Matéria do Migalhas Jurídicas

Câmara aprova honorários para advogados públicos no novo CPC

A maioria contrariou a orientação das principais bancadas e do governo e rejeitou, por 206 votos a 159, o destaque do PP que pretendia retirar esse ponto do texto.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014 

A Câmara aprovou nesta terça-feira, 4, o dispositivo do novo CPC (PL8.046/10) que autoriza o pagamento de honorários para advogados públicos, na forma de uma lei posterior. A maioria contrariou a orientação das principais bancadas e do governo e rejeitou, por 206 votos a 159, o destaque do PP que pretendia retirar esse ponto do texto. A votação foi acompanhada das galerias por advogados públicos, que comemoraram o resultado favorável.

Os deputados também rejeitaram em plenário um destaque do PDT que pretendia ampliar as atribuições dos oficiais de Justiça, permitindo que eles atuassem como conciliadores.

A votação dos outros pontos, como a mudança no regime de prisão do devedor de pensão alimentícia e a emenda para restringir a penhora de contas bancárias e investimentos ficou para esta quarta-feira, 5, em sessão marcada para as 10 horas. Ao todo, foram apresentados aproximadamente 40 destaques ao projeto, cujo texto-base foiaprovado em novembro passado.

Honorários

O relator do projeto, deputado Paulo Teixeira (PT/SP), defendeu a proposta ao lembrar que outras categorias de servidores públicos também recebem gratificações vinculadas ao desempenho. “Temos, no Estado brasileiro, carreiras que têm remuneração por desempenho – na Receita Federal, nas universidades. Os médicos podem ter duplo vínculo, professores recebem extra por desempenho”, disse.

Os honorários são pagos ao governo nas ações em que ele é vencedor. A parte perdedora é condenada a pagar um percentual do valor da causa como honorários. Hoje, o dinheiro vai para o cofre do governo, mas o novo CPC permite que ele seja repassado ao advogado público, na forma de uma lei futura. Alguns estados e municípios já permitem essa partilha. “Esse recurso deixa de ter o seu propósito maior, de remunerar o advogado, ao ir para o orçamento do governo”, disse o deputado Marcos Rogério (PDT/TO).

As três maiores bancadas da Câmara – PT, PMDB e PP-Pros – indicaram o voto contrário aos honorários, mas foram derrotadas. O líder do PMDB, deputado Eduardo Cunha (RJ), disse que criar essa obrigatoriedade pode incentivar os advogados públicos a manter ações apenas para ganhar honorários. “Somos contra criar essa compulsoriedade dentro do CPC, pois pode estimular as demandas judiciais em detrimento de diminuir as ações”, disse Cunha. 

O líder do governo, deputado Arlindo Chinaglia (PT/SP), lembrou que tribunais têm posição consolidada contra o pagamento de honorários para servidores públicos. “Esses tribunais têm jurisprudência pacificada de que honorários pertencem ao patrimônio da respectiva entidade pública”, afirmou.

Jogo esquizofrênico de poder

“[…]Mas acho que todos devemos, com as nossas ações, sem exceção, dar  bons exemplos,  sobretudo para novos magistrados, na certeza que eles, no futuro bem próximo, haverão de repudiar a pantomima, o jogo esquizofrênico de poder,  mercê de uma nova mentalidade que aos poucos vai se consolidando a olhos vistos[…].”

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Antes, um fato histórico, a guisa de introdução.

Pois bem. O acampamento de Cândido Mariano da Silva, futuro marechal Rondon, em Mato Grosso, foi atacado, em 21 de outubro de1907, pelos índios nhambiquara. Uma das flechas atingiu a bandoleira de couro de sua espingarda e outra feriu Rio Preto, o seu cão de caça. Cândido Mariano espantou os agressores com disparos feitos para o alto. Depois disso, travou uma luta íntima entre o desejo de vingança e a ponderação humanitária; optou pela última.

Agora, um fato atual.

Não sou do tipo vingativo! Não guardo mágoas! Não tenho ódio no coração! Por isso, imagino, sou feliz. Tudo o que se possa fazer em detrimento da minha pessoa, não abalará jamais as minhas convicções. Estou no exercício de uma ínfima parcela de poder, convicto de que sou servidor público; estou, portanto, a serviço do público e não a serviço dos meus interesses ou dos interesses de quem quer que seja. É assim que penso; é assim que tenho conduzido a minha carreira, na certeza de que, por ser assim, sou, muitas vezes incompreendido, afinal, para muitos, estar no poder e dele não tirar proveito é uma babaquice.

Ainda ontem conversei com uma colega dileta sobre a eleição para o Órgão Especial do Tribunal de Justiça, que ficou surpresa quando lhe relatei os bastidores do foi gestado para me alijar da disputa; que nem precisava, pois eu já me imaginava fora da disputa, pelas razões que todos conhecem. Mas era razoável que se deixasse que cada um fizesse a sua escolha, livremente.

Faço essas reflexões para registrar que, apesar de tudo, continuo com os olhos voltados para o bem da instituição, para servir a comunidade, independentemente de minhas eventuais mágoas em face de alguma ação pouco elogiável deflagrada contra a minha pessoa.

Não terei uma história profícua e exemplar como a do marechal Rondon, que não deixou que um sentimento de vingança modulasse a sua ação em face do ataque sofrido.  Mas acho que todos nós devemos, com as nossas ações, sem exceção, dar  bons exemplos,  sobretudo para novos magistrados, na certeza que eles, no futuro bem próximo, haverão de repudiar a pantomima, o jogo esquizofrênico de poder,  mercê de uma nova mentalidade que aos poucos vai se consolidando a olhos vistos.

Diante desse quadro, importa consignar que, se tenho de escolher entre a vingança e o perdão, prefiro perdoar quem trabalhou para me alijar da disputa; é o que de melhor posso fazer para o bem da instituição, que não tira nenhum proveito quanto as regras do jogo  são solapadas para atender a caprichos de quem não tem a exata dimensão do que seja uma disputa isenta e democrática.

O poder que fascina e entorpece é o mesmo que cega

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“[…]Eu não pretendo, por dinheiro ou poder, mutilar a minha alma. Para não fazê-lo, precisaria ter a paciência que tiveram os colegas que passaram pela presidência do Tribunal de Justiça, muitos dos quais açoitados, fustigados, provocados , dentre outras coisas, pela petulância, pela falta de noção de limites dos que comandaram a Corregedoria-Geral de Justiça, louvando-se aqui, para ser justo, as exceções[…]”

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Eu vivo sempre a obsessão de nunca ter que, por conveniências pessoais, negar as minhas convicções. A menos, claro, que me convença de que estou trilhando o caminho errado. Nesse caso, não hesitarei em recuar, afinal, como dizia o Barão de Itararé, só não muda de ideia quem não tem ideia para mudar.

