O JUDICIÁRIO IDEAL E O JUDICIÁRIO POSSIVEL

Assumi a Corregedoria Geral de Justiça determinado a implementar mecanismos que possam ajudar a melhorar a produtividade do Poder Judiciário do Estado do Maranhão. Nesse sentido, há, em elaboração e já implementados, vários projetos sob minha gestão, a partir dos quais, posso afirmar, com alguma segurança, tendemos a melhorar o nosso desempenho.

Impõe-se consignar que, ao assumir, eu não tinha a noção exata das razões pelas quais, em muitas unidades, produzimos aquém do esperado/desejado. Todavia, o fiz consciente de que algo precisava ser feito para melhorar os nossos indicadores.

Os números resultantes de uma avaliação do nosso desempenho pela Fundação Getúlio Vargas, pelo cidadão e pelos próprios advogados (35% da população brasileira avalia a atuação do Poder Judiciário como ruim ou péssima e quando se soma esse índice aos que o avaliam como regular, chega-se ao impressionante índice de 76%, enquanto apenas 21% da população considera que essa atuação é boa ou ótima), reforçaram essa crença, ou seja, de que algo precisava ser feito, para modificar, ou, pelo menos, para tentar modificar o quadro.

Diante de tudo que já perscrutei, de todos os dados de que disponho, dos problemas estruturais que detectei no Poder Judiciário, cheguei a uma óbvia constatação: é uma ilusão imaginar um Poder Judiciário ideal, me levando a concluir que temos que conviver, aqui e alhures, numa perspectiva de Brasil, com o Judiciário possível.

É dizer: com o que temos, fazemos o possível, conquanto admita que o possível, em determinadas circunstâncias, ainda é muito pouco frente a demanda ordinária excessiva, decorrência natural do acesso facilitado ao Judiciário nos dias atuais, e em vista da extraordinária (demanda predatória, por exemplo) com a qual somos compelidos a conviver, sem que saibamos que solução oferecer em face do impacto que ela produz nas nossas taxas de congestionamento.

Fazendo apenas o possível, distante, portanto, do Judiciário que ao menos se aproxime do ideal, estamos fadados a ser mal avaliados, como temos sido, efetivamente, sobretudo pelo cidadão comum, que, descrente, reprime, muitas vezes, a litigiosidade, para buscar, como ultima ratio, uma solução negociada (mediação ou conciliação), sem que se possa descartar a possibilidade, sempre real, do exercício da autodefesa, que, de rigor, deveria ser reservada apenas a situações excepcionais.

Essa constatação revela que tudo que pudermos fazer para melhorar o desempenho do Poder Judiciário ainda será pouco, a impor a todos nós que temos real preocupação com o jurisdicionado a redobrar os nossos esforços no sentido de, na medida do possível, caminhar na direção do Judiciário ideal, distante, ainda, do Judiciário possível que hoje está a serviço da sociedade.

É isso.

O VIDA DO OUTRO IMPORTA

Ninguém tem dúvidas de que vivemos dias mais que estranhos; estranheza que se revela por inteiro quando encaramos com naturalidade o massacre de inocentes nos mais diversos conflitos pelo mundo.

Dúvidas não há, ademais, que, nos dias presentes, as pessoas parecem ter deixado de se importar com as outras, como se fôssemos objetos de descarte.

Nesse sentido, pelo que vejo e sinto, fruto das observações diárias que faço, cada um parece cuidar apenas de si.

A verdade é que, hodiernamente, a sensação que todos temos é que deixamos de ver o próximo como um irmão, e isso me constrange, porque fica em mim a sensação de que vivemos para cuidar apenas das nossas vidas, pouco importando a vida do semelhante.

A propósito, vou trazer à colação uma história real para ilustrar e para que sobre ela reflitamos, porque ela dá bem a dimensão do quanto é relevante a gente pensar no próximo, cuidar do próximo, se importar com o próximo, na medida em que um simples gesto de solidariedade e de cuidado pode mudar a história de vida de alguém.

Pois bem. Montgomery Cliff, ator americano de ‘Um Lugar ao Sol’ (1951), ‘A Um Passo da Eternidade’ (1953) e ‘Deuses Vencidos’ (1958), dentre outros, destacado pela sua estonteante beleza física, sofreu um grave acidente de carro e teve seu rosto deformado, após sair bêbado de uma festa na casa de Elizabeth Taylor, uma de suas melhores amigas.

