Calcanhar de Aquiles*

A dosimetria das penas tem sido o calcanhar de Aquiles dos magistrados, pelo menos aqui no Maranhão.

Não raro, e nesse sentido invoco o testemunho de todos os magistrados de 2º grau que atuam nas Câmaras Criminais, nas apelações – em quase todas, registro – tem-se que redimensionar as penas, por absoluto equívoco na sua dosimetria.

Agora mesmo, examinando  um voto, em face da apelação de nº 03414/2001, constato que o magistrado fixou, injustificadamente, as penas-base aquém do mínimo legal, e, conquanto tenha fixado a pena  aquém do mínimo legal, por entender que todas as circunstâncias judiciais eram  favoráveis ao acusado, decidiu-se pelo regime fechado, para início de cumprimento de pena.

Esses equívocos, quando favorecem os acusados, relevam-se, por óbvio, sobretudo porque, lamentavelmente, o Ministério Público ainda não adquiriu o hábito de recorrer – pelo menos embargar! – quando ocorrem esses graveserros, ficando os recursos, quase sempre, a cargo do acusado, que, por isso, se beneficia do ne reformatio in pejus.

E quando as decisões, ao reverso, são prejudiciais ao acusado e não recorre a defesa?

O que fazer?

Aí só resta a revisional.

Mas para revisional, o réu preciso advogado.

E quando  o acusado não pode pagar advogado e nem há defensor público para cuidar de sua defesa?

Aí, meu amigo, só apelando para um ser superior. A tendência é que o réu prejudicado pague pelos erros e omissões do Estado.

O que importa reafirmar, diante de situações desse matiz, é que ao Estado-Juiz é defeso afrontar o direito dos cidadãos, ainda que denunciado pela prática de crimes hediondos, mesmo porque, apesar disso, não deixa de ter dignidade, não deixar de ser um sujeito de direitos, que devem- ou, pelo menos, deveria – protegê-lo das interferências ilegítimas dos agentes do Estado.

Não se pode, muito menos um magistrado, afrontar a dignidade de um cidadão, ainda que a este cidadão se impute a prática de um crime abjeto.

O princípio da dignidade da pessoa humana, todos sabemos, é valor-guia que deve irradiar os seus efeitos sobre todo ordenamento jurídico, devendo, por isso, ser sopesado quando nos decidimos por um decreto de preceito sancionatório.

O magistrado deve ter presente que a dignidade não pode ser renunciada e nem vilipendiada, de modo que não se pode sequer elucubrar que reconhece-la é um favor, posto que, repito, é atributo inerente a cada pessoa, dada a sua própria condição de ser humano.

Devo relembrar que o juiz tem,  dentro do Estado de Direito, assume uma posição garantista e que a legitimidade de sua ação não é política, mas constitucional, e que a ele é defeso tangenciar os direitos fundamentais do cidadão, inscritos em nossa Carta Magna, que, segundo Ana Paula de Barcellos, é um repositório de esperança.

O cidadão quando decidiu se submeter ao Estado e às suas leis ( cf. teorias contratualistas) o fez na certeza de que o Estado, em relação a ele, se absteria de violar os seus direitos e nem permitiria que fossem violados por outrem.

O juiz deve, sempre, interpretar a lei às luz de determinados valores morais, dentre eles a dignidade da pessoa humana, que não é somente uma valor pessoal, mas um patrimônio social.

O direito, diferente do que se fez sob o fascismo e sob o nazismo, não é instrumento a serviço da barbárie, da dominação e da iniquidade.

Todas as vezes que um magistrado se decida pela condenação de um acusado, deve se esmerar, mais e mais, para que a lei seja aplicada com correção; se necessário, se afronta a dignidade da pessoa, pode até deixar de aplicá-la, sabido que o direito, muitas vezes, não se circunscreve apenas à literalidade formal da lei, daí que sua interpretação deve ser temperada pela filosofia moral.

*É uma das mais populares metáforas sobre a fragilidade humana. Tétis segurou seu filho Aquiles pelo calcanhar para mergulha-lo num rio egípcio que o tornaria invencível. Queria contrariar um oráculo que dizia que seu filho morreria na guerra de Tróia. Durante uma batalha, no entanto, Aquiles tomou uma flechada em seu único ponto vulnerável: o calcanhar, que não havia sido banhado no rio por sua mãe. A partir daí, a expressão calcanhar-de-aquiles indica um ponto franco de uma pessoa.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

2 comentários em “Calcanhar de Aquiles*”

  1. Belo discurso Desembargador, que pena tenha a sua existência adstrita às cancelas deste blog, pois o que se tem visto nas Câmaras Criminais deste Estado é uma verdadeira chacina à dignidade do ser humano, tudo em nome da defesa da sociedade,da famigerada ordem pública, enquanto que as leis e
    a Constituição Federal, que deveriam ser objeto de defesa do PoderJudiciário enquanto garantidor do Estado de Direito, são relegados a segundo ou terceiro plano. Estamos a viver um verdadeiro salve-se quem puder.

  2. Melhor Desembargador, um Estado Totalitário, um verdadeiro caos. Deus nos livre das garras dos Justiceiros.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.