CABEÇAS-DURAS

Os dias presentes me autorizam a retomar um tema sobre o qual já tratei em artigos anteriores, que condiz com o que chamo de controles morais seletivos, que avulta de importância nesses dias estranhos permeados por intensa e, às vezes, irracional paixão política, com destaques para os chamados cabeças-duras, que mesmo testemunhando os desatinos dos seus lideres teimam em não reconhecê-los e os seguem cegamente, como se fosse um pecado retirar-lhes o apoio.

Inicio com um excerto relevante da obra ficcional “Não verás país nenhum”, de Ignácio Loyola Brandão, publicado originalmente em 1981. Nela, o protagonista, um ex-professor de História, aposentado à força pelo regime, um burocrata metódico e entediado, faz, logo no início, no primeiro capítulo, uma grave confissão, como se fosse a coisa mais simples do mundo, mas que traduz um pouco do que somos culturalmente. Os fragmentos da confissão estão nos seguintes termos:

“Quatro para as oito; se não corro, perco o ônibus. Não fosse esta perna, eu teria uma bicicleta, como todo mundo. Uma artrose no joelho me impede de pedalar. Tive de passar por dezenas de exames, centenas de gabinetes, paguei gorjetas, conheci todos os pequenos subornos.” (Trecho de: Ignácio de Loyola Brandão. “Não Verás País Nenhum.” iBooks).

O que se vê dos excertos acima transcritos são, pura e simplesmente, a tradução da realidade, ou seja, a toda hora são praticados, por pessoas dos mais variados espectros sociais, pequenos desvios de conduta, pequenos ilícitos, permeados de uma dose não desprezível de mentiras, objetivando superar obstáculos ou levar alguma vantagem, estando a merecer reproche, como tenho testemunhado, apenas os desvios daqueles com as quais não nos identificamos, pelos mais variados motivos.

A par dessa realidade, é fácil constatar, sem surpresa, que costumamos exigir das pessoas, sobretudo dos adversários, aquilo que, muitas vezes, não exigimos de nós mesmos e das pessoas com as quais nos aliamos, por convicção ou conveniência, a traduzir as nossas indissociáveis contradições.

É dizer: não são poucos os que são rigorosos, severos juízes da conduta alheia, do comportamento do outro, mas frouxos quando se trata da sua própria conduta, ou das pessoas às quais aderem incondicionalmente, como se constata no ambiente político, onde só os inimigos têm defeitos.

Nesse cenário, penso, com efeito, que se fôssemos capazes de impor limites a nós mesmos, de colocar em ação os nossos próprios freios morais, e se tivéssemos o necessário descortino para reconhecer os defeitos dos nossos políticos de estimação, como fazemos com os que elegemos como inimigos, a sociedade, o mundo e o nosso futuro seriam diferentes, e a nossa história teria sido escrita sob uma outra perspectiva.

Em face da crise moral que vivenciamos e das contradições que são próprias do ser humano, o que se observa – sem estupefação, com uma dose significativa de parcimônia, o que torna a questão mais grave ainda – é uma espécie de apologia descarada do “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”, caradurismo de quem se impõe uma química de resistência que o impede de ver a realidade como ela se apresenta.

Todavia, se queremos mudar o rumo da história, se pretendemos construir uma nova sociedade, não podemos ser seletivos nas nossas ações morais e na condenação dos desvios de conduta de outrem, pois a condenação às condutas desviantes não pode ser oportunista, conveniente ou seletiva.

Nessas questões, como em tantas outras, não se deve ser dúbio e incoerente em face dos nossos interesses pessoais. Ou bem assumimos uma postura retilínea nessas questões, acionando os freios morais independentemente de quem seja o condutor das ações descontroladas, ou não teremos condições morais de acioná-los em face do inimigo, apenas porque é um inimigo.

Se for nossa intenção contribuir para a mudança, o nosso juízo crítico deve ser o mesmo, quer se trate de um inimigo, quer se trate de um amigo, quer seja em face de um aliado, quer em face de um desafeto, pois os controles e os juízos morais seletivos são uma grave deformação da personalidade de quem os emite e não contribui em nada para nossa evolução como seres humanos.

Nosso juízo crítico tem que ser retilíneo, sem relativizações oportunistas, daí que não podemos ser cínicos, insensíveis, amorais e transigentes com os nossos, os que estão guardados no lado esquerdo do peito, e rigorosos, moralistas, sensíveis e intransigentes com os que não gozam da nossa afinidade.

E como ninguém nessa vida está livre de um desvio moral, convém estarmos atentos. Portanto, os nossos controles internos não podem ser frouxos, devendo estar sempre de prontidão, para, constatado o desvio, impor a nós mesmos a correção de rumo que julgamos deva ser imposta aos outros; nesse quesito não é de bom alvitre o cabeçadurismo.

É isso.

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.