Em face desse evento, ficou dois anos escondido num quarto de hospital sem querer ver ninguém, em virtude das graves deformações que sofrera no rosto, um dos mais belos do cinema.

Tem-se notícia de que, mesmo depois de ter sido submetido a uma cirurgia plástica, não se sentia bem consigo mesmo, tendo proibido a visita de qualquer pessoa, optando por se isolar, vivendo a angústia pelas consequências do grave acidente.

Apesar da sua determinação em não receber ninguém, um garoto insistia em vê-lo; insistência tenaz que só terminou quando, finalmente, foi recebido pelo ídolo, cumprindo anotar que, depois dela, tudo mudou na vida de Montgomery Cliff, que, acreditem, até voltou a atuar.

O menino que insistia em visitar o ator era ninguém mais, ninguém menos, que Marlon Brando (Omaha, 03/04/1924 – Los Angeles, 1 de julho de 2004); o grande, o eterno e incomparável Marlon Brando, que, tempos depois, seria festejado e reconhecido como o maior ator de todos os tempos, tendo protagonizado filmes marcantes como ‘O Poderoso Chefão’ e ‘O Último Tango em Paris’.

O que se depreende dessa história é que a vida dos outros importa, e que uma simples visita, um abraço aconchegante, um carinho sincero, um gesto revelador de apreço e de solidariedade, em determinados momentos/circunstâncias da vida, podem, sim, com muita probabilidade, mudar a vida de qualquer pessoa.

Não é isso, entrementes, o que se vê nos dias presentes.

Tendemos, sim, ao isolamento.

Tendemos, sim, ao individualismo; cada um cuidando de sua vida, cada um cuidando de si.

Tenho certeza, nada obstante, que o mundo poderia ser outro se nos importássemos mais com o semelhante, daí que não consigo entender por que algumas lideranças, por exemplo, parecem não se importar com as vidas de inocentes que são ceifadas na Faixa de Gaza e na Ucrânia, para ficar apenas nos dois exemplos mais presentes nos noticiários.

É isso.

PERDOAR É ARREBATADOR

Principio essas reflexões com uma afirmação/constatação comezinha, qual seja, de que todos vacilamos na vida.

É impossível, pois, viver sem cometer erros – alguns graves; outros, nem tanto.

A afirmação/constatação decorre de uma obviedade: o verbo vacilar sempre foi conjugado na primeira, na segunda e na terceira pessoas, porque, afinal, somos seres humanos e, nessa condição, viver sem vacilar (rectius: errar) é uma inviabilidade antropológica.

É dizer: eu vacilo, tu vacilas, eles vacilam.

Se é verdade que todos vacilamos, então por que não perdoar o vacilo de outrem?

Por que, na concepção de alguns, uns merecem perdão e outros não?

Por que as pessoas têm tantas dificuldades em perdoar, se o perdão, dentre outras vantagens, contribui para a nossa saúde mental?

Por que, sendo o perdão um ato de amor que transforma, que redime e nos faz melhor, há muitos que ainda se recusam perdoar?

É sobre isso que quero refletir.

E o faço em face das incontáveis vezes que a mim me fizeram – e continuam fazendo – a mesma e inquietante indagação: Por que você perdoou fulano (permitam-me omitir o nome), se ele fez tanto mal a você e a sua família?

A essa insistente/persistente indagação eu respondo com outra, para a qual não me dão resposta satisfatória: Por que não perdoá-lo?

Digo em adição: Por que guardar mágoas se posso delas me libertar pelo perdão?

Vou adiante.

Se o vacilo faz parte da vida, por que as pessoas resistem em perdoar os erros de outrem, conquanto almejem que os seus sejam perdoados?

Nessa toada, importa fazer outra indagação: Há níveis diferenciados de vacilos, de modo que uns devam ser perdoados e outros não?

Se vacilo é vacilo e se perdoar é humano, por que perdoamos uns e não perdoamos outros?

Prossigo questionando.

Para perdoar temos, necessariamente, que passar por um processo de evolução espiritual ou o perdão independe de condições?

Em face dessa indagação, respondo, simplesmente, que perdoar, desde a minha compreensão, é apenas um ato de vontade que leva à libertação, razão pela qual ele não está condicionado a nada a não ser à determinação de perdoar, na medida em que o perdão é, também, um remédio eficaz para a cura da alma.

Nesse sentido, é forçoso compreender que, para além de eliminar ressentimentos, o perdão traz leveza ao coração, a considerar que elimina os sentimentos negativos que eventualmente tenhamos em face de determinada(s) pessoa(s).