Olhando em volta de mim, vejo, por exemplo, que jamais terei habilidade e paciência para dirigir o Tribunal de Justiça do meu Estado. Talvez por isso eu não faça nenhuma projeção para o futuro nesse sentido.

Admiro, sim, os que têm a capacidade de driblar as dificuldades, conciliar os interesses de muitos, para dirigir. Para mim esse seria um sacrifício injustificável. Eu não me submeteria a ele, sobretudo a par da convicção de que, no caso do Maranhão, são 27 colegas alguns dos quais a fazer reivindicações as mais diversas, muitas das quais inviáveis de deferimento.

Imagino que, na condição de presidente, ou para chegar à presidência, talvez precisasse negar algumas das minhas convicções, e, confesso, não me vejo com essa flexibilidade, por isso admiro os colegas que passam incólumes pela direção da casa, máxime quando conseguem conviver em harmonia com os corregedores, que, historicamente, são um calo no sapato dos presidentes.

Como sabemos, Nicolau Copérnico defendeu a Teoria Heliocêntrica (a terra e os demais planetas giram em torno do sol) refutando, no mesmo passo, a Teoria Geocêntrica (terra com centro fixo). Galileu, Galilei embarcou na canoa de Copérnico. Foi acusado de herege por defender o heliocentrismo. Foi obrigado a negar as suas convicções. Não deve tê-lo feito de bom grado. Ninguém recua de suas convicções sem mutilar a alma.

Eu não pretendo, por dinheiro ou poder, mutilar a minha alma. Para não fazê-lo, precisaria ter a paciência que tiveram os colegas que passaram pela presidência do Tribunal de Justiça, muitos dos quais açoitados, fustigados, provocados , dentre outras coisas, pela petulância, pela falta de noção de limites dos que comandaram a Corregedoria-Geral de Justiça, louvando-se aqui, para ser justo, as exceções.

A verdade é que os tempos mudam, mas há pessoas que não mudam com o tempo; não têm a exata noção de limites, não sabem até aonde podem ir, numa inequívoca demonstração de que poder não é para todo mundo; por isso o mundo explodiu em guerra, por isso o holocausto.

As pessoas vivem, mas não aprendem. O poder, assim como fascina, também cega.

Capturada no Consultor Jurídico

JUSTIÇA CRIMINAL

“Índice de concessão de HCs no STF justifica atuação da corte”

Por Pedro Canário

Há um “autismo completo” quando as autoridades brasileiras decidem discutir o sistema carcerário do país. Na análise do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, existe uma infinidade de ideias, que não são difíceis de implantar e podem atenuar o problema, mas que nunca saem do papel. O motivo, dispara, é o “jogo farisaico” do qual participam União e estados: este diz que não tem verba suficiente para tratar do problema como deve; aquela alega que pode ajudar, mas que não tem nada com isso.

Quando foi presidente do Conselho Nacional de Justiça, o ministro pôde ver de perto o tamanho do problema do sistema carcerário e concluiu que, na verdade, não se trata de um problema carcerário. “É um problema de segurança pública, e todos temos que nos envolver”, insiste. E por “todos” quer dizer todos mesmo: Executivo, Legislativo, Judiciário e sociedade.

Dados do Departamento Penitenciário Nacional, o Depen, do Ministério da Justiça, mostram que o Brasil hoje tem 550 mil presos. Desses, cerca de 220 mil, ou 40%, estão em prisão provisória. Ou seja, estão presos aguardando uma decisão condenatória. Para o ministro Gilmar Mendes, “isso fala mal da Justiça Criminal, e fala que o sistema precisa de reforma”, conforme afirmou em entrevista à revista Consultor Jurídico.

À frente do CNJ, o ministro acompanhou casos de pessoas presas há mais de dez anos ainda sem condenação, ou, pior, pessoas que já haviam cumprido suas penas mas continuavam encarceradas. Por isso criou o Mutirão Carcerário, grupos de servidores do Judiciário que iam, em regime de força-tarefa, aos estados para mergulhar nos processos criminais com réus presos e fazer o acompanhamento da situação.

Hoje, o problema continua. E as soluções apontadas pelo ministro continuam as mesmas: fazer os inquéritos policiais andarem, para que os crimes cheguem aos tribunais e, depois, fazer os processos andarem. Outra medida é ampliar as penas alternativas e investir mais em outras formas de medidas cautelares. Mas o que pode mesmo ajudar é pôr as ideias em prática.

Como avalia o ministro, os estados reclamam que não têm verba, mas o Fundo Penitenciário Nacional (Funpen), do governo federal, já dispõe de R$ 2 bilhões, que não é reclamado pelas administrações estaduais. E “as autoridades do Ministério da Justiça falam como se estivessem falando do sistema carcerário da Bolívia. O Maranhão é no Brasil”. 

Em visita à redação da ConJur, em São Paulo, o ministro falou aos jornalistas Márcio Chaer, Maurício Cardoso, Marcos de Vasconcellos e Elton Bezerra.

Leia a entrevista:

ConJur  — Anos atrás, quando se falava em ativismo judicial, havia certo entusiasmo, até aplausos. Hoje parece que a coisa está se revertendo, o senhor não acha?
Gilmar Mendes — É preciso ter muito cuidado com isso. A Constituição confere tarefas muito diferenciadas para o Judiciário. Por exemplo, o controle da omissão, que é uma inovação radical da Constituição de 88. Criaram-se dois instrumentos para isso: a ação direta por omissão e o mandado de injunção, que é uma ação de caráter individual. Claro que, aqui, o constituinte está querendo que o Judiciário supra as omissões existentes, ou concite o Legislativo a fazê-lo. Ou mesmo que eventualmente edite normas provisórias. Quer dizer, como não ser “ativista”, por assim dizer, nesses contextos? Diante de omissões, às vezes, históricas, de legislações que nunca se editam. Ao mesmo tempo, sabemos que legislações muito complexas não serão editadas pelo Judiciário.

