A relativização da moral

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Não são poucos os que passam horas intermináveis navegando na internet flertando com futilidades, bisbilhotando a vida dos outros, fazendo comentários de ódio, assacando críticas acerbas contra as pessoas que elegem desafetas, condenando uns, absolvendo outros, mas sem a mesma disposição para dar uma “espiadinha básica”, como diz o notável Pedro Bial, para saber o que andou aprontando o seu candidato, como ele enriqueceu numa legislatura, os projetos que apresentou, os processos a que responde etc.

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Dizem que o brasileiro é cordato, tolerante, prestativo e cordial. Não digo que não, nem digo sim; eu apenas relativizo, pois, como tudo na vida, não é possível caracterizar um povo, de forma absoluta, tolerante, prestativo e cordial, como, de resto, não se pode dizer, ademais, que somos um povo indolente e malandro. Logo, não é prudente a adoção de conceitos absolutos, que podem guardar um erro de avaliação e, até, uma injustiça.

Quando se diz, por exemplo, que fulano e sicrano são ótimas pessoas, “uma parte de mim pensa e pondera” (Ferreira Gullar, Traduzir-se), sem permitir que a outra parte de mim se perca em delírios, pois, em torno dessas questões, como de tudo o mais que envolva julgamentos, é preciso prudência, sensatez, moderação e equilíbrio.

Todavia, se há uma questão em torno da qual o brasileiro, para mim, é quase imbatível, absoluto, é na sua passividade em torno de algumas questões morais, especialmente em face dos malfeitos dos nossos representantes. Aí sim, sim, somos campeões; não por maldade, mas por acomodação, pura acomodação.
É de impressionar como o brasileiro parece não se importar com o passado de seus representantes; e, em face desse desleixo, continua elegendo os mesmos que, uma vez eleitos, persistem, sem nenhum constrangimento, à vista de todos, na defesa dos seus interesses.

A internet está presente em nossa vida. Todo mundo tem um smartphone. Há sites de toda ordem fornecendo informações sobre os candidatos às eleições vindouras: www.unidoscontraacorrupção.org.br; www.vigieaqui.com.br; www.capitaldoscandidatos.com.br; www.políticos.org.br; www.poderdovoto.org; www.publique-se.org.br, dentre outros.Apesar disso, o brasileiro – reconhecidas as exceções – prefere replicar fake news, defender candidatos fichas sujas, destilar ódio contra as pessoas que elege como inimigas, como se vivêssemos numa sociedade conflagrada.

O brasileiro podia, se esse fosse o seu desejo, tirar um minuto do seu tempo para se informar sobre a vida pregressa dos candidatos, e, assim, fazer uma boa escolha, para salvar o nosso país, para que não seja entregue aos mesmos, aos que só trabalham na defesa dos seus interesses pessoais.

Não são poucos os que passam horas intermináveis navegando na internet flertando com futilidades, bisbilhotando a vida dos outros, fazendo comentários de ódio, assacando críticas acerbas contra as pessoas que elegem desafetas, condenando uns, absolvendo outros, mas sem a mesma disposição para dar uma “espiadinha básica”, como diz o notável Pedro Bial, para saber o que andou aprontando o seu candidato, como ele enriqueceu numa legislatura, os projetos que apresentou, os processos a que responde etc.

Além disso, ninguém indaga, a ninguém causa estupefação, por exemplo, que um candidato gaste dois, dez, vinte milhões para se eleger deputado ou senador, por exemplo, ciente de que esse valor ele não receberá de volta licitamente ao longo do exercício do mandato.

É que nesse estado de letargia, ninguém questiona como muitos dos nossos representantes, num único mandato, quadruplicam, quintuplicam, a sua fortuna, pois isso parece não interessar a ninguém.

Diante desse quadro desalentador o povo parece embriagado, inerte, incapaz de reagir, numa passividade enervante. Pior que isso, não são poucos os malfeitores que sujaram a sua biografia no exercício do poder, que, ainda assim, estranhamente, têm seguidores tenazes, defensores fanáticos, admiradores apaixonados. Mais grave ainda: defensores entre pessoas de uma elite intelectual, capaz de defender um farsante qualquer como não seria capaz de fazer em face de sua própria biografia, numa relativização da moral, o que chega a incomodar.

Em face de tudo que nós testemunhamos, de tantos desvios de conduta, de tanta perversão, causa-me inquietação, sim, a passividade do povo brasileiro. Causa em mim maior inquietação testemunhar que pessoas que admiramos – pela postura moral, pela obra intelectual que nos legaram, pela história que escreveram, por tudo que representaram no passado, verdadeiros ídolos da minha geração, que combateram o bom combate – fecharem os olhos, fingirem não enxergar os desvios de conduta de certas figuras públicas, persistindo intransigentemente em sua defesa, dando um mau exemplo às gerações mais novas, que ficam sem entender o que significa mesmo a moral do brasileiro.

Mas esse apego, essa defesa intransigente de certas personalidades da nossa história, como se elas tivessem um passado imaculado, não é privilégio dos brasileiros aos quais me referi acima.
Em A mente Imprudente-Os Intelectuais e a Atividade Política, tradução Clóvis Marques, ed. Record, 196 págs, o sociólogo Mark Lilla, da Columbia University (EUA) também tentou entender a estranha postura de mentes brilhantes por certas figuras e fatos desprezíveis da nossa história.

Carl Schimitt, por exemplo, especialista em direito, até hoje muito estudado, defendeu o nazismo, um estado sem direito para boa parte da população. Martin Heidegger, filósofo dos mais respeitados, leitura obrigatória em qualquer curso que pretenda ser levado a sério, entrou no partido nazista e cortou relação com colegas judeus, por razões tão difíceis de entender quanto a sua filosofia. Walter Benjamin manteve-se fiel a Stalin, mesmo quando a maioria dos pensadores de esquerda passou a migrar para a sombra mais confortável de Trotski.

O mesmo autor, no mesmo livro, cita, ainda, Alexandre Kojève, Michel Foucault e Jacques Derrida, os quais também adotaram posição incompreensível em face de determinadas personagens e fatos históricos que a muitos de nós causam tanta inquietação e, até, revolta.

Definitivamente, não tenho pendores pare entender o ser humano.

Mais difícil ainda é entender a passividade e a capacidade de muitos brasileiros de relativizarem a moral.

É isso.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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