A fuga legítima desautoriza o decreto de prisão preventiva

Na sessão de ontem, da Segunda Câmara Criminal, que passei a compor, concedemos um HC a um  paciente com prisão preventiva decretada em face de sua “fuga do distrito da culpa”.

O argumento para concessão da ordem foi a falta de fundamentação do decreto, pois que o magistrado de base não foi capaz de demonstrar, quantum satis, por que a fuga do acusado do distrito da culpa justificaria a medida extrema.

Simplesmente, candidamente, comodamente, decretou a prisão, usando, tão somente, o argumento da fuga do distrito da culpa, como se não fosse obrigado, de lege lata, a fundamentar as duas decisões, máxime quando se trata de uma medida de extrema ratio.

No despacho que publico a seguir, do tempo em que militei na primeira instância, eu faço uma reflexão acerca da quaestio, para demonstrar que não é toda fuga que autoriza a adoção da medida cautelar extrema.

Em determinado fragmento destaco que a fuga legítima não autoriza a decretação da prisão preventiva do paciente.

Não vou me aprofundar nessas linhas introdutórias, pois o despacho fala por si só.

A seguir, pois, o despacho, verbis:

PROCESSO Nº 10018/2007

PEDIDO DE REVOGAÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA

REQUERENTE: N.S.A

INCIDÊNCIA COMPORTAMENTAL: ARTIGO 121,§2º II E IV DO CP

Vistos, etc.