ConJur — Por quê?
Gilmar Mendes —
 Porque elas envolvem aspectos orçamentários, escolhas e ponderações. São regras de transição que dificilmente poderão ser feitas pelo Judiciário. E quando o Judiciário intervém, acaba provocando problemas. Vide o caso dos precatórios, em que o Legislativo tinha encontrado um modelo de parcelamento, o CNJ regulamentou, veio o Supremo e declarou inconstitucional. Depois se descobriu que os governos municipais passaram a não pagar nem aquele mínimo estabelecido, porque, não podendo pagar o máximo, também não pagavam o mínimo.

ConJur — Isso até que se decida pela modulação.
Gilmar Mendes — 
Até que se decida pela tal modulação. Coube a nós o papel – estranho, para dizer o mínimo – de dizer que, enquanto não vier a definição da modulação, que fique em vigor a regra que declaramos inconstitucional. Então foi um gol contra do ativismo. É aquela coisa de “calcemos as sandálias da humildade”, um caso atípico.

ConJur — Como o senhor avalia esse movimento da classe política procurar cada vez mais o Judiciário para resolver seus problemas, inclsuive os institucionais?
Gilmar Mendes —
 Talvez seja porque não haja instâncias de solução. Talvez os conselhos, conselhos de líderes, comissões de líderes etc. não estejam funcionando a contento, o que leva a um esgarçamento. E aí tudo acaba num mandado de segurança no Supremo. É o que tem acontecido. Falta de um diálogo institucional no âmbito do próprio Congresso. Essa, talvez, seja a causa. Agora, por que é que isso ocorreu? Talvez porque tenhamos muitos partidos, muitas forças políticas, e talvez as próprias lideranças congressuais já não tenham condições de arbitrar muitos desses conflitos.

ConJur  — Mas muito se fala sobre a judicialização da política como um aspecto negativo.
Gilmar Mendes —
 Um dado é inevitável: a possibilidade de impugnar leis em ADI é bastante ampla. No caso do parlamentar, basta o partido com um representante em uma das casas para entrar com a ação. No Congresso, essa voz vale pouco. Então, quem estiver na oposição a um projeto aprovado, obviamente que vai tentar derrubar no Supremo. Agora, fala-se muito em judicialização em relação às questões políticas, desentendimentos quanto a projetos, modelos de regimentos, etc. Nesse caso, me parece que é mais um esgarçamento, uma falta de legitimidade do próprio processo político.

ConJur — O STF caminha para ser uma corte puramente Constitucional?
Gilmar Mendes —
 Isso não existe. O tribunal já é uma corte constitucional do país, mas se olharmos qualquer corte constitucional – a Corte Constitucional alemã, que talvez seja hoje o maior paradigma, por exemplo –, veremos que há competências penais, eles processam seus próprios juízes, o presidente da República etc. Ela tem competências específicas, que não são apenas constitucionais. Alguns conflitos que são de natureza constitucional, como conflitos federativos importantes, mas não existe esse modelo puro. E as questões que realmente ocupam o Supremo hoje são questões constitucionais que vêm nas ações de controle abstrato [ADI, ADC e ADPF] e nos REs. E tem uma linha talvez menos clara, mas que discute questões importantes, que é o Habeas Corpus.

ConJur  — Nos outros países as cortes constitucionais julgam Habeas Corpus?
Gilmar Mendes —
 Não, mas se discutem, às vezes, questões relativas à liberdade num recurso constitucional específico. No Habeas Corpus, muitas vezes são discutidas questões puramente constitucionais, ligadas à liberdade. Mas também muitas vezes discutimos questões processuais importantes. Por exemplo, a aplicação do Código de Processo Penal, ou o uso da prova ilícita, o direito de defesa. Muitos poderiam dizer  que isso não deveria estar no Supremo, mas agora há uma tendência de alguns colegas, e eu tenho muito medo, de fazer uma restrição ao Habeas Corpus.

ConJur — Por que medo?
Gilmar Mendes —
 Até por causa do aspecto estatístico. O índice de concessão de Habeas Corpus é muito alto no Supremo. Chega a 30% nas Turmas, o que é um índice alto e significa que houve algum erro, alguma violação, em 30% dos casos que chegaram até lá. E às vezes são questões básicas, como prisão por crimes famélicos, crimes de pequena monta.

ConJur — E isso demonstra que o HC não pode ser restringido.
Gilmar Mendes —
 Ora, isso mostra que esse é um papel importante do Habeas Corpus, porque hoje há uma discussão no tribunal sobre essa questão. A própria 1ª Turma chegou a sustentar que, para o Supremo, só deveria ir o recurso ordinário e não o Habeas Corpus autônomo. Eu sou contra. Isso vai afetar aquilo que se chama jurisdição constitucional da liberdade.

ConJur — Então a competência para julgar Habeas Corpus não pode ser reduzida?
Gilmar Mendes — 
Se há uma competência que não pode ser reduzida é essa. O Habeas Corpus é exatamente o mecanismo da jurisdição constitucional da liberdade, é uma forma importante de se discutir pelo menos a legalidade da prisão. Isso corresponde a uma tradição antiquíssima, ainda da República Velha. Romper com isso agora é romper com uma tradição já centenária em nome de argumentos estatísticos.

ConJur  — Hoje se fala muito na quantidade de processos que estão no Supremo. Seria o caso de uma redução de competência?
Gilmar Mendes —
 Veja, as cortes em geral — e aí tanto a Corte Suprema dos EUA quanto as cortes constitucionais europeias —, quando elas têm recursos, restringem por um modelo de seleção. Entre nós foi muito difícil aprovar a Repercussão Geral. E a seleção, portanto, é muito restritiva. O que é que se diz na Constituição? Que será rejeitado o recurso se houver oito votos no sentido de sua rejeição. É a Repercussão Geral. É o contrário do que se pratica em todo o mundo. Em geral, com turmas, grupos de três, quatro, já pode rejeitar. Aqui, precisa de oito votos para rejeitar a Repercussão Geral. O que significa, contrário senso, que com quatro votos a favor você manda subir o recurso.

ConJur — E por que ficou assim?
Gilmar Mendes —
 Isso não foi uma opção do Supremo, mas do legislador constituinte. Foi difícil passar a reforma constitucional. Teve a pressão da OAB e da sociedade, dizendo que não pode restringir o acesso à Justiça, que todos têm de ter acesso ao Supremo. Então ficou esse modelo.

ConJur — Passaria uma emenda restringindo?
Gilmar Mendes —
 Ainda mais? É uma conversa que tem que se ter com o Congresso.

ConJur — Para o senhor faz sentido uma emenda como essa?
Gilmar Mendes —
 Pode fazer. Mas teríamos que administrar isso, e temos que testar um pouco todo esse quadro. Nós estamos há um ano e meio, praticamente, com as atividades quase que suspensas, dedicadas ao mensalão.Significa que não estamos julgando os casos de Repercussão Geral, o que legitima a reclamação dos tribunais.

