Reflexões sobre violência

Abaixo o inteiro teor do artigo publicado no último domingo, dia 3, no Jornal Pequeno, tratando, ainda, da violência.
REFLEXÕES SOBRE VIOLÊNCIA-III
No artigo de domingo passado, dia 27, após a sua veiculação, anotei vários erros de revisão. Peço desculpas, pois, por essa grave omissão. Há muito constatei que quem redige não pode revisar. É que o autor do texto, ao se propor revisá-lo, sempre verá diante dos seus olhos a redação que imaginou realizar. Os erros, portanto, passam ao largo de sua percepção.
Pelos equívocos e pela omissão, peço desculpas, conquanto creia que o artigo, na sua essência, não foi prejudicado por eles. Como sou o redator e o revisor, os erros vão continuar emergindo. Rogo a tolerância dos leitores.
Releva anotar que os erros, nessas e noutras passagens da nossa vida, se manifestam, disso não tenho dúvidas, para que nós não percamos de vista a nossa condição de seres humanos. Refletir em face dos erros que cometemos e reconhecê-los, também não tenho dúvidas, nos faz crescer, nos torna mais humildes.
Sobreleva anotar, antes das reflexões a seguir emolduradas, que não sou seguidor do movimento de Lei e Ordem, não faço apologia do recrudescimento dos mecanismos penais de controle e não sou favorável ao aumento dos recursos repressivos. Sou seguidor, sim, da corrente que entende que a impunidade estimula a criminalidade, gerando, de efeito, violência.
Espero que o leitor que deseje fazer alguma crítica a essas – às anteriores e próximas – reflexões, que aguarde o aprofundamento do tema, para que disponha de mais elementos para com minhas posições concordar, ou delas discordar, democraticamente.
Isto posto, devo, a seguir, refletir, mais uma vez, sobre violência, tema que tem merecido de mim a mais tenaz atenção, pelo que ela – a violência – representa para todos nós.
Pois bem. No artigo anterior, anotei que se as instâncias formais responsáveis pela persecução criminal se acovardarem – ainda mais -, o meliante agirá com mais tenacidade e o particular, encurralado, entenderá que a solução é fazer Justiça com as próprias mãos.
É claro que o Direito Penal não é o único instrumento que se dispõe para enfrentar a criminalidade. O delito, todos sabem, é um fato complexo, resultante de múltiplas causas e fatores, razão pela qual o seu combate deve se dar através de diversas instâncias – formais e materiais – e com a adoção de múltiplas medidas.
Refletindo sobre essa questão, tive a oportunidade de, no meu blog – JUSTIÇA CRIMINAL EM TEMPO INTEGRAL(http://www.assimdecido.blogspot.com ) – afirmar, verbis:
“Quando as instituições informais – ou materiais – de controle social – família, igreja, escola, sindicatos, associações, etc – falham, avultam de importância as instâncias formais – a lei, o Poder Judiciário, o Ministério Público e as Polícias – de controle social. Quando essas instâncias falham, o particular chama para si o direito de fazer justiça com as próprias mãos”.
Essas colocações, acerca das instâncias formais, não são sem razão. Elas decorrem da minha experiência, do que tenho vivenciado no dia-a-dia do meu labor.
Vou narrar, a seguir, cinco episódios, todos testemunhados por mim, os quais confirmam as reflexões que fiz acerca das conseqüências que decorrem da omissão das instâncias formais de controle social, que é o que interessa nessas reflexões.
I – uma determinada banca de revista, localizada na avenida dos Holandeses – vou preservar o endereço – foi assaltada cinco vezes pelo mesmo meliante. Nos últimos assaltos o meliante, sem cerimônia, entrava na banca, sem sequer esconder o rosto, e determinava que sua proprietária a deixasse, chamando-a de vagabunda. Ele assaltava, em seguida era preso, para, depois, em liberdade, lépido e fagueiro, retornar para, mais uma vez, assaltar a mesma banca. Foram cinco assaltos, repito. Na 7ª Vara criminal foi condenado, finalmente.
Este é um caso flagrante de impunidade, decorrente da, digamos, quase omissão das instituições formais de controle social – MINISTÉRIO PÚBLICO e PODER JUDICIÁRIO, sobretudo; as POLÍCIAS, nesse caso, cumpriram seu papel. A impunidade, não tenho dúvidas, estimulou o acusado a assaltar a banca de revistas por cinco vezes. Tivesse recebido a necessária reprimenda, só assaltaria uma vez.
II – o parente de uma vítima da violência, ao defrontar-se com o autor do ilícito, algemado, no corredor do Fórum, na frente de quantos se encontravam no local – o signatário, inclusive -, desferiu um certeiro soco no rosto do acusado, quebrando-lhe a boca. O sangue jorrou em profusão. Repito: essa cena se descortinou sob os meus olhos e de tantos quantos se encontravam próximos, no corredor do fórum.
Com essa ação, o particular disse a nós outros, sem enleio, sem tergiversar, dentro da casa da Justiça: eu não acredito na Justiça que os senhores fazem!
