Ouvidoria judiciária como modelo de ombudsman e princípio republicano
Paulo Velten, desembargador do TJMA e Ouvidor da Justiça Estadual
O excesso de lisonjas que cerca os detentores de poder não raro tem o efeito de empanar a capacidade de recepção a críticas e reclamações, quase sempre recebidas com desconfiança e equivocadamente interpretadas como ataques injustos advindos de pessoas mal intencionadas.
Esse comportamento defensivo, de quase aversão à crítica e à cobrança por resultados gera o isolamento e a perda de contato com a realidade, faz com que o agente político se afaste da sociedade, deixando escapar uma importante fonte de renovação e uma rara oportunidade de comunicação com o destinatário do serviço público.
Ouvidoria judiciária como modelo de ombudsman e princípio republicano
O excesso de lisonjas que cerca os detentores de poder não raro tem o efeito de empanar a capacidade de recepção a críticas e reclamações, quase sempre recebidas com desconfiança e equivocadamente interpretadas como ataques injustos advindos de pessoas mal intencionadas.
Esse comportamento defensivo, de quase aversão à crítica e à cobrança por resultados gera o isolamento e a perda de contato com a realidade, faz com que o agente político se afaste da sociedade, deixando escapar uma importante fonte de renovação e uma rara oportunidade de comunicação com o destinatário do serviço público.
No âmbito do Poder Judiciário, essa realidade tem sido profundamente modificada por meio de inúmeras inovações institucionais que contribuem na construção de uma justiça democrática de proximidade, na feliz expressão de Boaventura de Sousa Santos.
Entre essas inovações, destacamos a criação das ouvidorias judiciárias, órgãos de representação da sociedade com competência para, essencialmente, prestar informações, receber críticas e apurar reclamações sobre deficiências na prestação dos serviços judiciais, sugerindo a adoção de medidas tendentes à sua melhoria.
As modernas ouvidorias não se baseiam em suas congêneres do século XVI, que remetem aos ouvidores-gerais, como eram chamados os funcionários encarregados de auxiliar o rei na atividade de administração da justiça perante as colônias. Inspiram-se, verdadeiramente, no modelo de ombudsman da Suécia, desenvolvido a partir do início do século XIX, cuja função era encaminhar as reclamações e críticas da população, atuando como um representante do cidadão perante o Estado. A diferença está no fato de que as ouvidorias coloniais ouviam o monarca. As do modelo sueco, o povo.
Já na segunda metade do século XX, a figura do ombudsman é adotada por alguns órgãos de imprensa, servindo para designar o representante dos leitores dentro de um jornal, de regra um profissional da própria redação dedicado a receber, apurar e encaminhar as reclamações e sugestões do leitor de forma pública, aprimorando o serviço prestado por meio da crítica interna e imparcial.
Derivando desse mesmo modelo de ombudsman, as atuais ouvidorias judiciárias não podem ser concebidas como entidades representantes do Estado junto à sociedade, pois a rigor significam exatamente o inverso, ou seja, são órgãos de representação da população perante o Judiciário, com a função histórica de receber e encaminhar reclamações, críticas e sugestões visando o aperfeiçoamento do Poder.
E é também porque fundadas na ideia de ombudsman, que as ouvidorias, mais do que simples órgãos de encaminhamento de reclamações, devem também ser assimiladas como princípio, como uma postura republicana a ser assumida por juízes e servidores do Judiciário, um comportamento cívico de tolerância e compreensão, de recepção entusiasmada à crítica e à cobrança da sociedade.
Tal como acontece nas relações de afeto, só faz a crítica e cobra resultados quem respeita e valoriza. Por isso devemos receber as críticas e reclamações com maturidade e espírito aberto, sem indisposição, transformando o dever de resposta e informação em oportunidade de comunicação e de prestação de contas à sociedade (accountability). Essa deve ser a postura republicana incorporada às boas práticas do Judiciário.
Quando fala e reclama, o cidadão também participa da vida pública, sente-se integrado e dando sua parcela de contribuição para a construção de uma sociedade mais justa, fraterna e solidária. Quando, de nossa parte, deixamos um pouco de lado as “sólidas opiniões”, abrindo nossas mentes como bons ouvintes, passamos a entender e a também respeitar a opinião do outro, o que é condição fundamental para a vida democrática.
Com isso, ganhamos a chance de descobrir um novo Poder, um Judiciário a partir da visão dos destinatários de nossas decisões. A verdadeira viagem do descobrimento, advertia Proust, não consiste em procurar novas paisagens, mas em ver com novos olhos.
Renovando e ampliando nossa visão do Judiciário, com a assimilação do princípio da ouvidoria e sua concretização no dia-a-dia, teremos a verdadeira dimensão da importância do nosso trabalho e um novo estímulo na árdua tarefa de assegurar a ordem prometida pelo constituinte.