01. Cuida-se de pedido de REVOGAÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA formulado por N. S.A., denunciado neste juízo por incidência comportamental no artigo 121,§2º, II e IV, do Código Penal brasileiro.
02. O acusado alega que é primário, tem bons antecedentes, profissão definida e residência fixa, dentre outros predicados, e que, por isso, a sua prisão é desnecessária.
03. O MINISTÉRIO PÚBLICO, instado a se manifestar, opinou pelo indeferimento do pleito.(fls.15/18)
04. Vieram-me os autos conclusos para deliberar.
05. O requerente, reafirmo, foi denunciado por crime de homicídio duplamente qualificado, em face de ter assassinado R., esmagando o seu crânio com golpes desferidos com um botijão, ao tempo em que o inditoso dormia no depósito no qual trabalhava como vigia.
06. O acusado se encontra preso em face de um DECRETO DE PRISÃO PREVENTIVA editado nesta vara, em homenagem à ordem pública, como garantia da instrução criminal e para assegurar a aplicação da lei penal, em face da gravidade do crime e em vista da sua fuga do distrito da culpa.(fls.43/44, p. nº 10018/2007)
07. O mandado de prisão foi cumprido no dia 27 de outubro de 2007, estando o acusado, até a data atual, segregado.(fls.32/33 – p. nº 10018/2007)
08. Compreendo, na mesma linha de pensar do MINISTÉRIO PÚBLICO, que os motivos que renderam ensachas à decretação da prisão preventiva do acusado permanecem inalterados.
08.01. Cumpre destacar, nesse passo, que a confissão do acusado em sede judicial, com os detalhes que declinou acerca da ação criminosa, pelo que contém de dramáticos e nauseabundos, causam estupor, revolta e indignação, a legitimar, também por isso, a manutenção da sua prisão, pois que demonstrou, com a sua ação, toda a sua perigosidade.
09. Como antecipei acima, além da extrema violência do crime, conspira contra o pleito do acusado o fato deste, após a prática do crime, ter fugido do distrito da culpa, indo homiziar-se, num assentamento em Buriticupu-MA, demonstrando, quantum satis, que não deseja suportar as conseqüências jurídico-penais de sua ação.
10. Da mesma sorte, depõe em desfavor do pleito sob retina, a frieza, a crueldade e a covardia do acusado, o qual, depois do crime, ainda comprou merla e a consumiu em seguida, indiferente às conseqüências do atuar réprobo.
11. É cediço que quem age – como agiu o acusado – , quem demonstra – como demonstrou o acusado – , nenhuma sensibilidade moral, não pode ter restituída a sua liberdade, em face do perigo que representa para ordem pública, repetidas vezes vilipendiadas em face da ação de meliantes de igual matiz.
12. O acusado, repito, além de frio e cruel, fugiu do distrito da culpa, logo após a prática do crime, do que se infere que, se colocado em liberdade, poderá, sim, com muita probabilidade, tomar paradeiro incerto.
12.01. Sobreleva anotar, para espancar eventuais incompreensões, que as afirmações que faço acerca da personalidade do acusado decorrem, fundamental e exclusivamente, dos dados colacionados na fase periférica da persecução criminal, tendo em vista que, em sede judicial, não há dados que me possibilitem fazer esse tipo de afirmação; e se os tivessem não o faria, para não incorrer no grave equívoco de pré-julgar o acusado.
13. Retomando o curso da decisão, sobreleva gizar, pois, que as razões que legitimaram o decreto de prisão preventiva permanecem inalterados, por isso o acusado deve ser mantido preso, ainda que seja primário e tenha bons antecedentes, dados que, isoladamente, não obstam a prisão provisória, em qualquer uma das suas versões.
14. De lege lata, sabe-se, “O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no correr do processo, verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem”.
14.01. O fato de o acusado se encontrar preso, em virtude do decreto de prisão preventiva aqui editado, não faz desaparecer, como num passe de mágica, o motivo principal da decretação, qual seja, a sua fuga do distrito da culpa, logo após a praticado do crime.
14.01.01. Inconfutável, pois, em face dessa questão fática elementar, que o pleito que formula o acusado carece de base legal, pois que os motivos do decreto permanecem inalterados.
15. Por amor ao debate, consigno que, segundo reiteradíssimas decisões pretorianas, à frente o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, a fuga do acusado do distrito da culpa, após a prática do crime, autoriza, sim, a medida extrema.
15.01. O afastamento do acusado do distrito da culpa, é a justa causa que se invocou, pois, para decretar-lhe a prisão e que invoco, hic et nunc, para indeferir o pedido de revogação da medida extrema.
15.01.01. Nessa senda, assinalo, ad argumentandum, que o acusado não fugiu do distrito da culpa porque, por exemplo, estivesse sendo ameaçado de morte. Não! O acusado fugiu do distrito da culpa, assim vislumbro o fato, porque não pretendia arcar com as conseqüências de sua ação.
15.01.02. A fuga do acusado, é a fuga que os doutrinadores chamam de obstrucionista; visa, portanto, obstruir a ação dos órgãos persecutórios.
16. A prisão preventiva, todos sabemos, deve ser adotada como uma exceção, já que, por meio dela, priva-se o réu de seu jus libertatis antes do pronunciamento condenatório definitivo. Não pode, pois, ser tomada sem base legal e fática. Só pode ser decretada, como efetivamente o foi, quando dados concretos extraídos dos autos revelam a sua necessidade.
16.01. Todos os Tribunais – não conheço exceção – admitem, no caso de fuga obstrucionista, a decretação da prisão preventiva do réu foragido.
17. O que não se admite, sob qualquer hipótese, é o decreto de prisão preventiva esteado na fuga virtual do acusado, na fuga em perspectiva, sem nenhum dado objetivo, portanto, a demonstrar a sua necessidade.
17.01. No caso sub examine, está-se diante de um fato extraído do mundo real e não do mundo de fantasia, ficcional – decorrente de uma elucubração, enfim.
17.01.01. O acusado, em verdade, fugiu – fato concreto – do distrito da culpa, com a clara intenção de furtar-se dação da justiça, e preso só se encontra – outro fato concreto – por força de decreto legitimamente editado.
18. A fuga do acusado, ao que ressurte dos autos, é daquelas que demosntram, à toda evidência, que o autor do ilícito a coloca em prática com a clara intenção de assegurar a impunidade, obstando a ação dos órgãos estatais.
19. O acusado, repito, não fugiu porque havia, a lhe torturar, a ameaça de uma prisão arbitraria. O acusado não fugiu, também, numa situação de legítima defesa. O acusado fugiu, pura e simplesmente, porque não deseja arcar com as conseqüências jurídico-penais de sua ação.
19.01. A fuga do acusado em circunstâncias que façam concluir que busca a impunidade, legitima, sim, a medida extrema.
19.01.01. Diferente seria se, por exemplo, tivesse fugido temendo uma arbitrariedade da autoridade policial ou uma vendeta por parte dos familiares do ofendido. Nessa hipótese, é curial compreender, a fuga, por si só, não autoriza a adoção da medida aflitiva.
20. A fuga legítima, devo dizer, nunca autoriza a decretação da prisão de um acusado. A fuga que autoriza é a fuga ilegítima. Quem foge, ad exempli, em face da notícia de uma prisão temporária arbitrária, age legitimamente e, nessa hipótese, não se justifica o decreto de prisão sob essa alegação.
21. O acusado, vejo do patrimônio probatório até aqui amealhado, fugiu, pura e simplesmente, porque deseja se furtar da ação dos órgãos persecutórios, daí, repito, a legitimidade da medida extrema posta em prática. Daí a inviabilidade de revogar-se o decreto sob retina, pois que persistem os motivos que autorizaram a sua adoção.
22. TUDO DE ESSENCIAL POSTO E ANALISADO, indefiro o pedido de Revogação de Prisão Preventiva formulado por N.S.A, tendo em vista que persistem os motivos de sua decretação.
23. Int.
24. Dê-se vista dos autos ao MINISTÉRIO PÚBLICO, em face do pedido retro.
25. Retornando os autos do MINISTÉRIO PÚBLICO, designe-se, de logo audiência, para que se realize a instrução a tempo e hora, sem a submissão do acusado a constrangimento ilegal.

São Luis, 02 de maio de 2008.

Juiz José Luiz Oliveira de Almeida
Titular da 7ª Vara Criminal, respondendo pela 6ª Vara Criminal

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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