Está na ordem do dia uma proposta do Ministro da Justiça, Sérgio Moro, para viabilizar a introdução no Brasil da plea bargain, que nada mais é que um modelo por meio do qual o acusado aceita se submeter a uma pena, sem processo, em condições, digamos, vantajosas, assumindo, de logo, a autoria do crime.
Esse modelo, de origem na common low, é popular nos Estados Unidos, de onde se pretende fazer a importação para o Brasil, convindo anotar que, mesmo na América, ele não passa ao largo de questionamentos, em face dos números que evidenciam a sua propensão para injustiças.
Com efeito, segundo noticiou o jornal O Globo, do último dia 03 de fevereiro, em pelos menos 25% das condenações revertidas em 2017, nos Estados Unidos, os réus que cumpriam penas tinham se declarado culpados, a evidenciar os furos do modelo, mesmo numa nação de primeiro mundo, com instituições muito mais estruturadas e em condições de prestar um serviço mais acurado que as instâncias de controle brasileiras.
A pergunta que se faz, então é a seguinte: se nos Estados Unidos o modelo proporciona injustiças, levando inocentes à cadeia, que é tudo o que não desejamos, o que esperar da aplicação desse mesmo modelo no Brasil, onde as agências de controle agem de forma deficiente e, principalmente, discriminatórias, cujas ações estão voltadas, como regra, para oprimir os miseráveis selecionados pelo sistema penal?
A verdade é que punimos pouco, e o pouco que punimos o fazemos muito mal, não só em face da seletividade do sistema, mas, sobretudo, porque todos nós sabemos que as provas amealhadas no ambiente judicial são quase sempre caudatárias do que se produziu em sede preliminar (inquérito policial), contaminadas, muitas vezes, pelos mais diversos vícios de procedimento e de produção, cujas consequências se traduzem em erros judiciários só excepcionalmente reparados.
Nessa realidade, é forçoso reconhecer que não são poucos os que são punidos com a conivência das instâncias persecutórias, quase sempre em face de “provas” obtidas nos inquéritos policiais, as quais, de regra, por opção do órgão acusador, são apenas repetidas em sede judicial, sem maiores rigores críticos, empoderando, perigosamente, as instâncias persecutórias primárias.
Vou mencionar apenas dois exemplos da falibilidade/fragilidade do sistema, para demonstrar o quão perigosa é a adoção, por essas plagas, da plea bargain, sem descurar, claro, que os fatos narrados nos exemplos, pela proposta do Ministro Sérgio Moro, poderão não se enquadrar nos pressupostos autorizadores de uma solução negociada, mas que, ainda assim, têm sua utilidade para as reflexões que faço aqui e agora, como uma reafirmação incontestável de que, como diz o gigante Elio Gaspari, o Brasil convivo com leis suecas e com uma realidade haitiana.
Primeiro exemplo: um cidadão preso por trazer consigo uma pequena porção de maconha, se dos autos constarem depoimentos dos agentes públicos (policiais) de que tal diligência ocorreu devido a denúncias anônimas de que o réu seria conhecido como traficante, o indigitado, podem ter certeza, uma vez ratificadas as informações dos agentes estatais em sede judicial – e essa é a tendência -, será inapelavelmente condenado como traficante – e, quiçá, por associação para o tráfico – sem que seja exigida do órgão acusador, no caso o Ministério Público, a adição, ao acervo probatório, de qualquer outro dado que possa emprestar conforto às “provas” produzidas pela instância persecutória primária, ainda que a quadra fática possa ter sido tão somente fruto de uma vendeta dos agentes públicos, o que nunca pode ser descartado.
Outro exemplo. Nos crimes contra o patrimônio (roubo e furto, por exemplo), cuja principal testemunha é, quase sempre, o ofendido, qualquer pessoa suspeita da prática do crime poderá ser presa, processada e condenada, tendo por escopo probatório, como prova decisiva e definitiva, apenas a palavra do ofendido, desconsiderando-se, na maioria das vezes, a falibilidade da sua memória e outros vícios persecutórios, do que pode resultar, com muita probabilidade, uma condenação injusta, como temos testemunhado muitas vezes.
Nos dois cenários acima descritos, apenas a guisa de ilustração, conquanto admita-se a absoluta fragilidade persecutória, nenhum réu, ainda que não tenha cometido o crime, mas se sentido acossado, pressionado pelo sistema, escapara de uma punição, disso inferindo-se que, tenha ou não cometido o crime, acenada a possibilidade de um acordo para diminuição da reprimenda, ele tenderá, em face de sua situação de absoluta fragilidade ante o Estado acusador, sentar-se a uma mesa de negociação, em face mesmo de sua condição de miserabilidade, ciente de sua condição de alvo preferencial das agências de controle.
Nesse ambiente, creia, não vejo como transigir com a introdução entre nós da plea bargain, ante a perspectiva, sempre presente, de que muitos acordos poderão ser firmados com vícios de consentimento, em face mesmo da situação de absoluta fragilidade de um acusado ante a força persecutória do Estado, quase sempre desleal em face dos mais pobres.
É verdade que a plea bargain imprime celeridade às decisões, resultando dele, ademais, a economia de recursos e de tempo, em face, por exemplo, dos chamados crimes solitários, ou seja, praticados por uma só pessoa.
A questão que se coloca, no entanto, é a seguinte: em nome da celeridade, da abreviação do tempo, da economia de recurso, é possível a defesa de um sistema que tende a multiplicar os erros judiciários, a perpetuar a discriminação penal?
Impende anotar que não vejo, como alguns, sob a perspectiva da legalidade, a inviabilidade da adoção do sistema, pois, como sabido, nas questões afeitas aos Juizados Especais Criminais já é prevista a possibilidade de acordos.
Acho, da mesma forma, que nem a Constituição Federal e nem as leis ordinárias proíbem a plea bargain.
A minha análise se circunscreve tão somente às questões que condizem com as injustiças do sistema penal brasileiro, cujas ações persecutórias, porque seletivas, podem levar a injustiças, se o acusado for instado a aceitar um acordo, em face de uma acusação frágil a qual, muitas vezes, só se justifica em face da sua condição de miserável, da opção preferencial do sistema penal pelos mais pobres.
É isso.