E por que será que isso aconteceu? Porque as pessoas não mais acreditam em nossa ação. Elas não suportam ver o meliante preso hoje e colocado em liberdade amanhã. É a tradução da descrença nas instituições de controle social – PODER JUDICIÁRIO e MINISTÉRIO PÚBLICO, fundamentalmente; nesse episódio as POLÍCIAS, mais uma vez, cumpriram o seu papel.
III – um determinado acusado, preso em flagrante pela segunda vez, em face do mesmo crime – roubo qualificado -, indagado por mim, durante o seu o interrogatório, por que razão voltou a assaltar, respondeu sem meias palavras: “assaltei novamente porque senti facilidade. Da primeira vez fiquei preso apenas dezessete dias”.
Essa afirmação, mais do que eloqüente, nos adverte para necessidade de que resgatemos, sem mais demora, a credibilidade que perdemos. Sem que o particular acredite nas instituições, estamos todos fadados ao infortúnio. Nesse episódio, como em tantos outros, nós – MINISTÉRIO PÚBLICO e PODER JUDICIÁRIO – fomos ineficientes, mais uma vez; as POLÍCIAS, nesse episódio, também cumpriram o seu papel.
IV – São incontáveis os casos, sobretudo nas áreas periféricas, nos quais os autores de crimes contra o patrimônio são perseguidos por particulares, detidos e espancados; muitos deles só não são linchados em face da intervenção dos mais moderados. Essa reação da população pode ser traduzida no seguinte: exercício arbitrário das próprias razões. E por que o particular chamou para si o direito de fazer Justiça? Porque, infelizmente, perderam a confiança nas instituições de controle social – MINISTÉRIO PÚBLICO e PODER JUDICIÁRIO, precipuamente.
V – um determinado acusado, depois do assalto, deu-se conta que havia deixado os seus documentos na loja da vítima. Resolveu, por isso, retornar, para apanhar os documentos, fingindo ter sido apenas uma testemunha do assalto. Disse esse acusado que o grande temor que sentiu, ao ter que retornar ao local do crime, foi – atenção! – ser preso por populares, pois que, na área onde cometeu o crime, era comum as tentativas de linchamento.
Por que será que esse acusado em nenhum momento temeu ser preso pelos órgãos de repressão? Por que será que esse acusado não teve receio de ser preso e ser condenado pelo crime que acabara de cometer?
A resposta a essa indagação é simples e segue na mesma esteira das demais: porque ele não acredita nas nossas ações. Ele, decerto, já deve ter testemunhado a prisão e soltura imediata de muitos meliantes.
Esses cinco episódios são emblemáticos. Eles traduzem a nossa falência, a descrença da população nas nossas ações. Temos que sair desse estado de sonolência. Mas esse quadro não se muda sem condições de trabalho e sem muita vontade e determinação. Boa vontade e condições de trabalho podem ser decisivos para reverter esse quadro.
A verdade que precisa ser dita, com a necessária ênfase, é que nós, juízes de primeiro grau, estamos órfãos, abandonados. Há dias que não há sequer papel higiênico nos banheiros dos juízes; há outros dias que falta até envelope para postar uma correspondência.
Os juízes também precisam sair desse estado de inércia para protestar contra essa situação. Há poucos dias, por duas vezes, estive próximo de suspender as audiências por falta de água potável. Isso é o retrato em branco e preto do caos em que estamos envolvidos.
Até quando nós, juizes do primeiro grau, vamos permanecer de cócoras, submissos, inertes e inermes diante desse quadro? Nós, juízes de primeiro grau, não devemos aceitar ser tratados como juízes de segunda categoria. Magistrado é magistrado, não importa a instância em que atue.
Como se pode produzir, como combater a violência, dar uma resposta aos reclamos da sociedade, com as péssimas condições de trabalhos que nos impõem?
Tenho dito – e todos que militam na área criminal sabem – que nós, juzes criminais, nos dias atuais, nos constituímos apenas em cedentes de liberdade – provisória ou em face de relaxamento de prisão. Nada mais. O pouco que conseguimos fazer é quase nada em face da demanda.
Temos que reverter esse quadro – urgentemente, sem demora, agora mesmo. Para reverter esse quadro a Associação dos Magistrados, o Ministério Público e a OAB têm que, juntos, arregaçar as mangas. É preciso fazer reverberar a nossa indignação com a forma com que se trata a Justiça do primeiro grau – pelo menos na capital.
Nós só vamos dar uma resposta à sociedade, só vamos poder, efetivamente, combater a criminalidade, julgando os processos a tempo e hora, se conseguirmos reverter esse quadro caótico em que nos colocaram. Nos dias atuais, com as atuais condições de trabalho, muitas vezes o que fazemos é fingir que trabalhamos. Os meliantes, nesse contexto, penhoradamente agradecem. E nunca se deve esquecer: quando o Estado se omite, o particular invoca para si o direito de fazer Justiça.
Juiz Titular da 7ª Vara Criminal
e-mail: josé.luiz.almeida@globo.com – blog: http://www.assimdecido.blogspot.com

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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