Muito jovem, na adolescência, vi, com agastamento natural, a vida (sentido lúdico) lá fora desfilando, impávida, arrogante e prepotente em face daqueles que, como eu, não tinham condições materiais de participar, minimamente, da festa por ela patrocinada, compelido que fui a conviver apenas com as “sobras” do que ela oferecia, decorrência natural das dificuldades materiais pelas quais passei, sem me sentir tentado a praticar nenhum desatino, como fazem muitos jovens nos dias de hoje, quando decidem, por exemplo, pela prática de um assalto, para compartilhar dos bens de consumo aos quais não têm acesso.
A verdade é que, na sua ação discriminadora, pelos mais diversos motivos, a vida desfilava intrépida – como desfila até hoje para muitos –, diante dos meus olhos e de muitos que se encontravam na mesma situação que eu, só oferecendo os seus prazeres – plenamente, despudoradamente – a uma minoria, com a mesma arrogância e prepotência com que negava a muitos – como, de resto, nega até hoje – o direito de vivê-la com igualdade de condições, como era de se esperar numa sociedade que pretendemos justa.
É verdade sabida que ser jovem é muito diferente de ser adulto. Daí que, quando jovem, numa visão equivocada e egocêntrica, a gente pensa que tudo tem que ser para hoje, como se não houvesse amanhã, razão pela qual muitos, como eu, se incomodavam com a vida que se vivia lá fora, alijados, perplexos e, de certa forma, inconformados por não poder participar da festa promovida para uns poucos.
Nesse panorama, estar – ou sentir-se – marginalizado, colocado de lado em face da festa que é viver (sempre no sentido amplo), para os jovens, sobretudo nos dias presentes, bombardeados pelas propagandas que são veiculadas, ad nauseam, nos veículos de comunicação e nas mídias sociais, às quais quase todos têm acesso, pode ser decisivo quanto a atitude a ser adotada doravante – muitos infletindo para a marginalidade –, sobretudo se falham – e eles quase sempre falham – as instâncias de controle, com especial destaque para a família.
Para os adultos, calejados pela vida, já tendo testemunhado as injustiças do mundo e já tendo vivido o suficiente para compreender que só para uns poucos a vida reserva o melhor quinhão, alijando, no mesmo passo, a grande maioria, para a qual nega quase tudo – saúde pública educação de qualidade, e moradia decente, etc –, contemplar a “festa” que a vida promove, sem dela participar, pode ser, a essas alturas do campeonato, pura bobagem, algo indiferente. Muitos, como eu, são cientes de que viver a vida intensamente não se resume aos prazeres do mundo exterior, os quais podemos encontrar, o quanto basta, no ambiente familiar, afinal o lar é onde ocorre a absolvição das lides da vida, lugar onde a gente se despe, muda de pele, tira todos os uniformes que vestiu e os trajes em que se enfiou, onde a gente se desvencilha de todas as feridas e ressentimentos (Casei com um comunista, de Philip Roth).
Para os jovens, entretanto, com os hormônios em ebulição, à flor da pele, a impossibilidade de participar ativamente das festas que a vida promove, pode ser arrebatadora, definitiva, inibidora, preocupante, desanimadora, porque ele pensa, por falta-lhe a exata percepção do que é a vida e seus desdobramentos, que viver se resume aos prazeres que se apresentam agora, o que é próprio da juventude, que imagina que uma oportunidade perdida não se recupera.
Envelhecer, como se vê, também tem as suas vantagens. Quando se é jovem – é claro que estou falando a partir da minha visão de mundo –, é doído ver a vida lá fora desfilando, como muitas vezes vi, sem poder dela participar, daí o sentimento aflitivo, e as vezes incontido, de alijamento, discriminação, impotência, abespinhamento, visão que resulta definitivamente mitigada e arrefecida – quando não expungida – em face do tempo vivido e da experiência acumulada.
Eu testemunhei, sim, muito jovem ainda, da janela entreaberta, a vida lá fora desfilando, impávida (Mia Couto, em Um rio chamado tempo; uma casa chamada terra), sem que tivesse condições de participar da festa, quando incontida era a minha vontade de viver e compartilhar com meus colegas das noites que eles curtiam e sobre as quais eu só ouvia os comentários do dia seguinte, exacerbando a minha inquietação e a minha angústia.
Hoje, cá do meu lado, convivendo com as consequências da passagem inexorável do tempo, não me importo, como fazia na juventude, com a empáfia da vida que desfila lá fora. Se não chego a desprezá-la, posso dizer que a encaro com a mais absoluta naturalidade, quase indiferença. Não estou, na verdade, nem aí para a soberba da vida que se vive lá fora, pois prefiro, sim, ver a vida que desfila, humilde e acolhedora, no interior do meu apartamento, cercado das coisas que gosto, estimo e que me dão prazer.