A PRISÃO EM SEGUNDA INSTÂNCIA E A SELETIVIDADE DO DIREITO PENAL

“[…]Falo isso em face do conhecimento que tenho amealhado nos mais de trinta anos lidando com a criminalidade miúda, para a qual as instituições penais sempre destinaram todo o seu rigor, conquanto tenham sido, historicamente, cordadas, lenientes, covardes e indispostas quando se trata de punir os do andar de cima, cujos crimes, reconheçamos, causam muito mais danos à sociedade que a soma total dos crimes praticados pela clientela miserável do Direito Penal, muitas vezes presa em face de um crime menor e, em seguida, jogada em verdadeiras masmorras, esquecida, vilipendiada, desassistida e abespinhada em sua dignidade, ante o silêncio, algumas vezes covarde e não raro cúmplice, de grande parte da sociedade[…]”

 

Volto ao tema porque ainda persiste, infelizmente, como um pesadelo para quem almeja uma sociedade mais justa e menos seletiva, a possibilidade de ser revista pela nossa Corte Suprema a prisão em segunda instância, medida que, desde o meu olhar, chegou em boa hora, pois, com ela, finalmente, estamos testemunhando reais perspectivas de as instâncias de controle alcançarem, como nunca o fizeram realmente, os que sempre se valeram das deficiências e da falta de efetividade do sistema, para se safarem da persecução penal, conquanto tivessem praticado crimes de especial gravidade, de consequências imensuráveis/deletérias para o conjunto da sociedade.

Muitos, incontáveis são os artigos escritos sobre a seletividade do sistema penal. Eu mesmo, neste mesmo espaço, e no meu blog – www.joseluizalmeida.com –, já tive a oportunidade de, reiteradas vezes, denunciar essa deformação/seletividade do nosso sistema, que, como lembrou Luís Roberto Barroso, no julgamento do HC 152/752, só prende menino pobre com 100 gramas de maconha, fechando os olhos para o agente público ou privado que desvia 100 milhões de reais.

Retomo o tema acerca da prisão em segunda instância apenas para reafirmar o óbvio que uns poucos preferem não admitir, por conveniência e/ou por interesse, ou seja, que aguardar o cumprimento de pena para só depois de esgotadas todas as vias recursais, é, tão somente, reafirmar o que o mais ingênuo dos mortais já sabe: que o sistema penal brasileiro, disfuncional como é, voltará a ter as suas ações destinadas, como sempre foi – por isso o registro que fiz no parágrafo anterior -, apenas para a sua clientela preferencial, para a qual, de forma evidente, não são assegurados, objetivamente, os mesmos instrumentos recursais que favorecem a uma minoria que, de tão privilegiada pelo modelo, se considera e se assume imune às ações das instâncias de controle.

Nessa perspectiva, ou seja, da iminente volta ao modelo anterior que tanto mal fez ao Brasil, ao consagrá-lo como país da impunidade, consolidar-se-á uma outra obviedade, qual seja, a existência, por essas bandas, de duas classes distintas de criminosos, numa clara e frontal ofensa ao princípio da igualdade: i-a classe dos que sucumbem/sucumbirão diante do sistema, que sempre existiu para punir pobres, e ii -a classe dos que sempre se safaram/safarão, como regra, em face da ação persecutória estatal, tendo a socorrê-los o nosso horroroso/danoso/disfuncional modelo recursal, que tem se prestado a levar os feitos à prescrição, favorecendo, como regra, aos criminosos do andar de cima.

É dizer: voltando-se ao modelo anterior, ou seja, a possibilidade da execução da pena somente depois de esgotadas todas as vias recursais, em face de uma interpretação constitucional que não condiz com a realidade brasileira, o sistema penal, definitivamente, não alcançará os grandes criminosos, aqueles que podem contratar as grandes bancas de advocacia, sabido que, em relação à quase totalidade da clientela do Direito Penal, nada muda, pois a ela (clientela) será sempre destinada – como sem o foi, reitere-se – a prisão em face de uma decisão de segunda instância, que é o que efetivamente ocorre na prática.

A verdade é que essa discussão acerca da prisão depois da segunda instância só ganhou destaque nos dias atuais em face da mudança de paradigma que se deu com a Lava Jato. Continuasse o sistema penal – como ainda se dá na absoluta maioria de casos que chegam ao Poder Judiciário, fruto da nossa proverbial leniência com os criminosos de colarinho branco – agindo seletivamente, como tem feito historicamente, não haveria insurgência alguma em face da prisão em segunda instância, que, de rigor, é o que sempre ocorre em face dos miseráveis, para os quais são negados, na prática, por motivos de todos conhecidos, os mesmos instrumentos recursais que são utilizados, à exaustão, pelos que podem pagar grandes bancas de advocacia.

A verdade é que, se as instâncias de controle não tivessem, num determinado momento da nossa história, abandonado um pouco a seletividade do Direito Penal, que, efetiva e prioritariamente, pune apenas os miseráveis, ninguém estaria se insurgindo contra a prisão em segunda instância, que, repito, sempre foi a regra, ainda que não escrita, para a quase totalidade dos condenados, egressos, como regra, das classes menos favorecidas.

É bem de ver-se, pois, que essa luta renhida que se trava em face da prisão em segunda instância não decorre do apego empedernido ao texto constitucional, ao princípio da presunção de inocência, pois, o que se pretende mesmo, é livrar da cadeia uma elite criminosa, que historicamente passou à ilharga da persecução criminal.

Falo isso em face do conhecimento que tenho amealhado nos mais de trinta anos lidando com a criminalidade miúda, para a qual as instituições penais sempre destinaram todo o seu rigor, conquanto tenham sido, historicamente, cordadas, lenientes, covardes e indispostas quando se trata de punir os do andar de cima, cujos crimes, reconheçamos, causam muito mais danos à sociedade que a soma total dos crimes praticados pela clientela miserável do Direito Penal, muitas vezes presa em face de um crime menor e, em seguida, jogada em verdadeiras masmorras, esquecida, vilipendiada, desassistida e abespinhada em sua dignidade, ante o silêncio, algumas vezes covarde e não raro cúmplice, de grande parte da sociedade.

A verdade é que o modelo que estava aí – prisão somente depois de esgotados todos os recursos – não serve à sociedade. Ao contrário, esse modelo era um incentivo à prática de crimes de corrupção, pois a certeza de não ser alcançado pelos órgãos persecutórios é um estímulo à criminalidade, estímulo que se revitalizará tão logo se retome o modelo anterior, de triste memória, mas que ainda se coloca sobre a sociedade como uma espada prestes a lhe decepar a esperança.

Como bem anotou Luís Roberto Barroso, em seu magistral voto no HC acima mencionado, a Nova Ordem que se criou com a mudança de entendimento do Supremo Tribunal Federal criou condições para que fossem alcançadas pessoas que sempre se imaginaram imunes e impunes. A volta da Velha Ordem, como bem lembrou o douto ministro, só beneficiaria duas categorias de malfeitores: i)a dos que não querem ser punidos pelos malfeitos cometidos ao longo de muitos anos; e ii) um lote pior, que é dos que não querem ficar honestos nem daqui para frente.

É isso.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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