Inicio essas reflexões lembrando que não existe decisão judicial preta prêt-à-porter. Decisão judicial não se compra em shopping. Decisão judicial se constrói. E nessa construção vale muito a posição do intérprete, a sua visão de mundo, os seus valores, a sua ideologia e as suas idiossincrasias. Por isso que, diante da mesma quadra fática, sob as mesmas leis, existem decisões díspares, sem que se possa dizer ao certo que uma esteja errada e a outra, certa.
Feita a observação, passo a discorrer sobre o tema que elegi para reflexão, que é o perdão judicial, numa visão antropocêntrica.
Pois bem. O perdão judicial é uma das causas de extinção de punibilidade, prevista no inciso IX, do artigo 107, do Código Penal Brasileiro, aplicável, dentre outros, ao homicídio culposo Art. 121, § 5º, do CP, “se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária”. É, portanto, um instituto jurídico que dá ao juiz o poder discricionário de abrir mão, em nome do Estado, do direito de punir, em determinadas circunstâncias, por se tratar de direito subjetivo do acusado.
Com efeito, em face do instituto em comento, o magistrado pode deixar de aplicar pena ao autor de uma conduta típica, ilícita e culpável, mesmo reconhecendo a prática do crime, em razão de circunstâncias excepcionais que tornem desnecessária a imposição de pena, como se pode inferir do texto legal acima transcrito, com o que, reafirmo, se extingue a punibilidade do acusado.
No Direito Positivo brasileiro, a aplicação do instituto se dá no momento da prolação da sentença. É dizer: em face desse marco legal, sob uma perspectiva puramente legalista e em vista das correntes doutrinárias e jurisprudenciais prevalecentes, ainda que as circunstâncias excepcionais desautorizem a imposição de pena, o acusado envolvido com a prática do fato típico deve se submeter às agruras da persecução criminal, que vai da abertura do inquérito policial à sentença, com todos os seus consectários, para que, só então,o juiz decida pelo perdão.
Nesse sentido, por maior que tenha sido a dor infligida ao autor do fato, em face do crime, o réu, ex vi legis, será submetido a um sofrimento, que entendo desnecessário, exatamente porque, numa visão puramente dogmática da questão, o perdão não pode ser aplicado no nascedouro da persecução criminal, o que, em face de determinadas circunstâncias, chega a ser injusto ou até mesmo desumano.
Para argumentar em defesa do meu ponto de vista, certamente censurável em face da prevalência de posições antípodas, tomemos o exemplo dos pais que eventualmente sejam responsabilizados pela morte dos filhos que deixaram, por negligência, no interior de um veículo, como noticiado recentemente,
É justo, convenhamos, que esse pai, impregnado de dor em face da ocorrência – talvez a maior das que se possam infligir ao ser humano -, seja submetido à persecução criminal, para que o magistrado condutor do feito, só depois, ao cabo da persecução – por ocasião da sentença -, extinga a punibilidade pelo perdão, em obediência estrita a um formalismo que, nesse caso, se mostra desumano e cruel?
Por que, diante das circunstâncias, evidenciado que o autor do fato não pretendia o resultado, que tudo se deu em face de circunstâncias invencíveis, não aplicar logo o instituto? Por que esperar a oportunidade da sentença para aplicar o perdão? Por que não arquivar, de logo, o inquérito policial, por falta de justa causa, sobretudo a considerar o fato notório, isto é, do conhecimento público, cujas circunstâncias estão a recomendar a não punição?
Para que não se imagine que aqui se estaria a cuidar de uma heresia jurídica, recentemente, o TJ/SP, em um crime de homicídio culposo (trânsito) extinguiu antecipadamente a punibilidade da ré, ao argumento de que o perdão pode ser reconhecido em qualquer momento do processo, segundo os argumentos esposados pelo desembargador Souza Nery. Para esse magistrado, o sofrimento de uma mãe que perde o filho em face de uma conduta negligente, provoca tanta dor, tanto transtorno, tanto sofrimento, que se equipara a uma pena ou mesmo ao dissabor de responder a um processo, tese que, nas mesmas condições, acolho sem restrição.
No caso específico dos pais que esqueceram os filhos no carro, entendo, na mesma linha de pensar, que o mais justo seria o imediato trancamento do IP, por falta de justa causa, ou, noutro giro, a extinção antecipada da punibilidade, na hipótese de já ter sido deflagrada a persecução criminal na sua segunda fase.
É claro que os legalistas, os que sublimam a lei acima de qualquer coisa, haverão de discordar dessa minha posição. Todavia, em defesa da tese, recordo que até recentemente, os magistrados extinguiam a punibilidade pela prescrição em perspectiva, antecipando o julgamento de uma infinidade de processos criminais, a pretexto de não prolongar o desconforto dos acusados, sabendo-se antecipadamente do desfecho, em situações nada parecidas com a de uma mãe ou pai que tenha, por descuido, esquecido do filho no interior do veículo, em razão do que veio a óbito.
Para concluir, consigno que não estou pregando que em tais situações o Estado deva, sempre, abdicar do processamento do autor do fato, já que, desde a minha visão, cada caso deve ser analisado em vista das suas particularidades, a partir das quais se pode, ou não, antecipar o perdão.