Porte ilegal de arma de fogo desmuniciada.

Um questão, que parece simples, tem me atormentado, qual seja, a de ser, ou não, típica a conduta de quem porta arma de fogo desmuniciada. Os Tribunais têm decidido nos dois sentidos. O Supremo decidiu-se pela atipicidade da conduta; o Superior Tribunal de Justiça, pela tipicidade. E eu, no meio desse fogo cruzado, no primeiro momento, decidi-me pela atipicidade da conduta. Passados os dias e aprofundando o exame da quaestio, a cada nova provocação, fui sendo tomado de dúvidas.

Por estar em dúvida, hoje, acerca da vexata quaestio, lancei nos autos do processo nº 130292007, o seguinte despacho, verbis:


Vistos, etc.

Cuida-se de AÇÃO PENAL PÚBLICA que move o MINISTÉRIO PÚBLICO contra J. DOS S. S. S., por incidência comportamental no artigo 14, do ESTATUTO DO DESARMAMENTO.

A DESENSORIA PÚBLICA, por dos seus defensores, pediu o RELAXAMENTO da PRISÃO em FLAGRANTE do indiciado, à alegação de que a sua conduta é atípica, uma vez que a arma de fogo apreendida estava desmuniciada.

O MINISTÉRIO PÚBLICO, de posse do CADERNO ADMINISTRATIVO, ofertou denúncia e opinou pela denegação do pedido.

Vieram-me os autos conclusos para deliberar.

A quaestio acerca da atipicidade do porte de arma de fogo desmuniciada não é pacifica. Eu mesmo tenho enfrentado a questão sem muita convicção. Por não estar convicto da atipicidade da conduta é que, em benefício de outros acusados, já tive oportunidade de decidir acerca da atipicidade e, no mesmo passo, determinado o arquivamento do inquérito policial.

Agora, deparo-me, mais uma vez, com a mesma questão; e mais uma vez assalta-me a dúvida de ser, ou não, típica a ação de quem porta arma de fogo desmuniciada.

Pesquisando acerca do tema deparei-me com posições antípodas, como se verá a seguir.

O Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, verbi gratia, nos autos do HC nº 81.057-8, relatado pela Ministra ELLEN GRACIE refletindo acerca dessa questão, num determino fragmento do seu voto, argumentou, verbis:

No porte de arma, distingue duas situações à luz do princípio da disponibilidade:

“Se o agente traz consigo a arma desmuniciada, mas tem a munição adequada à mão, de modo a viabilizar sem demora significativa o municiamento e, em conseqüência, o eventual disparo, tem-se arma disponível e o fato realiza o tipo.

Ao contrário, se a munição não existe ou está em lugar inacessível de imediato, não há a imprescindível disponibilidade da arma de fogo, como tal – isto é, como artefato idôneo a produzir disparo – e, por isso, não se realiza a figura típica” (p. 8).

Estando a arma, no caso, desmuniciada, e não fazendo, a denúncia, menção à disponibilidade de munições, dá Sua Excelência pela atipicidade da conduta e, daí, provê ao recurso, para deferir o habeas corpus e trancar a ação penal.

O Ministro CÉZAR PELUSO, no mesmo hc, obtempera, litteris:

Conforme acertada lição de MIGUEL REALE JÚNIOR, “a situação perigosa pode, como sucede nos crimes contra a incolumidade pública, colocar em risco de dano a um número indeterminado de pessoas, sendo idônea a lesar a segurança geral”. (17) Além disso, “o perigo deve estar ínsito na conduta, segundo o revelado pela experiência”. (18)

Enquanto uma arma municiada pode representar risco de dano, ou perigo, à incolumidade pública, à segurança coletiva enfim, uma arma desmuniciada já não goza, por si só, dessa aptidão. O mero porte de arma de fogo desmuniciada não tem capacidade para meter em risco o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora.

Ninguém o nega. E é esta a razão mesma por que aqueles que pregam a tipicidade do porte de arma desmuniciada têm, para lhe encontrar algum apoio, de se socorrer do argumento frágil do poder de intimidação, não em termos absolutos, mas quanto à prática de outros delitos. Mas decerto não é esse o núcleo protetor da norma incriminadora em questão, como bem notado pelo Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, porque, se o fosse, o porte de facas e outros objetos cortantes, por exemplo, também teria sido tipificado, dado seu poder intimidador. Nem é lícito ir tão longe, a ponto de seccionar o nexo entre a norma incriminadora e o bem jurídico tutelado e, com isso, descambar num Direito Penal de mera desobediência, ou na administrativização do Direito Penal, (19) coisa que, como procurei demonstrar, é incompatível com a Constituição, por via de insulto ao princípio da proporcionalidade.

Por todas essas razões, estou em que o porte de arma de fogo desmuniciada não entra no âmbito da tipicidade do art. 10 da Lei nº Lei n. 9.437/97 e, daí, ser atípica a conduta atribuída ao recorrente, pela qual, note-se, já foi até condenado.

Malgrado o entendimento esposado pela eminentes Ministros da nossa SUPREMA CORTE, o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA tem decidido, iterativamente, de forma diametralmente oposta. De efeito, incontáveis vezes aquele Sodalício tem proclamado que o fato de a arma estar desmuniciada não torna atípica a ação do seu portador.