Creio, nessa linha de pensar, que não se deve, pois, questionar alguém porque tenha perdoado outrem, na certeza de que o perdão revela um natural e benfazejo amadurecimento do ser humano.

Claro que perdoar não é, pura e simplesmente, esquecer o que passou, todavia, é somente em face dele que nos libertamos das mágoas que inviabilizam a cicatrização das feridas abertas em face dos nossos sentimentos/ressentimentos.

Compreendo que a cura da alma só se dará em face do perdão, ainda que para alcançá-lo passemos por um processo doloroso e, até mesmo, por incompreensões, sobretudo dos que não conseguem entender a dimensão do que significa perdoar o vacilo de outrem.

Para ilustrar, lembro que muitos vacilaram na vida pessoal – Paulo, Cipriano, Margarida, Cássio, Sebastião etc. – e que, ainda assim, foram canonizados pela igreja, são cultuados como santos e a eles são dedicadas festas, altares e procissões, a reafirmar que todos vacilamos e que o perdão, em face dos erros cometidos, antes de causar estupefação, deve ser enaltecido, na medida em que, perdoando, eliminamos os rancores e as mágoas que, admitamos, tornam a vida, também sob essa perspectiva, um fardo difícil de carregar.

É isso.

EM BUSCA DE FELICIDADE

Há notícias de um poema encontrado na parede de um dos quartos onde ficavam as crianças judias no campo nazista de Auschwitz, o qual estaria vazado nos seguintes termos: “Amanhã eu fico triste…Hoje não. Hoje eu fico alegre! E todos os dias, por mais amargos que sejam, eu digo: Amanhã eu fico triste, hoje não!”

Uma das lições que se pode extrair do poema é que, algumas vezes, a felicidade depende da determinação de cada um de nós de ser feliz, ou seja, de optar por ser infeliz outro dia.

Nessa perspectiva, é de rigor a constatação de que, mesmo diante das adversidades que a vida impõe, a melhor decisão é tentar ser feliz, e a felicidade pode estar nas coisas mais simples, como no cheiro de uma flor ou na companhia da pessoa que amamos verdadeiramente.

A felicidade, por óbvio, não depende apenas da nossa vontade; não é tão simples assim. Mas, admito, querer ser feliz é um ingrediente que ajuda muito na consecução desse afã.

Decerto que não basta querer ser feliz para que a felicidade bata à porta; fosse assim todos seríamos felizes.

Todavia, não querer ser feliz, ou se infelicitar com bobagem, reconheçamos, torna a felicidade mais difícil de ser alcançada.

Por experiência própria, acredito que aquele que, por exemplo, busca a felicidade nas coisas simples que a vida oferece, tende a ser mais feliz que o demasiadamente exigente.

Noutro giro, importa admitir que a felicidade, como tudo na vida, não é permanente; e é preciso que todos tenhamos essa consciência, sob pena de tornar uma quimera a pretensão de ser feliz.

A verdade é que, quanto à felicidade, temos-na hoje e podemos, com muita probabilidade, perdê-la logo ali adiante, no primeiro vacilo.

Assim é a vida; essa é uma realidade iniludível.

A verdade é que a vida nos proporciona apenas o desfrute da felicidade instantânea, momentânea, passageira. Mas mesmo a passageira exige de nós o desejo de tê-la, de alcançá-la.

A propósito, Amós Oz, escritor israelense, dizia que o ser humano faz três questionamentos, em razão dos quais pode ou não ser feliz: i) onde vai passar a vida; ii) o que vai fazer para viver; e ii) o que vai acontecer depois de morrer.

Como, provavelmente, nenhum de nós terá resposta definitiva para essas três questões, é de rigor a conclusão, como acima destacado, de que a felicidade, malgrado toda as dificuldades impostas pela realidade, é algo mesmo a ser perseguida, pois o pior que podemos fazer é desistir de buscá-la, a considerar que ela pode estar logo ali, à nossa frente, sem que percebamos, simplesmente porque optamos por não ser felizes.

De tudo que expus acima, o pior mesmo que pode acontecer é desistir de ser feliz, deixar de buscar a felicidade, pois, mais inquietante do que a felicidade momentânea, mais grave que não ser feliz, é a opção de não ser feliz, é não querer ser feliz, daí que, cá do meu canto, na linha de compreensão do poema antes mencionado, hoje eu vou ser feliz, pois amanhã posso não sê-lo.

