Hoje à tarde realizei a instrução de um processo, a cujo acusado se imputa a prática de crime de homicídio, de competência, portanto, do Tribunal do Júri.
Mas o que desejo mesmo, com essas linhas, é refletir o quanto é inviável colher das testemunhas a verdade. Todas as pessoas que foram ouvidas hoje à tarde, tergiversaram ou mentiram. Nalgumas testemunhas viu-se, à evidência, o pavor de depor contra o acusado. Diante desse quadro, o que nós, juizes, podemos fazer? Devemos, invocando a letra congelada da lei, prender a testemunha mendaz?
A lei nos manda advertir as testemunhas para as conseqüências do falso testemunho. E assim que procedemos. Apesar da advertência, elas mentem ou calam a verdade, sem que nada se possa fazer. E por que o fazem? Por medo, pura e simplesmente. Elas preferem, muitas vezes, passar pelo constrangimento de ser presas que acusar um réu que, sabem, se for colocado em liberdade, não hesitará em se vingar.
Nessa linha de argumentação dir-se-á que o juiz deve prender a testemunhas, para lhe compelir a falar a verdade. Apesar disso, apesar da previsão legal, não me animo em fazê-lo. Eu compreendo as razões pelas quais muitas testemunhas mentem, calam a verdade. É que foram acostumadas com a impunidade, foram acostumadas a verem os réus presos hoje e soltos amanhã. Diante dessa constatação, como posso obrigar uma testemunha a depor em desfavor de um determinado acusado?
Tem mais. Ninguém – nem o juiz, nem o promotor, nem o advogado – recebe a proteção do Estado. Eu mesmo já fui ameaçado incontáveis vezes e do Estado nunca recebi garantia de vida. Como posso, diante dessa constatação, expor a testemunha e seus familiares ao risco de serem assassinadas?
Ora, se o Juiz não tem garantia de vida, como exigir de uma testemunha, que em pouco tempo vai se defrontar com o acusado, que fale apenas a verdade?
A lei é muito clara no particular. Mas entre a teoria e a prática vai uma distância amazônica. O Juiz, na minha avaliação, não tem o direito de submeter uma testemunha ao perigo de uma vendeta. Somente um juiz insensível prenderá uma testemunha diante do falso testemunho, sabedor que ela mentiu para se proteger a si e à sua família. A menos, claro, que o falso testemunho seja motivado por outras razões que não o medo do acusado contra o qual se depõe. Nessa hipótese, não deve o magistrado tergiversar. Quando, no entanto, a toda evidência, a testemunha se cala por ter sido ameaçada pelo acusado ou por temer uma vendeta, acho que não tem o magistrado o direito de compeli-la a falar, nem tão pouco de prende-la se insistir em não narrar o que sabe.
Recordo de um pai de família, a quem obriguei a falar em desfavor de um determinado acusado, chorando como uma criança, na sala das audiências, na frente de todo mundo, com medo de uma vingança. Como me arrependo de não ter tido a sensibilidade de compreender a situação dessa testemunha! Diante de situações que tais há que se compreender que não se pode seguir, rigorosamente, o que preconiza a lei.
Na audiência de hoje à tarde, vi, sem a mais mínima dúvida, o testemunho mendaz de várias pessoas. Não me senti no direito, no entanto, de pressioná-las, ciente do pavor que tinham do acusado, tido e havido como uma pessoa violenta.
As reflexões que faço, aqui e agora, servem para deixar evidenciado que, no mundo em que vivemos, entre a teoria e a prática, vai uma distância infinita. Entre a letra fria da lei e a realidade, há uma enorme distância. Triste de quem, na minha posição, não for capaz de constatar essa realidade.