Nos momentos difíceis da vida, somos obrigados a testar a nossa força, placidez e equilíbrio, para enfrentar as adversidades. Todavia, imagino que poucos conseguem, diante de uma grande adversidade, manter o equilíbrio, a sensatez e o bom senso. Ninguém pode, de rigor, dizer como agiria diante de uma intempérie, pois tudo vai depender do estado emocional, do preparo psicológico, da intensidade do momento adverso.
Para ilustrar essa realidade, vou me reportar ao seguinte fato: Luís XVI, segundo registros históricos, ouviu, com raro sangue-frio, a leitura da sua sentença de morte. Consta que ouviu o veredicto com unção, dignidade, nobreza – e com postura, como se fosse um homem sobrenatural, sem que se saiba onde o rei encontrou forças para se manter equilibrado num momento tão difícil.
Dados históricos dão-nos conta, ademais, que Luiz XVI, dias antes de ser decapitado, ainda apelou para que o deixassem ver a sua família por três dias, sem vigilância, prazo que lhe teria sido negado, como uma espécie de provação, no intuito de testar os seus limites. Segundo o abade de Firmont, o rei, mesmo diante da negativa, permaneceu calmo, gracioso e até tranquilo.
Para corroborar a placidez do rei, diante de uma situação em tudo adversa, está nos manuais que pouco depois, ao lhe serviram o último jantar de sua vida, como não lhe haviam levado nem faca e nem garfo, ele não conseguiu conter a irritação, pelo que teria dito: “Consideram-me covarde o suficiente para atentar contra a minha própria vida?”. E teria acrescentado, para estupefação dos presentes: “Eu morrerei sem medo. Gostaria que a minha morte fizesse a alegria dos franceses e pudesse afastar as desgraças que prevejo: o povo entregue à anarquia, vítima de todas as facções, crimes se sucedendo, grandes dissensões dilacerando a França”. (Luis XVI, Bernard Vicent)
Não sei quantos de nós, em circunstâncias semelhantes, sobretudo afastados da família, teriam equilíbrio para enfrentar, com tanto garbo e altivez, uma situação tão desalentadora, tão desesperadora. Quanto a mim, de rigor, posso dizer que nunca passei por uma experiência que me exigisse tanto, nem precisei testar, verdadeiramente, a minha capacidade de enfrentar uma grande adversidade, pois tenho a ventura de, quase sempre, estar em paz e com pouquíssimos problemas sérios para suplantar, o que não deixa de ser uma dádiva, razão pela qual só saberei se terei forças para enfrentar uma adversidade séria quando me vir diante dela.
Muitas vezes, pensando sobre o quanto tenho sido bafejado pela sorte, agradeço pelo pouco que tenho, o que para mim é tudo, porque o fato de eu ter um bom emprego, saúde e uma família já é o suficiente. Meu nível de ambição, portanto, esbarra aí, razão pela qual, também sob esse aspecto, não enfrento nenhuma dificuldade capaz de testar a minha paciência, a minha sobriedade, o meu permanente estado de felicidade.
Portanto, sou dos poucos que não têm do que reclamar da vida, já que ela não tem exigido muito de mim. Além disso, sou feliz, e tenho procurado fazer a felicidade dos que estão à minha volta, pois fazer a felicidade dos que me amam é a minha meta mais ambiciosa, é o meu primeiro e único objetivo. Daí por que, podendo fazê-lo – e fazendo -, recebo em contrapartida a dádiva de ser feliz, de viver em estado permanente de felicidade.
Vivendo num mundo tão controvertido e cada vez mais difícil de ser tolerado, de ser feliz, tenho tido essa ventura, talvez porque a minha ambição tem limite, por não ser do tipo insaciável, do tipo que quer mais, sempre mais, sejam quais forem as barreiras que precisem ser superadas.
Problemas? Tenho-os, mas eu os encaro, assimilo-os, absorvo-os como algo indissociável da vida, porque não sou do tipo que infla os problemas para se vitimizar, para tirar proveito da situação.
Poder? Não sei sequer a sua dimensão. Nesse sentido, sou um babaca. Não sei usá-lo em proveito próprio. Não sei exercê-lo plenamente, no sentido dos que dele fazem uso para fins inconfessáveis. Nesse particular, sou um dileto representante da classe dos otários. O poder que a muitos fascina, para mim só serve para os seus próprios fins, razão pela qual não me vejo diante de nenhum desafio, a testar a minha tolerância.
Dinheiro? Dele não cuido. Não raro, o que coloco em minhas mãos decorrem de mera liberalidade de quem o controla. Enalteço-o apenas no exato limite do que seja suficiente para viver bem. Não sou capaz de qualquer coisa para amealhar além do que consta no meu holerite.
Bens materiais? Quero-os apenas para ter o mínimo de conforto. Não tenho nenhuma volúpia materialista. Não almejo amealhar nenhuma fortuna. Tudo que tenho é, para mim, suficiente, mais que suficiente. Não sou movido pelo quanto mais, melhor. O necessário me satisfaz. Sou um homem sem muita ambição material; tenho-a dentro dos limites da razoabilidade.
Realização profissional? Sim, sou realizado. Não posso querer mais do que tenho. Sou um privilegiado, pois sou pago para fazer o que gosto. E, no exercício do meu mister, tenho procurado servir à sociedade, com a necessária retidão, nos limites da minha competência, sem excessos, com os ímpetos controlados para não abusar do poder.
Todavia, tenho a clareza necessária de que chegará o dia em que terei que enfrentar uma grande adversidade, daquelas que testarão os meus limites, o meu equilíbrio, a minha sensatez, pois que delas nenhum de nós escapará. Nesse dia, espero ter forças para sobrepujá-la, com a necessária altivez, sem me autoflagelar.
Desembargador José Luís, vejo que o senhor é um homem honesto, sensível e justo. O senhor me encantou, pois escreve com o coração. O senhor passa um senso de justiça tão grande e de simplicidade, que me faz acreditar na justiça e no direito. Gostaria de lhe dizer que situação igual a esse do rei, descrita pelo senhor, eu estou atravessando. O limite entre o fim e a vida eu estou vivendo agora. Uma situação tão difícil que essa do rei, parece pequena perto da que eu estou vivendo. As vezes penso em desistir e até dar fim a minha vida, mas sou evangélico e sei que não teria salvação. Tenho uma mãe, que é da assembléia de Deus e ora muito por mim. Eu estou muito aflito e não tenho mais forças pra lutar. Desculpe estar desabafando isso com o senhor, que eu nem conheço, mas o senhor me pareceu ser tão sincero e humano que senti vontade de ter sua amizade. Gostaria muito de ser seu amigo, mesmo que só por aqui mesmo. Deus o abençoe mais e mais.
Nossa! Eu achei o texto belíssimo. Chegar nesse ponto da vida e ter tantas coisas bonitas e importantes assim a dizer, me fazem refletir que o importante da vida é só isso mesmo.
Parabéns! Fascinante a leitura de seus textos Dr., eu gosto muito.