As decisões a seguir são exemplares, verbis:

Processo HC 14747 / SP ; HABEAS CORPUS 2000/0112970-8 Relator(a) Ministro GILSON DIPP (1111) Órgão Julgador T5 – QUINTA TURMA Data do Julgamento 06/02/2001 Data da Publicação/Fonte DJ 19.03.2001 p. 127 JBC vol. 40 p. 278 Ementa CRIMINAL. HC. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL. ATIPICIDADE. ARMA DESMUNICIADA. IRRELEVÂNCIA. ORDEM DENEGADA. I. A circunstância de estar a arma desmuniciada não exclui a tipicidade do delito de porte ilegal de arma de fogo, previsto no art. 10 da Lei nº 9.437/97, pois entende-se como suficiente para a sua configuração tão-somente o porte do armamento sem a devida autorização da autoridade competente. II. Ordem denegada.

Na mesma senda:

Processo HC 17221 / SP ; HABEAS CORPUS 2001/0077767-7 Relator(a) Ministro VICENTE LEAL (1103)

Órgão Julgador T6 – SEXTA TURMA Data do Julgamento 20/08/2002 Data da Publicação/Fonte DJ 07.10.2002 p. 301

RT vol. 810 p. 548 Ementa PROCESSUAL PENAL. HABEAS-CORPUS. DECISÃO CONDENATÓRIA. DESCONSTITUIÇÃO. EXAME DE PROVAS. IMPROPRIEDADE DO WRIT. PORTE ILEGAL DE ARMA. ATIPICIDADE. ARMA DESMUNICIADA. IRRELEVÂNCIA. – O habeas-corpus, ação constitucional destinada a assegurar o direito de locomoção em face de ilegalidade ou abuso de poder, não se presta para desconstituir decisão condenatória fundada em judicioso exame de provas, pois o estudo do fato não se compadece com o rito especial do remédio heróico. – A circunstância única de se encontrar arma apreendida desmuniciada não descaracteriza o crime previsto no art. 10 da Lei 9437/97, pois para a configuração do delito entende-se como suficiente tão-somente o porte de arma de fogo sem autorização ou em desacordo com a determinação legal. – Habeas-corpus denegado.

No mesmo rumo:

Processo REsp 302747 / PR ; RECURSO ESPECIAL 2001/0013348-7 Relator(a) Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA (1106) Órgão Julgador T5 – QUINTA TURMA Data do Julgamento 12/11/2002 Data da Publicação/Fonte DJ 09.12.2002 p. 369 Ementa PENAL. RECURSO ESPECIAL. PORTE ILEGAL DE ARMA. ARMA DESMUNICIADA. IRRELEVÂNCIA. Para que se caracterize a tipicidade da conduta elencada no art. 10, da Lei nº 9.437/97, basta tão-somente o porte do armamento sem a devida autorização da autoridade competente. A circunstância de a arma estar desmuniciada não exclui a tipicidade do delito, eis que ela oferece potencial poder de lesão, colocando em risco toda a paz social. Recurso especial conhecido e provido.

A doutrina, da mesma forma, tem interpretado a quaestio de forma pendular: ora define-se pela tipicidade; ora pela atipicidade.

A conclusão a que chego, à luz do exposto, é que preciso aprofundar o exame da quaestio, para firmar uma posição que seja definitiva.

À conta do exposto, reservo-me o direito de, antes do recebimento da denúncia, em outra oportunidade, com mais vagar, aprofundar o exame da questão (vexata quaestio).

O acusado, não se pode deslembrar, está preso e preso não pode permanecer. A uma, porque o crime é de média potencialidade lesiva. A duas, porque, pesquisando no banco de dados da comarca não me deparei com outros processos em desfavor do acusado. A três, porque é viável a suspensão do processo, ex vi legis. A quatro, porque o crime não foi praticado com violência contra a pessoa. A cinco, porque o acusado não pode permanecer preso até que se decida acerca da vexata quaestio. A seis, porque, com a nossa agenda esgarçada, não se pode priorizar o julgamento de processos em face de crimes de medido potencial lesivo e, a sete, porque o acusado já está preso desde o dia trinta do mês de maio próximo passado.

Com as considerações supra, RELAXO a PRISÃO de J. DOS S. S. S., o fazendo porque a sua prisão já se mostra ao arrepio da lei.

Determino, em conseqüência do exposto, a expedição do necessário ALVARÁ DE SOLTURA.

Após o encerramento do meu período de férias, voltem os autos conclusos.

Int.


São Luís, 26 de junho de 2007


Juiz José Luiz Oliveira de Almeida

Titular da 7ª Vara Criminal

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

3 comentários em “Porte ilegal de arma de fogo desmuniciada.”

  1. M. M Juiz de Direito, quanto ao fato de porte ilegal de arma de fogo, gostaria de perguntar ao senhor se existi algum remedio juridico quanto a essa situaçaõ, visto que normalmente quem é preso por portar arma de fogo, da um depoimento na delegacia e vai embora. Caso há algum remédio juridico, que ele possa ser compartilhado com os companheiros. No mais muito obrigado pela atenção, boa noite.

  2. MM Juiz.

    Entendo a sua dúvida, entretanto, temos a convicção de que o porte de arma de fogo desmuniciada, não caracteriza crime, face ser impossível o seu potencial ofensivo. O STF tem razão ao decidir neste sentido. Seria o caso de uma arma branca sem a lâmina.

  3. José Luiz, eu não acho que cabe à vítima valorar se a pessoa está com uma arma municiada ou não. Qualquer arma causa medo pelo que representa e, portanto, coage, estando ou não municiada. Tem-se ainda o STF no HC 88757 / DF – DISTRITO FEDERAL e em vários outros, acordado que o delito de porte ilegal de arma de fogo tutela a segurança pública e a paz social, e não a incolumidade física, bastando trazer consigo arma de fogo para se caracterizar.
    Esta é a idéia de uma cidadã que se sentiria coagida apenas com uma arma de plático muito parecida.
    Grande Abraço

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