Vou iniciar este artigo narrando um fato cujo protagonista fui eu mesmo.
Decerto que, pela minha proverbial deficiência de memória, posso não ser fiel, em algum detalhe, ao que efetivamente ocorreu. No entanto, o que narrarei será fiel, no essencial, aos fatos.
Pois bem. Em 1974, cursando o segundo período de Direito, na antiga faculdade da Rua do Sol, tive a honra de ser aluno de um dos mais conspícuos professores de Direito Civil daquela faculdade, o qual se destacava no meio jurídico maranhense pela sua inteligência e capacidade intelectual; àquela época, já provecto.
Determinado dia, por eleição dos meus colegas de equipe, fui instado a fazer a defesa oral de um trabalho que realizamos na área do Direito Civil, sob a orientação do mestre.
Cumpri o ritual, com a mesma naturalidade com que defendo as minhas posições no TJ; sempre com muita ênfase, com alguma eloquência, a deixá-lo curioso quanto a minha pessoa.
O tempo passou, e fomos submetidos a novo teste – desta feita prova escrita – pelo eminente professor, o qual, em face da defesa oral que fiz e a qual me referi acima, estava atento ao meu desempenho na prova discursiva, segundo me revelou depois.
No dia da entrega das notas, lembro como se fosse hoje, o eminente professor não entregou a minha na sala de aula, como fez com os demais colegas; pediu que eu fosse à secretaria para ter uma conversa com ele, o que me deixou, claro, apavorado.
Achei tudo isso muito estranho. Fui ao seu encontro extremamente preocupado, pois, afinal, eu era apenas um aluno mediano, sem nenhum destaque, estudando com livros emprestados, enfrentando toda sorte de dificuldades; tudo me fazia crer que eu não tinha me saído bem na prova discursiva.
Chegando à secretaria, o professor me chamou em particular e me disse, se não com essas palavras, mas muito próximo disso.
-Senhor Almeida, lhe chamei aqui para lhe ajudar. Observei, na defesa oral do trabalho de sua equipe, que você articula bem as palavras. Observei, no entanto, na sua prova escrita, que você não tem pendores para a escrita. Escreve mal, muito mal. Precisa melhorar muito. Acho que lhe falta leitura. Aconselho-o, doravante, a ler. Leia bastante. Leia Machado de Assis, sobretudo. Não esqueça de Josué Montelo, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo etc. Isso vai lhe ajudar. Falo para o seu bem.
Agradeci, constrangido, os conselhos que ele me deu. Daí em diante, passei a viver um dilema. Eu não tinha livros para ler e nem tampouco meios de adquiri-los. Busquei a Biblioteca Pública e a Biblioteca da Faculdade.
E assim, com dificuldade, fui buscando acesso aos livros. Lia de tudo. Pedia emprestado e devolvia no dia aprazado, para ter direito a fazer novos empréstimos.
Transformei-me num obstinado, num voraz leitor, conquanto tivesse dificuldades para assimilar alguns conteúdos mais sofisticados na linguagem, motivo pelo qual eu anotava tudo.
Em cada livro que eu lia, eu via o rosto do mestre me advertindo. Não bastasse a falta de convívio com a literatura, eu era também desinformado; cuidei de me informar.
Na época, vivíamos o período ditatorial; quase tudo censurado, o que trazia uma dificuldade enorme de acesso a informações. Felizmente, existiam os noticiários veiculados em rádio, e eu ouvia de tudo; lia tudo que era possível. Aliás, lia e relia. E assim, fui aprendendo a escrever, graças aos conselhos recebidos e aos livros aos quais tive acesso.
Com mudança de status, formei, com o tempo, uma biblioteca razoável. Mas, curiosamente, aquela quantidade enorme de livros me incomodava. Ou melhor, me incomodava vê-los fechados, em algum lugar da estante, depois de lidos, sabendo que, em face do tempo e em vista da quantidade enorme de livros por ler, a possibilidade de reler um livro era remota.
Pensando assim, passei a me questionar. Para que tantos livros guardados com tantos, como eu no passado, precisando deles? Decidi, então, já há algum tempo, doar todos os meus livros; fui doando aos poucos. Nos dias atuais acabo de doar os que restaram. Preservei, claro, alguns raros.
Formei nova biblioteca, desta feita eletrônica, que, de tão alentada, jamais serei capaz de ler tudo que nela contém; e contém de tudo, do mais sofisticado ao mais simples, de Tolstoi a Mia Couta, passando por Saramago e Garcia Marques.
Concluída a doação dos últimos exemplares sinto-me mais leve. Sei que muitos farão bom uso dos livros que doei. Ademais, não tinha sentido, para mim, manter uma biblioteca que enchia os meus olhos, que podia até impressionar uma visita, mas não enchia o meu coração.
Quando me indagaram se não seria uma sandice me desfazer dos meus livros fiscos, eu respondi que sandice é deixar de compartilhar com quem deles precisa.
Essa é a minha contribuição aos que, como eu no passado, tendo sede de conhecimento, não têm acesso à leitura.
É isso.