É isso.

A SOCIEDADE ESTÁ DOENTE

O livro Biografia do Abismo, editora Happer Collins, 2023, e-book do cientista político Felipe Nunes e do jornalista Thomas Traumann, traça um panorama alarmante da polarização política no Brasil, me conduzindo à conclusão de que a radicalização que todos testemunhamos, conquanto graves os seus malefícios, tende a se perpetuar, em face da sua dimensão e profundidade.

O que se conclui dos dados contidos no manual é que, em ambos os espectros políticos – assim nominados esquerda e direita -, o radicalismo ultrapassou as cancelas das discussões/divergências civilizadas, contaminando até os ambientes familiares, impregnando-os de grave toxidade.

A revelar uma das faces mais nefastas da polarização/radicalização, o livro narra, por exemplo, que 43% de um espectro político, e 28% do lado oposto, ficariam infelizes se um filho se cassasse com alguém do outro grupo, a evidenciar que chegamos ao fundo do poço na radicalização da sociedade.

Não é só esse dado que estarrece, nada obstante.

O mesmo livro registra, ademais, que 15% dos chamados conservadores de direita e 16% dos ditos progressistas de esquerda deixariam de ouvir música de um cantor ou cantora que tenha dado apoio ao candidato colocado no espectro político oposto ao que se colocam.

A constatação óbvia é que vivemos num ambiente que, além de polarizado, se radicalizou por demais, disso resultando o clima de intolerância que se esparrama, por via reflexa, em toda sociedade.

Dois episódios, adiante destacados, darão ao leitor a dimensão da intolerância, com pitadas de maldade, que estamos vivenciando, a deixar claro que a sociedade está gravemente enferma e que a enfermidade não se dá apenas em razão da polarização/radicalização política, conquanto seja a sua face mais visível.

Pois bem. Thaís Medeiros, de 26 anos, que teve uma reação alérgica grave, tornando-se depende de cuidados especiais, após cheirar uma conserva de pimenta, tem sido acusada/atacada porque, dizem os detratores, teria, na verdade, cheirado cocaína, cumprindo destacar, de um perfil falso, a perversa afirmação: “Só o povo careta igual a vocês que não imaginavam que sua filhinha cheirava cocaína [e] que isso aconteceu por conta dela ter cheirado pimenta”.

A postagem, claro, teve milhares de visualizações e um número expressivo de comentários do mesmo jaez, a evidenciar que parte expressiva da sociedade está mesmo doente.

O outro episódio – igualmente estupefaciente a reafirmar a constatação supra, ou seja, de que a sociedade precisa urgentemente de tratamento – envolve Lua, filha dos influenciadores digitais Viih Tube e Eliezer.

Lua vem sendo vítima de ataques gordofóbicos nas redes sociais, desde que tinha três meses; ataques traduzidos em falas do tipo “De que adianta nascer rica, mas ser obesa?”. “Tinha tudo pra ser linda, mas é obesa”. “Tadinha”. “Ela vai explodir”.

As reflexões que fiz acima, decorrentes da polarização política no Brasil, e os exemplos que dei em razão dos ataques a Thais Medeiros e a Lua, expõem, a toda evidência, a intolerância que tem permeado a vida em sociedade, potencializada pela da licenciosidade/permissividade das redes sociais, ambientes nos quais o ser humano expõe a sua face mais cruel.

Dados do Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa) revelam que 148 milhões de brasileiros estão no Facebook, 105 milhões no You Tube, 99 milhões no Instagram, e, no X, antigo Twitter, são 19 milhões, cujos usuários, forçoso admitir, não se valem das redes apenas para veiculação, por exemplo, de conteúdos de entretenimento, educação, cultura ou informação, dentre outros.

As redes sociais, ao reverso e ademais, têm servido, lamentável dizer, para dar vazão aos instintos mais perversos que habitam na alma do ser humano, muitas das quais tribalizadas, fanatizadas, calcificadas, “bolhificadas”, impregnadas de preconceito e ódio, a merecer de todos nós o necessário repúdio, e, das instâncias de controle e fiscalização, até onde a legislação permite, a necessária resposta.

É isso.

O CHORO É LIVRE?

O choro, como manifestação visível de uma grande tristeza, de uma dor física ou de uma forte emoção, sempre despertou em mim uma inquietante curiosidade, na medida em que, sendo algo natural, não é encarado com a naturalidade que devia, vez que não é incomum testemunhar as pessoas dele se esquivando, para que não sejam flagradas numa situação que consideram, culturalmente, constrangedora.

