Capturada na Folha de São Paulo

RICARDO MELO

Licença para matar

SÃO PAULO – Não será do dia para a noite que se terá acesso ao que realmente ocorreu no esconderijo do terrorista Osama bin Laden. Mas até a imprensa americana, que desde a Guerra do Golfo trocou o jornalismo pela “embedagem” ao governo, desconfiou do anúncio hollywoodiano da Casa Branca, versão democrata das “armas de destruição em massa” da era Bush.
Os lances épicos da violenta troca de tiros, da mulher usada como escudo, da resistência feroz deram lugar a um enredo bem mais prosaico. Provavelmente houve uma execução, e ponto. Tal descrição não comporta nenhum juízo de valor.
Bin Laden e quem se engaja no terrorismo e no fanatismo religioso têm consciência que o risco de morrer faz parte do (mau) negócio. O prontuário de crimes do chefe da Al Qaeda apontava para este final.
Mas incomoda, para dizer o menos, aceitar como natural a baboseira de Obama e dos europeus, para os quais a “justiça foi feita”.
Como assim? Os EUA invadem um país, fuzilam um inimigo sem julgamento, jogam o corpo do sujeito no mar e estamos conversados. Tudo isso depois de se valerem de “técnicas coercitivas de interrogatório”, eufemismo para tortura com afogamentos. E ainda vem a ONU, candidamente, dizer que “é preciso investigar” se o direito internacional foi desrespeitado.
A lógica política da operação Geronimo é a mesma que preside a intervenção seletiva nos conflitos na África e no Oriente Médio. Gaddafi, o ex-amigo, agora é inimigo, então chumbo nele e na família. Já na Síria não é bem assim, tampouco no Iêmen e na Arábia Saudita -azar de quem nasceu rebelde por ali. Mais uma vez, os EUA tratam o planeta como quintal, e usam a ONU de plateia para as “rambolices”.
Que Obama, um político comum, comemore o ganho de popularidade às vésperas da batalha pela reeleição, é compreensível. Já o resto do mundo dito civilizado assistir a tudo com tamanha complacência apenas sinaliza o que está por vir.

O juiz garantidor – IV

Tenho dito, iterativamente, que nós, autoridades, não podemos, nunca, sob qualquer pretexto, nos nivelar aos meliantes.

Os meliantes, por óbvias razões, não têm compromisso com a lei, com a ordem pública, com a moral, com a ética, com os bons costumes.

Nós, diferente deles, assumimos o compromisso de fazer valer a lei.

Nós, magistrados – sobretudo –,  temos compromisso com o garantismo penal.

Nessa linha de argumentação, devo dizer que extrapola os limites do aceitável o magistrado que, ad exempli, trata o acusado com arrogância, que o intimida na sala de audiências, que o trata com descortesia, que arranca a fórceps uma confissão, que o trata como se marginal fosse; e, ainda que o fosse, não deveria fazê-lo.

O acusado, numa sala de audiência, maltratado, submetido a humilhação, diz o que não deve dizer, confessa o que não pretendia confessar.

De nada adianta, pois, a advertência de que o acusado não está obrigado a se autoacusar (nemo tenetur se detegere) se, ao longo do interrogatório, o juiz o pressiona psicologicamente.

O juiz que assim procede, desde o meu olhar, não honra as vestes talares.

O juiz tem que ter a capacidade de alcançar a verdade, sem escarnecer, sem fazer ameaças, sem intimidar o acusado – sem ferir a dignidade do acusado e a dignidade do cargo que exerce.

O magistrado condutor de um processo tem que ter o equilíbrio necessário para conduzir uma audiência, e  para lidar com os acusados e as testemunhas.

É verdade que muitos meliantes, em face mesmo do crime que cometeram, mereceriam, vivêssemos em sociedade primitiva, castigo igual ao que infligiram às vítimas – mas, se isso ocorresse, nos dias atuais, seria a consagração, pura e simples, do  talião, de trista memória.

Nós não fazemos parte de uma sociedade primitiva.

Nos dias atuais já não se aceita, por exemplo,  a tortura – psicológica ou física –  como instrumento para alcançar a verdade;  nem a descortesia para impor a autoridade.

Não é papel do agente público agir como agem os facínoras.

Juiz que, para alcançar a verdade, usa  do instrumento da tortura,  demonstr, à evidência, a sua incapacidade para o exercício do mister.

Muitas, incontáveis foram as verdades que já alcancei usando apenas a palavra, redarguindo, questionando, comparando, aproveitando-me das contradições do interrogado e/ou das testemunhas.

Nunca usei o expediente da intimidação para alcançar a verdade.

