O MAGISTRADO FRENTE AOS DILEMAS MORAIS E LEGAIS

20No mundo da relatividade, todos nós enfrentaremos, mais cedo ou mais tarde, inauditos dilemas morais, sem saber, muitas vezes, que posição assumir. Pensemos, por exemplo, no dilema moral de alguém que tivesse a tortura como única alternativa para impedir que um maluco, na direção de um caminhão, passasse por cima de uma multidão, como aconteceu recentemente em Nice, na França.
Decerto que, por princípio, todos nós somos contra a tortura. Todavia, convém ponderar, diante da iminência de um fato de tamanha gravidade, qual de nós, diante do dilema moral acima referido, deixaria de coonestar com a tortura de um homem perigoso, para evitar um mal maior?
Estas reflexões destinam-se aos que pensam que podem, em todas as situações, optar pelo que a lei e a ética recomendam, sem se darem conta de que, entre o discurso politicamente correto e a vida real, há, muitas vezes, um fosso tão grande, um verdadeiro abismo moral, a nos compelir a agir de modo diverso do que pregamos e do que supomos civilizado.
Em vários julgamentos dos quais faço parte, quer como relator, quer como vogal, tenho dito que o dilema moral enfrentado por qualquer um que não tenha o poder de decisão não é, de rigor, um dilema insuperável, pois, basta assumir uma posição, e dela não advirão maiores consequências.
Problema grave, conforme tenho reafirmado, é quando o dilema moral se apresenta casado com um dilema legal, que deve ser enfrentado por quem tenha a obrigação de decidir, por quem tenha, enfim, o poder/dever de julgar. Aí a coisa se complica, pois, diante de um dilema moral e, além do mais legal, não se pode, como costuma brincar Luís Roberto Barroso, declarar a demanda empatada e condenar o secretário judicial às custas processuais.
Pense, a propósito, no dilema legal/moral que vou narrar a seguir, um dos muitos que os juízes de todo Brasil têm que enfrentar no desempenho de suas funções, para que se tenha pelo menos uma parcial ideia do que seja a vida de um julgador.
Manter relações sexuais ou qualquer outro ato libidinoso com menor de 14 anos é crime, mais precisamente estupro de vulnerável, conforme a dicção do artigo 217-A, do Código Penal, com preconização de pena que vai de 8(oito) a 15(quinze) anos de reclusão.
Pela letra fria da lei, pode-se concluir, sem esforço intelectivo, que diante de um ato sexual, ou qualquer outro ato libidinoso diverso da conjunção carnal, praticado contra uma menor de 14(quatorze) anos, está-se diante de um crime de estupro de vulnerável, cujo autor deve ser punido com as penas preconizadas no tipo penal em comento, e estamos conversados. Afinal, em se tratando de menor de 14 anos, a vulnerabilidade, por questão de política criminal, é absoluta, segundo a maioria dos Tribunais brasileiros. É dizer, objetivamente: o agente que mantiver relação sexual com menor de 14 anos ou que com ela pratique outro ato libidinoso diverso da conjunção carnal, pratica, ex vi legis, crime de estupro de vulnerável, sejam quais forem as circunstâncias do crime, conquanto muitos reconheçam, como eu, que, interpretando assim a lei, ou seja, com a consideração de ser sempre absoluta a vulnerabilidade, muitas injustiças são cometidas.
Vou tentar explicar por que entendo que a consideração de vulnerabilidade absoluta pode nos conduzir à pratica de injustiças, a partir de uma hipótese que não é incomum no dia a dia de qualquer comunidade, de qualquer magistrado, enfim.
Pois bem. Um cidadão, maior de 18 anos, vive com uma menor de 14 anos, sob o mesmo teto, como se marido e mulher fossem, na companhia de um filho havido dessa união, fato do conhecimento e aquiescência dos próprios pais da menor e dos cidadãos da comunidade em que vivem. Esse mesmo cidadão, um criminoso pela letra fria da lei é, paradoxalmente, um homem de bem, trabalhador, honesto, de conduta ilibada, que vive para o filho menor e para a companheira.
Contudo, com todos esses predicados e nessas condições, ele pode, como antecipei acima, em face da letra fria da lei (artigo 217-A, do CP) e em vista do entendimento que prevalece em nossos Tribunais, ser processado e condenado em face do crime de estupro de vulnerável, por manter relações sexuais com uma menor que, no caso, é sua companheira, mãe do seu filho. É dizer: pela letra fria da lei, o Estado, pelos seus tentáculos, pode aqui interferir não para preservar a família, mas para desagregá-la, a pretexto de punir alguém por crime de estupro, sem que o bem jurídico, de rigor, tenha sido lesionado.
Diante desse fato, importa indagar: se o principal objetivo do preceito legal em comento é proteger a liberdade sexual da pessoa vulnerável, haveria sentido em uma decisão judicial condenatória, a pretexto de proteger a liberdade sexual da ofendida, tratando-se de mulher que já vive maritalmente com o autor do fato, com experiência sexual inquestionável, e, ademais, com um filho havido desse relacionamento?
Essas reflexões decorrem da minha inquietação em face de decisões de alguns sodalícios, no sentido de presumir absoluta a violência, como antecipei acima, nos casos da prática de ato sexual ou de qualquer outro ato libidinoso, com menor de 14 anos, levando em conta, por excesso de rigor formal, o patamar etário para a caracterização da vulnerabilidade, com esteio numa ficção jurídica que nem sempre encontra amparo no mundo real, a colocar muitos magistrados diante de um grave e inquietante dilema moral e legal, que só pode ser superado pelo bom senso, sem apego rigoroso ao texto da lei, que nem sempre é capaz de conduzi-los à decisão mais justa.
Não consigo assimilar, sem certa inquietação, que o critério biológico adotado pelo legislador é o quanto basta para se aferir a capacidade de discernimento para ato sexual, sem levar em conta, dentre outros aspectos, o consentimento da ofendida, por exemplo, ou o fato de já viver maritalmente com o pretenso criminoso, como exemplificado acima.
Esse é um dos muitos dilemas morais e legais que me têm afligido como, de resto, devem afligir muitos magistrados que, assim como eu, não deixam de se inquietar quando, para fazer justiça, são compelidos a relativizar os rigores da lei, como, afinal, deve ser feito na hipótese sob retina, pois, para mim, casos de igual matiz autorizam a absolvição do acusado por atipicidade da conduta, uma vez provada, quantum satis, a capacidade de consentir, em face mesmo de uma situação jurídica já consolidada, desconsiderada a idade biológica da vítima.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

Um comentário em “O MAGISTRADO FRENTE AOS DILEMAS MORAIS E LEGAIS”

  1. Desembargador! A pouco mais de 03 (três) tivesse acesso a algumas de suas brilhantes decisões e, agora acompanho costumeiramente as as publicações. As suas inquietações são, como Vossa Excelência bem sabe, fruto de quem analisa os casos que lhes são submetidos com imparcialidade e justiça. Melhor dizendo com “equidade”, que diferentemente da misericórdia, que suscita compaixão pela miséria alheia; a “equidade” como sentimento de Justiça tem um critério de moderação e igualdade, ainda que muitas vezes em detrimento do direito objetivo; posto que demonstra-se avesso ao critério de julgamento ou tratamento rigoroso e estritamente legal. Finalizando, com toda vênia, gostaria de dizer que compartilho dessa mesma óptica de Vossa Excelência e, mais, dizer que esses mesmos “DILEMAS MORAIS E LEGAIS”, me são apresentados na labuta diária de estudioso e amante do Direito Penal.

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