ConJur — De que o STF está parado?
Gilmar Mendes —
 De que está parado. E é um mecanismo de stop and go, porque ficam suspensos os processos semelhantes nas instâncias ordinárias. Isso é muito problemático. Agora precisamos, de fato, retomar as atividades, retomar a vida normal e ver como isso anda. Mas essa conversa de que precisa ser uma corte somente constitucional é bobagem. Em linhas gerais, o que de fato ocupa o tribunal são questões constitucionais.

ConJur — Por que o tribunal parou de editar súmulas vinculantes?
Gilmar Mendes — 
Porque está conexo, basicamente, com a Repercussão Geral. A gente não tem votado casos com Repercussão Geral. Teve um momento em que a gente votava um caso de Repercussão Geral e, em seguida, editava a súmula. Depois isso parou.

ConJur  — Mas por que parou?
Gilmar Mendes —
 Porque nós paramos. O Tribunal, há algum tempo, não tem dado prioridade a isso. Admite muitos casos de Repercussão Geral e não consegue, depois, transformar isso em julgamento. Depois veio o mensalão, e então, quantas sessões com matéria criminal?

ConJur — Ministro, a nossa Constituição tem 200 e tantos artigos, mais os incisos, alíneas etc…
Gilmar Mendes — 
São mil e tantas disposições, mas tem que ser um número condizente com a nossa realidade institucional. Não posso dizer que temos de ter um modelo americano. Nossa realidade institucional é toda peculiar. Giovanni Sartori, um autor italiano da área de Ciências Políticas e de Direito, contou os artigos e concluiu que a nossa Constituição chega ao tamanho de um Código Civil. Ele tem uma obra, até já traduzida para o português, Engenharia Constitucional.

ConJur  — A Lei da Anistia voltou a ser motivo de comentários ultimamente, e muitos têm falado em levar o caso de volta ao Supremo. Falam que a composição mudou, e que o posicionamento da corte também já não é mais o mesmo. Faz sentido o STF rever a posição que ele já adotou? Existe um mecanismo para isso?
Gilmar Mendes —
 A não ser que haja um fato relevante, independentemente da composição pessoal, nesse e em outros casos, não faz sentido proceder a essa revisão. Por outro lado, se o Tribunal sequer consegue apreciar tudo o que está pendente de julgamento, como os casos de repercussão geral, parece sensato revisitar o que já foi decidido? Mas, em suma, nós temos que aguardar. Mas temos de esperar ser provocados. Até porque entre o julgamento e a publicação de um acórdão, às vezes, passam-se vários anos. E isso não significa recomposição do tribunal. É razoável que quem vier, agora, nos embargos da declaração, diga: “Minha opinião é diferente”. Mas o julgamento de mérito já ocorreu. Se quiser preservar a seriedade da Corte, tem que ter certo escrúpulo processual. Do contrário, vira um lance de opinião, o que não é razoável.

ConJur — O número de reclamações que chegam ao STF também subiu bastante, ao ponto de alguns ministros apontarem que é o desejo de se chegar “per saltum” ao Supremo.
Gilmar Mendes — 
É um instrumento que se desenvolveu, inicialmente, na jurisprudência e no Regimento Interno, mas que depois ganhou statusconstitucional. É um mecanismo importante, hoje, em função do efeito vinculante de algumas decisões, termos a súmula vinculante. Mas talvez tenhamos que encontrar um tratamento adequado, como julgar nas turmas, porque o Plenário está inviabilizado. São mais de 700 processos em pauta aguardando julgamento. É preciso ser inventivo. Talvez ter mais sessões, diminuir os pedidos de vista, dar prioridade aos casos com repercussão geral. São medidas que podem ser tomadas.

ConJur — Uma reforma mesmo?
Gilmar Mendes —
 Talvez tenha uma reforma regimental. A reforma que já foi feita, na minha gestão e depois na do Peluso, já deu frutos.

ConJur  — A Emenda 45 vai fazer dez anos este ano. Surtiu o efeito que se esperava?
Gilmar Mendes —
 Tenho a impressão de que sim. Aliviou e deu racionalidade ao Supremo, além de criar órgãos importantes como o CNJ e o CNMP. Agora, a essa altura, teríamos que discutir uma evolução dessa reforma, como essa questão do modelo da Repercussão Geral.

ConJur  — Há espaço para isso?
Gilmar Mendes —
 Sim. O STJ já fez uma parte disso com os processos similares e idênticos, por exemplo. O TST tem isso autorizado e até agora não tomou nenhuma medida. No Supremo há espaço para a continuação dessa reforma. Eu só não subscrevo teses, por exemplo, de restrição de Habeas Corpus, porque a gente sabe aonde isso vai dar. Com esse grau de concessão, com essa situação de examinar a discussão da prisão provisória lá em 1º Grau, temos um índice de concessão de 30% no Supremo. Se introduzirmos, agora, reservas procedimentais e tentarmos barrar o acesso ao Supremo, via Habeas Corpus, muito provavelmente vamos negligenciar direitos. Podemos reduzir outras competências antes de restringir este importante e eficiente instrumento de liberdade.

ConJur — Sem falar nos casos insignificantes.
Gilmar Mendes —
 Em 2010 ou 2011chegamos a conceder 30 Habeas Corpus na 2ª Turma ligados ao princípio da insignificância. É a prisão por causa do furto do bambolê, do chocolate, da fita de vídeo. Coisas desse tipo.

ConJur  — O CNJ está cumprindo seu papel?
Gilmar Mendes —
 Tenho a impressão de que há mais acertos do que erros. Agora, se a gente considerar a potencialidade, pode ficar frustrado. E há uma visão, muitas vezes da própria magistratura, de que se o CNJ estabelece metas, está interferindo nas funções, nas autonomias estaduais ou coisa do tipo. Mas é um discurso escapista para evitar a prestação de contas. Tanto é que foram flexibilizando as metas, reduzindo a responsabilidade do próprio CNJ para os mutirões etc. Em suma, isso resulta em uma diminuição do órgão na sua atividade principal. A atividade principal do CNJ não é — e esse é que é o equívoco — punir juiz, ficar fazendo estatísticas.

ConJur  — E qual é?
Gilmar Mendes —
 É atividade de planejamento e de gestão das atividades do Judiciário. Essa [a de que o CNJ existe para punir juízes] é uma visão equivocada, mas tem um efeito simbólico. Descobriu-se que há um malfeito, tem que punir. Mas ela não é a atividade central do CNJ.