O magistrado garantista não tem o direito de ameaçar o acusado, de bater na mesa, de agredir a testemunha com palavras, porque ela  eventualmente não diga  aquilo que ele deseja ouvir.

Basta perguntar com inteligência que a verdade flui, assoma, mostra a sua cara – naturalmente. A menos que, no caso do acusado, ele opte, de logo, pelo silêncio.

Mas, nesse caso, há outras provas, sobretudo  a testemunhal.

Nessa linha de pensar, devo dizer que me enoja, me causa asco imaginar que um agente do poder público possa se valer de sua condição, de suas prerrogativas, dos aparatos colocados às suas mãos, com o dinheiro do contribuinte, para intimidar, torturar, maltratar, humilhar.

A autoridade que uso desses sórdidos expedientes se nivela ao pior dos marginais -e nós, autoridades, não somos, ou não deveríamos ser, marginais.

Capturada no Consultor Jurídico

Estudo mostra que STF é Corte recursal

Dos 1,2 milhão de processos que chegaram ao Supremo Tribunal Federal entre 1988 e 2009, só 0,5% tratam do controle de constitucionalidade; 7,8% são de classe ordinária e 91,7 são recursais. De acordo com um estudo feito pela FGV-RJ, a corte constitucional brasileira está muito mais próxima de ser uma “corte recursal suprema”.

O levantamento foi coordenado pelos professores Joaquim Falcão e Pablo Cerdeira. Segundo Falcão, com a Constituição de 1988, passaram a existir 52 classes processuais por meio dais quais é possível propor uma ação no STF, das quais 37 ainda estão em uso. “Nós pesquisamos em outros países e vimos que nenhuma outra nação tem 37 classes processuais. É uma casa em que você tem que fechar 37 portas todos os dias à noite”, afirmou.

“A diversidade de acesso do Supremo, que inicialmente pode parecer positiva, na verdade dificulta o trâmite da Justiça na medida em que a torna mais morosa e lenta. Os processos se acumulam e os cidadãos têm a sensação de impunidade. O Supremo não pode decidir todos os processos da Justiça brasileira”, afirma Cerdeira.

Do total de processos que entraram no STF durante o período analisado, 1.132.850 já foram julgados e 89.252 ainda estão em tramitação. A divulgação do estudo coincide com o lançamento do site www.supremoemnumeros.com.br, que atualizará permanentemente os dados do Supremo. A cada quatro meses será divulgado um relatório.

Responsáveis
O estudo também mostrou que o setor público é a origem de 90% de todos os processos em tramitação na Suprema Corte, e o Poder Executivo Federal é o maior usuário, com 68% dos processos. Dentre os 12 maiores litigantes, a única empresa privada é a Telemar. Só a Caixa Econômica Federal, União e INSS correspondem a 50% dos processos.

Pequenos
Até mesmo os juizados especiais, criados para resolver conflitos de forma mais célere, parecem estar se transformando em mais um caminho de acesso ao Supremo e atualmente já são responsáveis por 8% dos casos em tramitação na Corte. A situação se agravou a partir de 2002 e 2003, quando o STJ entendeu não ser competente para julgar questões decididas pelas turmas recursais, e o STF entendeu ser competente para tal.

PEC
De acordo com o pesquisador Pablo Cerdeira, “os dados refletem a importância da sociedade aprofundar as discussões referentes à Proposta de Emenda Constitucional dos Recursos”. Caso aprovada, a medida prevê o início da execução judicial após a decisão em segunda instância.

Dos casos julgados no STF, 86% já foram decididos em pelo menos duas instâncias. O dado aponta que na maioria das vezes o processo só tem uma definição quando é julgado pela Corte. “Isso significa que, apesar de a Constituição estabelecer o direito a dois julgamentos, na prática se garante no mínimo o triplo grau de jurisdição, às vezes até mesmo o quádruplo”, afirma Cerdeira.

Vinculação
A Súmula Vinculante e a Repercussão Geral garantiram que o STF revertesse o crescimento constante de processos recursais. Em apenas três anos, de 2007 a 2010, o total de processos caiu de mais de 110 mil ao ano para cerca de 30 mil. Apesar desse resultado, os pesquisadores indicam que o número ainda é alto. A Suprema Corte Norte-Americana, por exemplo, recebe cerca de 7 mil processos por ano e julga aproximadamente 100.

Os resultados da pesquisa indicam que o STF tem capacidade para lidar com apenas 50% dos processos que chegam com preliminar de repercussão geral. Ou seja, o número máximo de casos que a Corte poderia atender seria a metade dos mais de 30 mil processos que recebe atualmente. Se nada for feito, os pesquisadores acreditam que haverá um novo acúmulo de processos em breve.Com informações da Assessoria de Imprensa do Supremo Tribunal Federal.

