A história não me deixará em falta: os Poderes Judiciário e Legislativo, ao longo da sua existência, viveram, quase sempre, em estado de letargia, à sombra do Poder Executivo, vendo a banda passar e deixando que os grandes temas, as grandes questões nacionais/estaduais fossem, como regra, decididas, enfrentadas pelo mais poderoso e onipotente dos poderes.
No Brasil, ocorreu de o Poder Judiciário, pela sua Corte Constitucional, nos últimos anos, sair de uma, digamos, zona de conforto – para usar uma construção muito em moda – ,passando a ocupar, com sofreguidão, o espaço que lhe reserva, nos dias presentes, a nossa Carta Política, disso resultando um certo desconforto em face dos demais Poderes, que culminou com a aprovação de uma Pec, pela CCJ, que confere ao Congresso Nacional a possibilidade de rever as decisões do Supremo Tribunal Federal e até mesmo submeter algumas delas a plebiscito, tudo parecendo uma retaliação em face da atuação da nossa Corte Suprema no julgamento do mensalão.
O Supremo Tribunal Federal, tão acanhado e arredio no passado, em face de questões desse jaez, foi além, muito além: valeu-se da prosaica inércia do Poder Legislativo e da força normativa da vigente Constituição para, na mesma balada, ocupar o espaço deixado pelas instituições majoritárias, decidindo, como protagonista, as grandes questões nacionais, muitas das quais com inegável repercussão junto às demais esferas de poder.
Para completar a recuperação do espaço que, ao que parece, nunca fizera questão de ocupar, pelos mais diversos motivos, a mais alta cúpula do Poder Judiciário foi além: ousou condenar figurações da república, em face do famigerado mensalão, postura “agressiva” para os padrões nacionais, que os mais otimistas não esperavam dele, definitivamente. Com essa nova postura, é claro que o STF desagradou, ousou mais do que esperavam os mais otimistas, comprou, enfim, uma briga, chamou para si os holofotes, de tal modo que há magistrados que são, hoje, verdadeiros pop stars.
A partir do espaço conquistado pelo Supremo Tribunal Federal e da sua “ingerência” na esfera dos demais Poderes – sobretudo junto ao Poder Legislativo, que dos três Poderes é o que se mostra mais propenso a não enfrentar questões de grande repercussão, que permanece imobilizado, decidindo apenas questões pontuais, de acordo com os interesses de uns poucos ou para atender aos comandos do Poder Executivo, de quem sempre viveu como um apêndice -, veio a crise que agora testemunhamos: a Suprema Corte foi se tornando alvo das “atenções” do Poder Legislativo Federal, das quais resultaram a Pec antes mencionada, que, aos olhos de quem quer ver, é uma afronta à democracia.
Os críticos do Poder Judiciário, os mesmos que cobravam uma ação menos contemplativa, agora o denominam, pejorativamente, de quarto poder, variante do poder legislativo, legislador complementar ou legislador positivo, numa evidente tentativa de desqualificá-lo, curiosamente no instante em que ele, sem o acanhamento do passado, assume o papel de protagonista, saindo de uma quase inércia histórica, para, sem temor, punir os que não se comportaram bem no exercício do poder político.
É preciso convir que as críticas que vêm do parlamento federal, em face da atuação do Poder Judiciário, são injustas e emocionais, pois que a agora quase onipotência da nossa Suprema Corte decorre, naturalmente, dos equívocos do próprio constituinte, na elaboração de uma Constituição detalhista e minudente, a possibilitar que a quase totalidade das questões nacionais sejam deslocadas para sua esfera de competência.
De mais a mais, não se pode perder de vista que a omissão do próprio parlamento foi que permitiu a transferência do poder político ao Poder Judiciário, vez que sempre se recusou a enfrentar as grandes questões nacionais, com receio da repercussão delas junto aos eleitores.
No exame dessas questões não se pode deslembrar que, como bem anotou Charles Hughes, então governador de Nova York e, depois, membro da Suprema Corte dos Estados Unidos, a Carta Política de uma nação é aquilo que os juízes dizem que ela é, disso inferindo-se que, quando ela diz muito, sobretudo em face da polissemia dos seus termos e da abertura semântica dos princípios nela albergados, os juízes, como conseqüência, dizem muito mais; e quando os juízes dizem muito mais,eles tendem, naturalmente, a ir além, para, nessa balada, se apropriarem, até, do espaço que decorre da omissão das outras esferas de poder.