ConJur  — Mas o foco, ultimamente, tem sido esse.
Gilmar Mendes — 
 E a própria imprensa contribui para isso. Comemora como se fosse um dado altamente promissor. Mas o que tem que se perguntar é: “O Judiciário melhorou?”; “em que ponto melhorou?”; “quais são os pontos de estrangulamento?”; “o que é que tem sido feito em termos de meta?”; “os processos estão mais céleres?”. É isso que precisa ser perguntado.

ConJur  — O que o senhor acha dessa Meta 18 do CNJ, que obriga os tribunais a julgarem os casos de improbidade administrativa?
Gilmar Mendes —
 É importante que o CNJ estimule o julgamento dessas ações. Também há abuso em não julgar, em deixar pendente essas questões, principalmente com relação aos inocentes. E essas ações são usadas politicamente, muitas vezes. Não se ignora, por outro lado que a lei de improbidade precisa de revisão, pois é bastante genérica. Há um tipo, por exemplo, de improbidade administrativa que diz assim: “Deixar de cumprir a lei ou o regulamento”. Então em qualquer caso em que foi concedido um Mandado de Segurança teria que haver uma ação de improbidade administrativa. Veja o absurdo. Fatos corriqueiros, que podem ser resolvidos, por exemplo, com uma ação de indenização, viram ações de improbidade. A não ser que prove que há dolo, que há o propósito de enriquecimento, não há motivo para uma ação dessas. Muitas vezes o promotor quer entrar com uma ação e entra com uma de improbidade, quando poderia ser uma ação de responsabilidade simples.

ConJur  — Mas no caso específico da meta, o que se percebe é quase uma pressão pela condenação. Os informes que chegam às redações comemoram “X condenações”. Alguns juízes têm entendido essa ação como uma tentativa de disciplinar tribunais, para dizer que eles têm de condenar.
Gilmar Mendes — 
Não pode ser assim, mas na verdade é até bom para o réu que o processo seja julgado e ande. Em matéria criminal, por exemplo, e tenho batido muito nisso, há milhares de presos provisórios, sem sentença condenatória. Vemos pessoas presas há 12, 14 anos, sem condenação. Ora, isso fala mal da Justiça Criminal. E fala que esse sistema precisa de reforma. E no sistema criminal, só a ação já é um ônus. É terrível para o cidadão, e levamos um tempo enorme para julgar, 10, 12 anos.

ConJur  — E ainda há os casos do sujeito que, quando é finalmente condenado, já cumpriu toda a pena em regime provisório.
Gilmar Mendes —
 Ou do processo que corre há anos e ele está solto. Imagine o impacto disso numa pequena comunidade. O sujeito cometeu um homicídio e todo mundo sabe, mas ele está solto, obteve Habeas Corpus porque o processo se alongou demais. Ou está solto porque ficou solto. Então se alguém me perguntasse qual é a prioridade hoje, eu diria Justiça criminal. Temos um grande problema aqui. E a ação de improbidade tem um consectário fortemente penal. Às vezes, até mais forte do que a ação penal. Porque se você falar que Fulano responde por ação de improbidade tem um certo viés.

 ConJur  — E isso é usado politicamente.
Gilmar Mendes —
 Politicamente, claro. Tanto é que, nesse contexto, tem feito falta — e tem projetos de lei bons já analisados por comissão no Congresso — uma lei atual de abuso de autoridade. As autoridades cometem abusos a toda hora. Por exemplo, quando oferecem denúncias indevidas: ação de improbidade, ou mesmo uma ação penal ou quando pedem abertura de inquérito quando não deveriam.

ConJur  — Falta responsabilizar o Ministério Público?
Gilmar Mendes —
 Não só o Ministério Público. Pode ser o juiz, o parlamentar numa Comissão Parlamentar de Inquérito, o fiscal por excesso de exação. Em suma, todas as autoridades. O guarda de trânsito! A nossa lei de abuso de autoridade é de 1965, é de autoria do Milton Campos. São tipos genéricos. O país passou por enormes evoluções nesses anos todos e nós não temos uma lei de abuso de autoridade atualizada. Tanto é que ninguém fala hoje em aplicação da lei.

ConJur  — Outro tema muito caro ao senhor é o sistema penitenciário, mas quando se fala nisso, a solução parece sempre ser construir mais presídios. É isso mesmo que deveríamos fazer?
Gilmar Mendes —
 Sim. São indispensáveis novas vagas e estabelecimentos prisionais. Precisamos praticamente construir os sistemas aberto e semiaberto. Porém isso não basta. Quer dizer, por isso é que quando falamos de reforma do sistema prisional, temos é que ter uma estratégia de segurança pública, que é o que tentamos no CNJ, que envolveria a atuação de todos os setores. Temos um grande índice de inquéritos abertos não concluídos e por isso também um grande índice de crimes não descobertos. Chegamos a ter, em Alagoas, 4,5 mil homicídios sem sequer inquérito aberto.

ConJur  — E tudo sem autoria.
Gilmar Mendes —
 Claro! Se nem abriu nenhum inquérito, já está sem autoria a priori. Depois, quando abrem o inquérito, ele não prossegue, porque não tem investigação. Uma das estratégias era fazer concluir os inquéritos, e isso é tarefa da polícia e do Ministério Público. E quando oferecer denúncia, fazer o processo andar.

ConJur — Também há falta de acesso à Justiça.
Gilmar Mendes —
 Temos sérios problemas na área da defesa, da defensoria. Se estamos falando de 550 mil presos, 90% são pobres. Péssima assistência judiciária. Insuficiente. Poucas iniciativas. Precisa ter uma estratégia nesse sentido. Há muita gente que poderia não ser presa.

ConJur — Isso passaria pelas penas alternativas?
Gilmar Mendes — 
É uma boa ideia, assim como a das medidas cautelares para reduzir o abuso das prisões cautelares, mas, de novo, temos uma lei que não está pegando.

ConJur — Por que não pega? É questão de custo?
Gilmar Mendes —
 Não, é que não tem gestor. Está cheio de caciques, mas ninguém está aplicando isso. Eu venho defendendo, por exemplo, e que está na Convenção Interamericana, a necessidade de internalizar na legislação a apresentação do preso em flagrante ao juiz, que então vai decidir se vai manter o flagrante ou não, mas falando com o sujeito. É claro que isso vai ter embaraços burocráticos, mas evita que o juiz, burocraticamente, referende o flagrante. É o que leva a esses abusos que temos tido. No crime de tráfico: a legislação veio para atenuar a pena por tráfico, mas estamos aumentando o número de presos por esse crime. E muitas vezes é aquela confusão, naquele quadro entre usuário e traficante.

