“Vá chafurdar no lixo”, disse o presidente do Supremo
Por Vladimir Passos de Freitas
No último dia 5 de março, ao deixar uma sessão no CNJ, o ministro Joaquim Barbosa, que preside aquele órgão e o Supremo Tribunal Federal, foi abordado por um repórter do jornal O Estado de S. Paulo que lhe perguntou: “Presidente, como o senhor está vendo…”.
A indagação, que não chegou ao final, desejava saber a opinião do Presidente sobre a nota das três principais associações de magistrados (AMB, Ajufe e Anamatra), criticando entrevista de Joaquim Barbosa, que atribuiu aos juízes brasileiros terem mentalidade “mais conservadora, pró status quo, pela impunidade”.
Ao ser inquirido, o presidente do STF, segundo a imprensa, teria respondido não estar vendo nada e, diante da insistência do jornalista, teria afirmado: “Me deixa em paz, rapaz. Vá chafurdar no lixo como você faz sempre” , além de tê-lo chamado de palhaço.
Pouco depois, por meio da assessoria, o chefe do Poder Judiciário teria pedido desculpas, justificando sua conduta por estar cansado e com dores nas costas. Como é do conhecimento geral, Joaquim Barbosa tem sérios problemas de coluna.
Quem conhece as sessões do CNJ sabe que elas são extremamente cansativas. Discutem-se horas seguidas os temas mais complexos da magistratura. Muitas vezes, intrincados processos administrativos, com centenas de arquivos. Sim, arquivos eletrônicos, chamados de evento, pois os processos não são de papel.
Portanto, é normal que o presidente, ao fim do dia, estivesse exausto, ainda mais com dores no corpo. Mas daí a aceitar tal fato como justificativa para a frase dirigida ao jornalista, vai uma distância considerável.
Chafurda é chiqueiro, lamaçal. Chafurdar é revolver-se na chafurda (Dicionário Folha/Aurélio, p.143). Portanto, ao repórter atribuiu-se entrar e revolver-se em um chiqueiro, agir como um porco à moda antiga, já que agora eles são criados com todos os requisitos de higiene.
Seria esta a linguagem adequada ao magistrado supremo?
O ministro Joaquim Barbosa, por força de sua atuação como relator no “caso Mensalão”, atraiu a atenção de toda a população brasileira. É, sem dúvida, o magistrado mais popular do Brasil. Identificado nos locais onde transita, tem o apoio e a admiração da sociedade brasileira.
Na referida Ação Penal, que é a mais famosa do Brasil, não se limitou a ser um juiz severo. Foi além. Lutou por seus pontos de vista, saiu da posição cômoda dos argumentos técnicos para entrar em discussões sobre a realidade social, penas, prisões e outros temas. Foi vencedor na maioria das teses e a população passou a vê-lo como uma pessoa idealista, lutadora, incorruptível.
É bom ser visto desta forma. Com certeza, o ministro sente orgulho de suas posições. A questão é saber se isto lhe dá uma capa de proteção absoluta, uma blindagem, permitindo-lhe que diga ou faça o que lhe vem à mente.
Dos magistrados, exigem-se todas as virtudes. Entre elas, segundo E. Moura Bittencourt, “a brandura de trato de par com a energia de atitudes” (O Juiz, Eud, p. 30). Sidnei Beneti lembra que “O juiz não pode gritar com ninguém” e que “… se o juiz perder a calma, ninguém mais a controlará”(Da conduta do juiz, Saraiva, p. 28).
O Código de Ética do CNJ dispõe no artigo 22 que: “O magistrado tem o dever de cortesia para com os colegas, os membros do Ministério Público, os advogados, os servidores, as partes, as testemunhas e todos quantos se relacionem com a administração da Justiça.” Portanto, jornalistas, nas suas atividades ligadas ao Judiciário, têm o direito de serem tratados com cortesia.
É verdade que os ministros do STF não estão sujeitos à ação do CNJ nem ao seu Código de Ética. Mas, por óbvio, suas regras auxiliam no estabelecimento de limites, de marcos, separando fronteiras entre o aceitado e o proibido.
Mas será fácil o relacionamento juiz/mídia? Não, por certo.
O professor Hernán F.L. Blanco, da Universidade de Bogotá, Colômbia, registra que “Es notória la presión frente a determinados casos judiciales ejercida pela prensa, radio y televisión” (El juez y La magistratura, Rubinzal-Culzoni, p. 207). Portanto, lá como cá existe uma zona de tensão entre a mídia e o Judiciário, que se pautam por regras de conduta divergentes (rapidez versus prudência).
Por tal motivo, os tribunais atualmente, ao aprovarem novos juízes, promovem cursos de preparação ao exercício da magistratura, neles introduzindo aulas de relações com a mídia.
Quando um juiz supremo (leia-se do STF) envolve-se em situações como a analisada neste artigo, entra em uma zona de risco adversa. Primeiro, seu elevado cargo não recomenda que se atrite com terceiros. Mas, se isto ocorrer, sujeita-se a sofrer ações judiciais que vão tirar-lhe a paz de espírito por longo tempo. Afinal, vivemos em uma democracia plena.
Na frase “chafurdar no lixo” está uma depreciação da pessoa do jornalista, qual seja, atribuir-lhe a condição de porco, que no mundo animal não é das mais admiradas. Aí pode sobrevir queixa-crime perante o STF por crime de injúria, previsto no artigo 140 do Código Penal, punido de um a seis meses, ou multa.
Do ponto de vista civil, uma ofensa pública pode ensejar ação de indenização por danos morais, com base no artigo 5º, V, da Constituição e artigo 186 do Código Civil. E esta ação, se tiver valor até 40 salários-mínimos (R$ 27.120,00), pode ser proposta no Juizado Especial do domicílio da vítima, na forma do artigo 4º, inciso III da Lei 9.099/85, obrigando o agente político a nele comparecer e defender-se.
Tais riscos, em nada agradáveis, não só recomendam como impõem cautela aos agentes políticos nas suas manifestações. No caso concreto, o oportuno pedido de desculpas tornou remota estas possibilidades.
Evidentemente, não se nega aos detentores dos cargos de cúpula o direito de sentirem-se cansados, exauridos. Porém, nega-se-lhes, sim, o direito de tratar aos que os procuram com desatenção, ironia ou agressividade. E eventuais problemas pessoais que estejam vivendo, por mais graves que sejam, não lhes dão justificativa para a quebra da regra de cortesia.
Dos ministros do STF a população espera imparcialidade, serenidade, vida exemplar, pois suas ações no mundo digital em que vivemos são acompanhadas pela população e geram reflexos na conduta do toda a magistratura nacional, atualmente com mais de 16 mil juízes.
Sintetizando, sempre é oportuno lembrar o exemplo da ministra Ellen Northfleet que, com sua postura sempre elegante e conduta coerente, dignificou a magistratura suprema.
Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi presidente, e professor doutor de Direito Ambiental da PUC-PR.