Decisão moralizadora

O Tribunal de Justiça, na sessão de ontem, deliberou pela não inclusão do nome da candidata Sheila Silva Cunha na relação dos aprovados no último concurso para ingresso na carreira de Juiz de Direito.

Há fortíssimas suspeitas de fraude na revisão de sua prova, alcançada via mandado de segurança.

As denúncias são graves e devem ser apuradas, pois envolvem várias instituições.

Ao que pude aferir, prima facie, a revisão da prova da candidata, em face da ação isolada de um membro da comissão, representante da OAB,  malferiu, a um só tempo, os princípios da legalidade, da moralidade, da impessoalidade e da isonomia.

O episódio, pelo que contem de vergonhoso, a confirmarem-se as denúncias,  está a merecer veemente repúdio de todos nós.

A decisão, até onde pude ver, não teve nenhuma repercussão nos blogs da cidade.

Não tenho dúvidas de que, tivesse sido incluído o nome da candidata, hoje estaríamos todos sendo crucificados, mesmo aqueles que tivessem se insurgido contra.

Como estão tratando o pequeno traficante

Imaginou-se que, com a edição da lei 11.343, sobre tráfico de drogas, diminuiriam as prisões em face do usuário. O que se constata, no entanto, passados mais de cinco anos de sua vigência, é que  o número de  presos por tráfico aumentou em 62%, de 2007 a 2010,  segundo estudo feito pelo professor Pedro Abramovay, professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas, e Carolina Haber, professora de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Surpreendentemente, segundo estudo feito pela UFRJ e UNB, o perfil dos presos por tráfico de drogas nas duas cidades: na maioria são pessoas  sem antecedentes criminais, que não portavam armar, estavam sozinhas e com pouca quantidade de droga.

O juiz Walter Nunes, membro do CNJ,  diz que esses “são meros intermediários, e não os comandantes do crime organizado“.

E arremata, com razão: ” quando focamos a atuação nos usuários e pequenos traficantes, não estamos combatendo com eficácia esse tipo de crime”.

Na 1ª Câmara Criminal não temos levado ao cárcere os traficantes ocasionais. Entendemos ser a medida mais adequada, em face dos efeitos deletérios do cárcere.

A matéria completa pode ser lida na revista Época, desta semana.

E o devido processo legal?

Desde que anunciaram a morte de Osama Bin Laden tenho dito, em conversas informais, da minha preocupação com a afirmação do presidente do Estados Unidos de que, finalmente, foi feito justiça.

É claro que um terrorista como Osama Bin Laden deve responder, sim, pelas atrocidades que protagonizou. Agora, dizer, para o mundo ouvir, que a execução de um terrorista é fazer justiça, convenhamos, é de uma insensatez – pra dizer o mínimo – à toda prova, sobretudo se a afirmação é feita pelo presidente da maior e mais importante nação do planeta.

Amanhã um cidadão americano executará um desafeto, sem direito a defesa, e dirá, num Tribunal, que apenas fez Justiça; a Justiça que aprendeu a fazer com o presidente do seu país.

O professor Nick Grief, da Universidade Kent, disse, ao jornal britânico Guardian, a propósito, que a ação da qual resultou a morte do terrorista foi “um assassinato extrajudicial”.

Diz, mais adiante: “até os criminosos nazistas tiveram um julgamento“.

É claro que, em face dos atentados de 11 de setembro,  todos os povos civilizados, de rigor,  clamavam pela captura do terrorista. Mas é claro, também, que ninguém, minimamente civilizado, pode concordar com uma execução sumária, em face  mesmo dos precedentes que do ato decorrem.

É claro que os favoráveis à execução, levados pela emoção, dirão: que devido processo legal que nada! Devido processo legal é pra pessoas de bem!

Fazer o quê?

O presidente Barack Obama disse, depois da execução, que o mundo , agora, estava mais seguro. Duvido! O mundo nunca esteve tão inseguro.

Mas vamos  esperar para ver, afinal análise política não é a minha praia.

O que eles disseram

Retrato de um Brasil diferente

Gastei um dia para digerir os dados do Censo. Segundo o IBGE, metade dos moradores do país ainda não tem esgoto tratado nem água encanada. Garotos de menos de 15 anos chefiam mais de cem mil famílias, o crescimento da população nas favelas  é duas vezes maior que na cidade formal, milhões vivem com luz clandestina e 60% do  povo vivem com salário mínimo. A única notícia boa para os homens é que está sobrando mulher. Mas, infelizmente,  devido à criminalidade, que os mata cedo demais.  Definitivamente, o Brasil do IBGE é completamente diferente daquele mostrado nos noticiários de  TV e nos discursos dos políticos.Qual o país está valendo, qual deles eu estou sustentando com meus tributos?