Nessa perspectiva, todos já testemunhamos pedidos de desculpas de algumas pessoas que eventualmente tenham chorado em público, como se o choro fosse uma demonstração de fragilidade, algo antinatural, quando, em verdade, é uma reação decorrente de uma instabilidade emocional momentânea a que todos estamos suscetíveis, mas que é vista entre nós, ocidentais, com reserva, diferente do que ocorre no Japão, por exemplo, onde as pessoas costumam chorar ao apresentarem um singelo pedido de desculpas.

Nessa linha de pensar, importa lembrar que todos nós, levados às lágrimas em algum momento da vida, em face de uma descarga emocional, fomos instados pelos nossos pais a “engolir” o choro, porque, na compreensão deles, chorar, além de ridículo e inaceitável, é sintoma de fraqueza, traduzida no aforismo de todos conhecido segundo o qual “homem que é homem não chora”, conclusão que contrasta com a realidade e com a sensibilidade do poeta, para quem o homem também chora, também deseja colo, precisa de carinho, precisa de ternura, precisa de um abraço, da própria candura (Gonzaguinha).

A verdade é que, fruto de uma ancestralidade equivocada, de uma cultura enviesada, fomos criados sob a severa e implacável advertência de que é feio chorar, que chorar é para os fracos, disso resultando que o choro, conquanto livre, segundo máxima popular, se for inevitável, é para ser solitário, para se manifestar intramuros, porque, afinal, se o sol vai raiar, se o dia vai amanhecer e se a lua vai nascer, como simplifica o poeta, não há porque chorar, não há dor que justifique o choro.

Assisti, recentemente, num desses cortes que as redes sociais veiculam, uma participante de um reality show, amargurada, dizendo da certeza que tinha da decepção dos seus pais com o fato de estar chorando, na medida em que teve a sua formação construída a partir do aforismo segundo o qual é prova de fraqueza chorar, a reafirmar as nossas insuperáveis contradições, pois, conquanto se reafirme que o choro é livre, construiu-se, no mundo ocidental, uma cultura segundo a qual não se deve chorar para não dar o testemunho das nossas fragilidades, quando se sabe que o choro nada mais é que uma reação natural do ser humano, seja homem ou mulher, diante de uma situação adversa que a ele (a) inflija dor e/ou sofrimento.

É isso.

COMO UM GATO

Tenho dito, sem surpresa, para os que me conhecem, que, como um gato, não sou do tipo que se entrega ao primeiro afago, ao primeiro aceno.

Esse é um traço marcante – e, às vezes, incompreendido – da minha personalidade.

Se é certo ou errado não sei dizer.

A vida – pessoal e profissional – me ensinou a ser assim, a ter cautela nas minhas relações, por isso pareço – e sou mesmo! – do tipo ensimesmado, opção de vida a qual fui compelido ante algumas amargas experiências pessoais e depois de quase 40 anos lidando com criminosos dos mais variados matizes.

Por ter vivido intensamente os momentos marcantes que me foram proporcionados pelo meu trabalho – somados à minha história de vida pessoal, claro -, e por ter, nessa lida, me defrontado com personalidades díspares e surpreendentes, é que, como uma defesa, aprendi a agir com prudência excessiva nas minhas relações, cautela comparável a dos gatos, cuja personalidade poucos compreendem.

Para iniciar uma relação, com efeito, reflito intensamente, para, só depois, me entregar; entrega que, muitas vezes, se verifico tibieza na pessoa com a qual me relaciono, não chega a se concretizar definitivamente; se ela se concretiza, entrementes, uma vez rompidas todas as barreiras, explodidas todas as pontes, vou ao extremo, me entrego por inteiro.

Não sou mesmo, admito, do tipo simpático, que se entrega ao primeiro aceno. Aliás, tenho até uma certa restrição ao primeiro aceno; tenho sempre a perturbadora sensação de que ele pode ser meramente protocolar – e, na maioria das vezes, é mesmo -, por isso prefiro primeiro a cautela para, só depois, consolidar a relação.

Às vezes, na ânsia de ser simpático, forço a barra, até tento ser o que não sou verdadeiramente, apenas para parecer fidalgo, conquanto, admito, não venda essa falsa percepção de mim mesmo por muito tempo; logo me revelo por inteiro.