ConJur  — Fica sempre baseado na questão da quantidade.
Gilmar Mendes —
 É. E quem é que decide isso? O policial! Não é o juiz que avalia isso, porque ele só cuida do processo no julgamento. Veja, não são medidas difíceis de serem implantadas, e muitas delas não precisam sequer de legislação. É só a adoção de orientação administrativa. Mas é preciso ter essa visão integrada. É preciso olhar o sistema como um todo. Se falarmos em recursos para o sistema prisional: temos uma massa de dinheiro, o Funpen. Fala-se em R$ 2 bilhões. Todo ano é contingenciado. A lei de execução penal é de 1984, a que criou todos esses regimes. Mas temos déficit de vagas, 25 mil pessoas só no sistema semiaberto e o dinheiro está contingenciado. Em verdade, não temos regime semiaberto. E com R$ 400 milhões resolveria isso, mas tem alguém gerenciando? O Brasil está vivendo um apagão em termos gerenciais.

ConJur  — R$ 400 milhões para resolver?
Gilmar Mendes —
 Sim. É isso. Dinheiro que está aí, disponível. Hoje nós estamos melhores que ontem. Nós temos o CNJ, que tem dados, o CNMP, o Ministério da Justiça tem foco, inteligência para fazer isso, mas um tema totalmente negligenciado. Muita gente tem preconceito: “Ah, isso é tema de direitos humanos”. Não. Esse é um tema de segurança pública. Porque não cuidar dos presídios significa entregá-los às organizações criminosas.

ConJur  — De quem é a falha?
Gilmar Mendes —
 Basicamente, do Executivo, principalmente do Executivo Federal. Mas a responsabilidade é de todo o sistema, inclusive Poder Judiciário e Ministério Público. Por isso é que tinha que ter uma visão integrada, holística disso. O país, na verdade, precisa pensar em termos institucionais e administrativos, num tipo de SUS para a segurança pública.

ConJur  — Como seria isso?
Gilmar Mendes —
 Um modelo integrado de gestão, e parar com esse jogo de culpa recíproca. A União sempre diz “eu posso ‘ajudar’, mas não tenho nada com isso”. Como não tem nada com isso?! Ela é quem legisla sobre Direito Penal, sobre Processo Penal, sobre Execução Penal. Ela é quem tem a Polícia Federal. Em geral, o crime organizado é interestadual, no mínimo. E a União é quem tem as Forças Armadas.Mas fica com esse jogo farisaico de dizer que não tem nada com isso. “Não, isso é problema de segurança pública, é problema estadual”. E os estados membros, com as finanças em pandarecos. Porque o modelo, também, gerou essa concentração de recursos no plano da União — com exceção de algumas poucas unidades, São Paulo incluída. Os estados estão em situação de penúria.

ConJur  — Houve um caso no Maranhão, em que o juiz mandou o estado construir um presídio em até 60 dias. O Judiciário pode fazer isso, ignorando, por exemplo questões orçamentárias do estado?
Gilmar Mendes — 
ConJur publicou uma entrevista com a secretária de justiça do Paraná, Maria Tereza Uille Gomes, em que ela diz que há exigência do Conselho de Política Criminal para verificar a metragem dos novos presídios, da sala do diretor, do número de vagas no estacionamento, quando não tem vaga nem para os presos. Isso está onerando brutalmente o sistema. Ela diz também que um convênio inicial com o estado teria uma contrapartida de R$ 30 milhões, mas, com esses novos critérios, subiria para R$ 90 milhões. Imagine como isso repercute nas finanças do estado. Há um autismo completo. As autoridades do Ministério da Justiça falam do problema prisional como se estivessem falando do sistema carcerário da Bolívia. O Maranhão está no Brasil!

ConJur — Este ano o golpe militar completa 50 anos. Qual a visão do senhor sobre o papel do Supremo durante a ditadura?
Gilmar Mendes — 
Isso comporta uma análise bem mais profunda, que é difícil de resolver numa resposta. O tribunal teve, acho que no começo, um papel de moderação dos próprios exageros do movimento em relação às prisões, por exemplo. Aí entram os Habeas Corpus concedidos ao Miguel Arraes, ao ex-governador lá de Goiás.

ConJur — Mauro Borges?
Gilmar Mendes —
 Isso. Inclusive, esse momento é uma nova fase no Supremo,que empresta nova significação ao Habeas Corpus. A concessão de liminar naquele quadro, me parece extremamente importante. Mas depois o próprio tribunal foi envolto no próprio contexto da crise. Não vamos nos esquecer de que, em 1968, veio o Ato Institucional número 5, que suspende as garantias da magistratura. E, em 1969, temos as aposentadorias dos juízes [o governo militar aposentou compulsoriamente os ministros Hermes Lima, Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva]. Já tinham mexido na composição do Tribunal, há o aumento no número de membros, antes, logo numa das primeiras alterações. Em suma, então, o tribunal, ele próprio, padece de vicissitudes. Imagine o tribunal traumatizado, em 69.

ConJur — Era um tribunal já sob intervenção do governo militar.
Gilmar Mendes — 
Sempre cito um caso, de 1971, em que se discutiu se o Procurador-Geral da República estava obrigado ou não a representar ao Supremo. A provocação vinha do MDB e tinha como pano de fundo a lei, ou o decreto-lei, que estabelecia censura prévia a livros, jornais e periódicos. Veja, o tribunal julgou isso em 71, mas em 69 perdera três membros aposentados compulsoriamente. Era um tribunal fragilizado, e esse episódio de 71 foi muito curioso. O único que falou pela aceitação dessa reclamação foi o Adauto Lúcio Cardoso, um homem que fora nomeado ministro pelos militares e obviamente tinha sua interlocução com eles. Ele defendeu bravamente a ideia [de derrubar o decreto-lei], mas o tribunal acabou decidindo que aquilo não era matéria para o Supremo. O Procurador-Geral, então, não entrou com a ação. Era muito difícil o tribunal se manter com toda autonomia naquele contexto, especialmente depois do AI-5, que estabelecia um tipo de segunda ordem que, de quando em vez, era utilizada e estava sempre lá, presente.

