito há 20 (vinte) anos, a discriminação é mais odiosa, pois que tem – a Justiça Criminal – os olhos voltados apenas para as camadas mais carentes da sociedade. Ignominiosamente os agentes responsáveis pela persecução criminal têm os tentáculos voltados, de forma inclemente até, somente para a população mais carente.
Mas nós não podemos dar um tiro na cabeça por isso. Nós temos que ter a capacidade de, diante dessa inefável realidade, superar os problemas que são superáveis, administrar os que forem administráveis e engolir os que devem ser “sorvidos” – “degustá-los”, até, se possível for.
A verdade é que, pior que viver sem esperança é não ter esperança de viver para assistir ao porvir, não ver o futuro acontecer. Enquanto vida tivermos, devemos lutar para mudar essa realidade, sempre movidos pela esperança e pela fé. E que venham os dissabores, que venha a borrasca, que venham as injustiças, que estou armado contra elas com a minha sofreguidão, com a minha pertinácia, com a minha obsessão e com a minha dignidade. Ninguém vai conseguir me impedir de continuar sonhando. E vivendo. Vivendo a vida intensamente, sempre esperando que, um dia, o sol, definitivamente, nasça para todos.