A propósito e para ilustrar, Albert Camus, em A peste, e-book, 23ª edição, Editora Record, 2017, narra o comportamento de um ancião, que, todos os dias, depois do almoço, nas horas em que a cidade inteira cochilava, aparecia numa varanda, chamava os gatos que estavam do outro lado da rua, para, em seguida, manifestar seu desprezo por eles, escarrando sobre os mesmos, até o dia que precisou deles para espantar os ratos, e com eles não pode contar.

A lição que se pode tirar da obra ficcional, é que não se deve julgar as pessoas apenas porque são arredias, ensimesmadas e casmurras, sabido que elas podem não ser exatamente o que aparentam ser, na medida em que, “o que é, é, o que não é, não é” (Parmênides), ou seja, é preciso, antes, refletir, aprofundar, prospectar, enfim, sobre aquilo que os olhos apenas percebem, pois sempre há uma verdade subjacente que precisa ser desvendada e também porque há sempre a possibilidade de, um dia, precisarmos dos gatos para espantar os ratos.

É isso.

ERRAR É HUMANO?

Em face da indagação/título desse artigo, respondo afirmando que o aforismo, quando invocado, está, quase sempre, condicionado às conveniências de quem o proclama.

Importa reconhecer, contudo, ser esse o apotegma presente nas nossas relações com o semelhante; princípio de alcance moral que, não raro, se traduz apenas em um sopro, mera força de expressão, dependente, como antecipei acima, das conveniências de quem dele faz uso.

A sentença moral referida, é verdade, permeia as relações sociais desde sempre; às vezes, reafirmo, apenas como uma banalização da expressão, sem consequência prática nas nossas relações, pois que dita, como tantas outras, ao sabor das circunstâncias/conveniências, na medida em que não são poucos os que, ante ao erro ou a uma ação/reação decorrente de uma falsa percepção da realidade, são implacáveis censores.

Os meus sentidos me alertam que o erro só é reconhecido, como próprio da nossa condição de seres humanos, quando cuidamos dos nossos próprios deslizes, para os quais emprestamos toda a nossa complacência, toda a nossa delicadeza e compreensão. É que, verdade iniludível, quando lidamos com os erros dos outros, a eles emprestamos apenas a nossa repulsa e reprovação.

Essas reflexões resultam, portanto, de uma constatação óbvia: nós não encaramos os erros – dos outros, claro – com a naturalidade que o aforismo pretende traduzir, a infirmar outra máxima popular, que complementa a original, segundo a qual se “errar é humano, perdoar é divino”.

Eu mesmo, por diversas vezes, fruto de muita incompreensão, precipitei-me nos julgamentos que fiz em face dos erros dos semelhantes, muitos dos quais menos graves que os deslizes que já cometi, a reafirmar que, se errar é humano, essa constatação/reconhecimento está a depender da posição que nos colocamos diante do erro cometido.

Diante das falhas/desacertos/lapsos dos iguais, para os quais reservamos a nossa avidez punitiva/censória, só somos capazes de refluir, de reavaliar, enfim, as nossas posições, quando, racionalmente, nos colocamos na posição desses mesmos iguais.

A verdade é que tendemos a julgar o comportamento dos congêneres como se fôssemos perfeitos, incapazes de um deslize, como se, na jornada da vida, permeada de vicissitudes, pertencêssemos a uma raça imune ao erro.

Para além de reconhecer que errar é humano, mais importante é ser capaz de perdoar o erro, à luz de uma necessária e inexcedível tolerância, na medida em que, nessa vida, só não erra quem não tentou acertar, por omissão ou covardia.

A questão que se coloca, portanto, e é esse o alvitre dessas reflexões, é saber se, em face do erro do semelhante, que muitos invocam para si como uma decorrência inevitável de nossa condição de seres humanos, somos capazes de, na mesma situação, perdoar quem errou, ou se o perdão é apenas uma manifestação oportunista que depende da nossa avaliação subjetiva e das nossas conveniências pessoais.

A verdade, sabida e ressabida, é que ninguém passa pela vida sem deslizes, pequenos ou grandes, daí por que todos deveríamos, com a mesma sofreguidão e parcimônia com que julgamos/perdoamos os nossos próprios erros, avaliar/perdoar os erros dos semelhantes, sem perder de vista, numa perspectiva filosófica, que o erro, no sentido empregado nessas reflexões, decorre, muitas vezes, apenas de um equívoco de julgamento do espírito.

É isso.