ConJur  — Quando interessava, era só acionar.
Gilmar Mendes —
 Era só acionar que se aposentava juiz. As garantias estavam suspensas. Mas eu acho que nem só o Supremo, mas acho que o Brasil deve ao próprio Judiciário, como um todo, um papel de moderação dos exageros cometidos na década de 1970. Inclusive a Justiça Militar. O STM, eu me lembro no meu tempo de estudante, de 75 a 78, era considerado um tribunal de padrão liberal…

ConJur  — É mesmo?
Gilmar Mendes —
  Inclusive nas questões de Habeas Corpus, em relação aos presos políticos, e por conta, talvez, da própria autoridade dos seus componentes, muitos deles generais que, obviamente, percebiam os exageros que estavam sendo cometidos Eu acho que agora é o momento de. Esse é um dado importante, especialmente no momento atual, em que se fala na supressão da Justiça Militar.

ConJur — O STM também teve um ministro aposentado, não é?
Gilmar Mendes —
 Sim, o general Peri Bevilacqua, em 79. O STM teve um papel importante, e muitos advogados dessa época hão de se lembrar.

ConJur — Faz sentido acabar com a Justiça Militar?
Gilmar Mendes —
 Não acredito que seja essa a solução correta. Tenho a impressão de que talvez algumas competências para julgar civis possam ser revistas, mas me parece que a Justiça Militar tem uma função especialmente no que diz respeito ao quadro organizatório e disciplinar das próprias Forças Armadas. Nesse sentido, o tema precisa ser visto com cuidado. A gente tem que ter muito cuidado com modismos. Tem que respeitar a cultura histórica e ter certa moderação nas invencionices.

*Texto atualizado às 19h35 da segunda-feira (3/2).

STF em ação

STF deve retomar casos “represados”

POR FREDERICO VASCONCELOS

03/02/14  08:59

Barbosa e Janot

O Supremo Tribunal Federal retoma suas atividades nesta semana, acumulando questões relevantes “represadas” em 2013 pelo longo julgamento do mensalão, revela reportagem publicada nesta segunda-feira (3/1) naFolha.

Hoje será realizada a  solenidade de abertura do ano judiciário, conduzida pelo ministro Joaquim Barbosa. A sessão deverá contar com as presenças dos presidentes da República, da Câmara e do Senado ou seus representantes, que deverão proferir discursos.

Em seu pronunciamento, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, deverá enfatizar o combate à corrupção, a grave situação do sistema prisional do país e a necessidade de desafogar a pauta do Supremo.

A expectativa é que sejam retomados no STF processos na área da economia cuja decisão final orientará os tribunais sobre milhares de ações ajuizadas nas instâncias inferiores.

É o caso, por exemplo, das alegadas perdas nas cadernetas de poupança com os planos econômicos nas décadas de 80 e 90. A Corte deverá decidir se os bancos terão que indenizar poupadores que se sentiram prejudicados.

Aguarda-se também a definição sobre os prazos para pagamento de precatórios [determinação da Justiça para que um órgão público pague indenização devida].

Outros processos relevantes que deverão voltar ao plenário:

– a constitucionalidade das doações de empresas e pessoas jurídicas para campanhas eleitorais e partidos;

– o julgamento de embargos infringentes na ação penal do mensalão;

– a ação sobre os supostos desvios de dinheiro público na campanha de reeleição do então governador de Minas, Eduardo Azeredo (PSDB);

– a ação que questiona a proibição da publicação de biografias não autorizadas.

 

Nossas excentricidades

O Brasil é, definitivamente, um país, digamos, excêntrico. Aqui ocorre, por exemplo, de o eleitor trocar o voto por uma garrafa de cachaça ou por uma dentadura. Mas isso tem explicação na miséria do povo, na falta de cultura e de educação. Pode ser inusitado. Pode alimentar o folclore. Poder alimentar a inspiração de um cronista. Mas é uma excentricidade que encontra justificativa  na miséria, no estado de necessidade de um povo.

A verdade é que a necessidade, como a falta de educação, compele. Não há cidadania com a barriga vazia. O eleitor carente é suscetível de se submeter a essa, digamos, troca bizarra, a solapar a própria cidadania. Cidadania, para essas pessoas, não representa nada.

Imagino que o eleitor faça a seguinte reflexão: “tu me ajudas a mastigar com a dentadura ou a me entorpecer com álcool e eu, em troca, te dou meu voto. O que farás depois de eleito a mim não me importa, afinal, todos roubam, e a minha vida não vai mudar mesmo; tu pelo menos me destes alguma coisa em troca do meu voto.”

Essa a cultura. Por enquanto, nada se pode fazer. Educação ainda é preocupação de uma minoria.

Vê-se, assim, que não surpreende, de rigor, essa troca entre o eleitor e o candidato, sobretudo porque há algo muito mais relevante e subjacente que condiz  a nossa falta de educação; educação que, afinal, é o que pode libertar as pessoas, dar a elas a dignidade que a ignorância lhes nega.

Até aí não tá tudo bem, mas é assim mesmo que as coisas funcionam. E quando é um ex-presidente que diz a um ex-ministro, acusado de corrupção, para que não se preocupe, pois a acusação sai na urina (Jornal Folha de S. Paulo de hoje, na matéria ‘Lula me falou: esquece, isso sai na urina, diz Lupi sobre denúncia)*? Aí, meu amigo, é de estarrecer. É estupefaciente mesmo. É desanimador, sobretudo se a afirmação é feita por um dos mais festejados líderes políticos que o Brasil já teve em qualquer época, e que construiu a sua carreira pregando moralidade e retidão. É como se dissesse: “fui presidente deste país e sei que isso é natural, pois no Brasil grassa a impunidade. Fica na tua, não se desespera, que, nesses casos, as instância persecutórias não funcionam.”

A gente pensa que já viu de tudo, mas cada dia mais os políticos no nosso país nos conduzem à conclusão de que eles não merecem a nossa confiança. É uma pena, pois ainda há os que pensam de forma diferente. Mas esses são poucos… De tão poucos, a sua ação não é sequer notada. Não passam de uns radicais, na visão dos oportunistas e inescrupulosos.

*Carlos Lupi, ex-ministro do Trabalho do governo Lula e presidente do PDT, um dos partidos da base de sustentação do governo, foi acusado pela empresária Ana Cristina Aquino de ter recebido R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) em propina.