Alessandro Fernandes, Rio

Juiz garantidor-III

Tenho testemunhado, até com certa frequência,  que determinados magistrados decretam prisões provisórias  sem  a necessária fundamentação ou, quando muito, com esteio em  considerações abstratas acerca da necessidade da medida extrema.

Esses mesmos magistrados, não raro, solicitadas as informações de praxe,  tentam, com elas,  justificar as razões do decreto, i.e.,  “fundamentam” o decreto com as informações,  como se essa  obrigação – que, todos sabem, deriva da nossa Carta Política –   só se mostrasse necessária na eventualidade de ser questionada a constrição.

Para mim, conquanto respeite os argumentos contrários, não age com o desvelo necessário e nem atua em harmonia com os preceitos constitucionais, o magistrado que procede desta forma.

Essa constatação é  grave,  na medida em que o impetrante, como sói ocorrer,  não se insurgiu em face das informações – cujo teor só vem a saber muito tempo depois -, mas em face do decreto que entendeu  estar em desarmonia com a ordem legal.

Acolher, desde a minha compreensão, as informações prestadas pela autoridade apontada coatora, a guisa de fundamentação, é, a meu sentir, compactuar com o espezinhamento da Lex Fundamentalis.

Há de se compreender que somente um decreto  circunstanciado, com base em dados concretos, donde se vislumbre, sem a mais mínima hesitação, a justificação da medida extrema, tem o condão de prosperar, em tributo  às franquias constitucionais do paciente.

Não é lícito, repito, em sede de habeas corpus, sabidamente de cognição sumária, “fundamentar” uma prisão  com as informações prestadas; e muito mais ilícito, ainda, é decidir, em segunda instância, com esteio nessas mesmas informações, sabido que as razões do madamus são gestadas em face do decreto que se pretende revogar e não  em face das informações prestadas pela autoridade apontada coatora.

Tenho entendido, adotando a linha de argumentação que julgo mais consentânea com a nossa Carta Política, que ao Tribunal é defeso suprir as deficiência ou a ausência do decreto de prisão, pois que tem o dever de fundamentar a decisão é quem a subscreve e não o Tribunal junto ao qual se pede a proteção legal contra eventuais constrangimento ilegais, decorrentes da decisão que se pretende revogar.

A prisão preventiva, nunca é demais repetir, é medida excepcional a exigir, por isso mesmo, fundamentação idônea e oportuna, amparada,  sempre, em elementos concretos que justifiquem a sua necessidade, não bastando, tenho dito, a simples alusão a qualquer das hipóteses do artigo 312 do CPP – e muito menos fundamentá-la  a destempo, ou seja, por ocasião das informações, requisitadas à autoridade apontada coatora.

Desfundamentado o decreto, é injustificável a manutenção da prisão, ao argumento de que, nas informações, o juiz justificou as razões da medida extrema.

Tratando-se de prisão processual, é de se compreender que só restará fundamentado o decreto que demonstre, quantum satis, que a segregação atende a pelo menos um dos requisitos do artigo 312 do CPP, sem o que a presunção de não-culpabilidade deve prevalecer, até o momento do trânsito em julgado da sentença condenatória.

Ao decretar uma prisão preventiva ou ao determinar-se pela manutenção de uma prisão em flagrante, a autoridade judicial nunca pode perder de vista a lição de Ferrajoli, segundo o qual a prisão cautelar é uma pena processual, em que se castiga primeiro para, só depois, se processar.

E que não se deslembre, ao lume da lição de Ferrajoli, que o preso provisório, pelo menos no Brasil, está em situação pior  do que o preso condenado em definitivo, vez que, na prisão cautelar, não há regime semiaberto ou saídas temporárias.

Por tudo isso é que a autoridade judiciária tem o dever de fundamentar a decisão acerca da prisão provisória, sobretudo porque o preso cautelar pode, alfim e ao cabo da instrução, ser, inclusive, absolvido.

Nós, magistrados, diferentes dos cidadãos comuns, não podemos nos iludir com a justiça instantanea que parece decorrer das medidas cautelar restritivas de liberdade.

É claro que, para o povo, sedento de justiça, desgastado em face de tanta violência e em face das notíciais que dão conta do desvio sistemático de verbas públicas, as prisão provisórias são um alento. Nós, magistrados, no entanto, só devemos delas fazer uso na medida de sua real necessidade, pois a prisão provisória, num sistema garantista como o nosso, não pode ser inculcada junto à população como se fosse uma panáceia,   e nem pode, de outra banda, substituir a pena decorrente de uma sentença condenatória, com decisão transitada em julgado.

É assim que penso. É assim que tenho decidido.