Somos assim

Tenho verificado, com muito mais ênfase nos dias atuais, em tempos de puro egoísmo e ambição material desmedidos, que, aos olhos dos semelhantes, o problema do vizinho é só dele, e que o meu problema, noutro giro, não é problema do vizinho.

Somos assim, fácil constatar, desde que o mundo é mundo. Vivemos, mais do que nunca, tempos que induzem  que cada um cuide de si. Vivemos, com efeito, tempos de solidariedade muito próxima de zero. Por isso, temos sido mais solitários que solidários, mais sozinhos  que vizinhos (E. Mougenot Bonfim)

Repito: somos assim, ou melhor, quase sempre somos assim. Digo quase sempre, porque existem as exceções. Mas eu não estou refletindo em face das exceções; reflito em face da regra. Por isso, não se há de negar que somos, sim, na maioria das vezes, egoístas, personalistas, egocêntricos, intolerantes e intransigentes.  E, sempre que pensamos e agimos assim, aviltamos o sentimento de solidariedade que deveria presidir as nossas ações, inspirados no sentimento mesquinho de que o melhor mesmo é levar vantagem de ordem pessoal, pouco importando a dor ou o sofrimento do irmão.  É dizer, desde que a manga do vizinho não caia sobre o meu telhado, pouco me importa se as minhas destruam o dele, já que os meus interesses, sejam quais forem as circunstâncias, deverão, sempre,  ocupar lugar de destaque na minha vida, sem concessão a quem quer que seja.

Pensando assim, vamos fragilizando as relações com o semelhante, vamos nos isolando em nosso casulo, com os olhos voltados apenas para nós mesmos, como se fosse possível construir o mundo sob a perspectiva tão somente do que os meus olhos podem ver, e o meu coração possa sentir ou ambicionar.

 Conforme sabemos bem, tudo nessa vida depende do ponto de observação de cada um de nós. Vemos os fatos e os interpretamos de acordo com as nossas conveniências, as nossas crenças, os nossos interesses. Falta-nos, lamentável dizer, desprendimento, sensatez, sentimento de cooperação e, muitas vezes, altivez para reconhecer, por exemplo, o direito do contendor.

Trazendo as reflexões para o mundo do direito, consta-se que, numa demanda judicial, há, quase sempre, uma resistência, exatamente porque os contendores, dependendo do seu ponto de observação, dos seus interesses, dos seus valores e das suas conveniências, julgam, muitas vezes, por espírito de emulação, que é melhor demandar, eternizar o litígio, do que ceder; é como se fosse uma questão de honra aviltar a lei do bom senso.

No mundo em que vivemos, de competição exacerbada, é muito raro encontrar alguém com humildade suficiente para reconhecer que o outro tem razão. Isso acontece, muitas vezes, em virtude da visão obliterada e mesquinha que tem dos fatos, a enevoar a sua capacidade de discernimento, o que resulta, infelizmente, da busca frenética e incessante, por vezes desleal, de levar vantagem,

Há cerca de dois anos fui atropelado, na Estrada da Vitória, próximo ao Hospital Sara. O motorista do veículo cuidou de me socorrer. Mostrou-se transtornado com a situação e as consequências que dela poderiam advir. Quando entrei no seu veículo, a caminho do hospital, sangrando muito, sem a exata dimensão do alcance das lesões, a primeira coisa que disse ao autor do fato é que ele não tinha culpa; assumi, sem titubeio, que o culpado tinha sido eu, que atravessei a pista de rolamento, sem as cautelas devidas.

Todavia, nem sempre é assim. Os exemplos se multiplicam sob os nossos olhos. As pessoas têm uma certa dificuldade para assumir o erro, admitir que não têm direito. É que, para muitos, o seu umbigo é o centro do universo. Daí por que analisam os fatos sempre à luz das suas perspectivas e dos seus interesses, às vezes mesquinhos.

E, assim, vamos dando aos fatos a interpretação que nos convém, de acordo com a nossa equivocada visão de mundo, dificultando as relações, fomentando o litígio, dando vazão à discórdia, passando as pernas em uns e tripudiando sobre os interesses de outros, a reafirmar que, sobre a terra, o animal mais perigoso é mesmo o homem que, por isso, não cansa de surpreender.

Desde o meu ponto de observação, até aonde alcança a minha percepção, entendo que ninguém deve se orgulhar (a menos que seja doente) de fazer o mal, de passar a perna em alguém ou de ser prepotente, arrogante, raivoso, psicótico e cruel, indiferente às consequências da sua maldade, como principia por admitir o protagonista do estupendo Notas do Subsolo (ou Memórias do Subsolo), de  Fiódor Doistoiévisk.

É, infelizmente, somos assim.

 

 

 

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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