Versão para o jornal

Abaixo, artigo da minha autoria, publicado neste blog, na sua versão, revisada, para o Jornal Pequeno

Naturalmente bom

José Luiz Oliveira de Almeida*

Principio essas reflexões partindo da afirmação de Jean-Jacques Rousseau de que o homem é um ser naturalmente bom, cuja bondade restaria corrompida pela sociedade. É claro que, até onde vai a minha percepção, não dá pra dizer que todo homem é naturalmente bom, como não dá pra dizer que a sociedade necessariamente o torne mal. A experiência mostra, a contrariar a tese, que há pessoas que parecem ter nascido para fazer o mal; há outras tantas que, a despeito dos reveses da vida e das injustiças a que são submetidas, só disseminam o bem.

Dia desses, saí para dar as minhas habituais – e necessárias – pedaladas na Av. Litorânea, mantendo distância da Lagoa da Jansen, onde recentemente fui assaltado. A certa altura,  o pedal da bicicleta caiu. Fiquei desarmado com o inusitado do ocorrido.Tentei, em vão, colocar o pedal no lugar. Constatei logo a minha incompetência para resolver um problema que, desde a minha visão, parecia muito simples.

De repente, ao tempo em que eu insistia em recolocar o pedal, apareceu um rapaz  que, ao se aproximar, de súbito, me assustou. Pensei: meu Deus, outro assalto! O coração, claro, disparou. Apreensivo, cuidei de analisar o desconhecido por inteiro, como se essa análise boba – e precipitada, claro –, feita por conta apenas da aparência, me levasse a alguma conclusão sobre o desconhecido.

Muito simpático e solícito, o rapaz colocou o depósito de queijo que trazia consigo  (todos cortados em cubos, para venda) no chão, ao lado de um fogareiro já apagado, e passou a tentar colocar o pedal da bicicleta, me deixando em posição de absoluta reflexão. Nas primeiras tentativas, como não alcançasse êxito, tratou logo de, despojadamente, sentar no chão – absolutamente desprendido e à vontade.  Muito tranquilo, muito simpático, risonho, do tipo que não metia medo. Fui, nesse cenário, me acostumando com a situação, passando a dialogar com ele sobre o problema.

Fiquei a pensar com meus botões: de onde vem essa que me parece uma boa alma? Quem são os pais desse bom rapaz?  Seus amigos, quem são? Onde mora? De onde vem? Por que está me ajudando? Exigirá ele, depois, algo em troca? E o queijo? Pelo visto, ele se desinteressou de vendê-lo, certamente porque espera ser bem recompensado, pensava eu.

Um dado curioso. O desconhecido, muito à vontade, viu a tampa do depósito voar para longe, mas não largou o que estava fazendo. Continuou tentando colocar o pedal no lugar, com inaudita boa vontade. Um transeunte viu a tampa voando, correu atrás, trazendo-a de volta. A partir daí, eu próprio cuidei do depósito do desconhecido, atento para que a tampa não voasse mais. Ele, enquanto isso, lutava, embalde, para repor o pedal.

A certa altura, levantou-se e saiu correndo. Pediu que eu o aguardasse, pois iria procurar uma chave. Fiquei, ao lado da bicicleta, olhando para um lado e outro, enquanto aguardava o desconhecido, e persistia fazendo  questionamentos sobre a sua atitude e a pensar onde ele encontraria uma chave. Mas pensava positivamente: trata-se de uma boa alma, dessas que os reveses da vida não corrompem.

Em dado momento me dei conta dele saindo de um bar, com um alicate na mão, saltitante, alegre vislumbrando a possibilidade de resolver o meu problema. Ao se aproximar de mim, deu um sorriso, para, otimista, sentenciar:

– Agora vai!

Não foi! Mais uma tentativa debalde. A rosca estava estragada. Não havia mais o que fazer. Desanimado, olhei para um lado e para o outro, perdido. Ele percebeu o meu desânimo, e lamentou a minha frustração. Parecia que já me conhecia há muito tempo. Não! Ele não me conhecia! Não sabia de onde eu vinha, e nem para onde eu ia. Mas, ainda assim, procurou me ajudar, sem pedir nada em troca – por bondade.  Pelo desejo de servir ao próximo.

Decidido que não resolveríamos o problema, deixei a bicicleta em um bar e saí andando, desnorteado, pela Litorânea, apenas com as luvas nas mãos, decidido a voltar para casa a pé. No trajeto inicial, Chagas me acompanhou, lamentando o insucesso da empreitada. Ele seguia com o queijo no depósito, e o fogareiro,  apagado. Mas nada disso parecia preocupá-lo. O que ele lamentava mesmo era não ter podido me ajudar. Eu disse a ele, então:

– Amigo, não tenho nenhum trocado para te dar. Todavia, passo amanhã e deixo um dinheiro para você, no bar do Deusimar – onde a minha bicicleta ficou guardada, ao que ele objetou:

– Não se preocupe com isso. O que eu desejo mesmo, se fosse possível, é um emprego. Se o senhor puder me arranjar um, eu fico agradecido. Tá tudo muito difícil, doutor. O mais fácil seria roubar, como faz a galera, mas eu não quero isso pra mim. Eu quero mesmo é trabalhar.

Eu, lamentando, disse a ele que não tinha como lhe arrumar um emprego, ao que ele respondeu, sem mudar o tom e sem perder o sorriso, que não tinha problema, e que eu não me preocupasse com dinheiro, pois sabia que um dia a gente se encontraria e, nessa ocasião, eu daria a ele o que entendesse devesse dar. Não pediu mais nada. Seguiu o seu caminho e eu, segui o meu.

Ele partiu quando o fim de tarde ia chegando, para tentar vender  queijo assado na brasa. Seguiu com o depósito sob o braço esquerdo, e o fogareiro rodando com a mão direita, para atiçar o fogo. E sumiu da minha vista.

Chagas, para mim, é um ser naturalmente bom. As dificuldades da vida, o mundo, enfim, não o corrompeu, e quiçá não o corromperá jamais. Pena que eu não possa ajudar Chagas a conseguir um emprego. Fico te devendo essa, Chagas! Mas o mundo dá muitas voltas. Nós vamos nos encontrar novamente, em outra situação. E quando isso acontecer, quero, mais uma vez, agradecer-te e dizer-te que, mesmo as pessoas naturalmente boas como você, nesse mundo de pura competição e de ambição desmedida, podem ter que levar a vida desempenhando uma atividade menor, por falta de oportunidades. Mas o importante mesmo, em tudo aquilo que fazemos, é ter dignidade, fazer com dignidade; e dignidade você tem de sobra, pouco importando o tipo de trabalho que faça.

É desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão

e-mail: jose.luiz.almeida@globo.com

blog: www.joseluizalmeida.com