As instâncias persecutórias e as diferenciações arbitrárias

Deixar, pura e simplesmente, de punir o pequeno infrator, em represália à inação dos órgãos persecutórios em relação aos grandes criminosos, seria, a meu sentir, instituir a anarquia, situação que resvalaria para o caos; situação extrema que a ninguém interessa.
Juiz José Luiz Oliveira de Almeida
Titular da 7ª Vara Criminal

 

Cuida-se de artigo no qual reflito acerca da discriminação do nosso sistema penal em face de sua clientela.

Antecipo, a seguir, dois excertos:

  1.  
    1. É claro que, em face dessa flagrante discriminação, não se pode simplesmente deixar de aplicar a sanção contida em uma norma incriminadora (sanctio iuris), apenas e tão-somente porque esse ou aquele infrator do colarinho branco passou ao largo da lei e prossegue acintosamente assaltando os cofres públicos.
    2. O que se deve fazer, em casos dessa natureza, é, ao reverso, continuar punindo os pequenos delinquentes, mas agindo com pertinácia, no sentido de punir o criminoso de colarinho branco, numa luta incessante e sem trégua, até que se crie uma cultura punitiva que alcance todo e qualquer delinquente, seja ele egresso da classe dominante ou da classe oprimida.

 

Agora, o artigo, por inteiro.

A discriminação do sistema penal, com os seus tentáculos voltados sempre para os menos favorecidos, faz sedimentar em nós outros a nítida sensação de que o PRINCÍPIO DA ISONOMIA nada mais é que uma falácia, uma quimera, pois que se circunscreve em nossa sociedade apenas e tão-somente ao seu aspecto puramente formal.
A CARTA POLÍTICA de 1988 adotou, sabe-se, o principio da igualdade de direito, “prevendo a igualdade de aptidão, uma igualdade de possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm direito o direito de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico” (ALEXANDRE DE MORAIS, in Direito Constitucional, 18ª Edição, Editora Atlas, 2005, p. 31).
O legislador constituinte pretendeu, com a inserção do PRINCÍPIO DA ISONOMIA, vedar “as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça” (ibidem).
Nesse sentido, a lição de MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, segundo o qual o PRINCÍPIO DA IGUALDADE não é absoluto, pois que “as próprias constituições ao consagrá-lo nem por isso renegam outras disposições que estabelecem desigualdade”, não se podendo, por isso, invocar o mencionado princípio onde a Constituição, explicita ou implicitamente permite a desigualdade. (in Curso de Direito Constitucional, editora Saraiva, 17ª edição, p.242). É a adoção pura e simples da máxima aristotélica que preconiza o tratamento igual aos iguais, e desigual aos desiguais, na medida dessa desigualdade.
A par dessas considerações, devo grafar que o que me inquieta, como inquieta a muitos, são diferenciações arbitrárias, como se vê em relação à clientela do Direito Penal.
A Constituição da República, ao instituir o PRINCÍPIO DA IGUALDADE, como que disse ao legislador e ao aplicador da lei que, diante de situações iguais, deveria dar tratamento igualitário, sem fazer distinção de qualquer natureza, razão porque tal princípio “deve constituir preocupação tanto do legislador como do aplicador da lei” (LUIZ ALBERTO DAVID ARAÚJO e VIDAL SERRANO NUNES JÚNIOR, in Curso de Direito Constitucional, editora Saraiva, p. 67), o que não se vê, entrementes.
O PRINCÍPIO DA IGUALDADE inserto em nossa CONSTITUIÇÃO deveria, com efeito, operar em dois planos distintos, ou seja, quando da elaboração das leis, impedindo a criação de tratamentos abusivamente diferenciados e, noutro plano, impondo à autoridade pública “aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária , sem estabelecimento de diferenciações em razão de sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça, classe social (ALEXANDRE DE MORAIS, ob. cit. p. 32).
Infelizmente, o que se vê no dia-a-dia é uma clara discriminação no atuar das autoridades públicas, as quais, sem disfarce, discriminam, sim, os destinatários da norma penal.
A norma penal, infelizmente, só tem validade, de regra, para as camadas mais humildes da sociedade, conquanto, como afirmei acima, se destine, em tese, a todos os súditos.
A discriminação, é bem de ver-se, começa lá no preâmbulo da persecução criminal, ou seja, na POLÍCIA JUDICIÁRIA – a POLÍCIA MILITAR não passa ao largo – que, cuidando da investigação de crimes praticados por pessoas desvalidas, age com denodo, com altivez e sofreguidão – é a aplicação da máxima dura lex sed lex – para, no mesmo passo, se omitir, quando os envolvidos são egressos das classes mais favorecidas, os quais, quando não obstam a persecução criminal ainda na sua fase preliminar, a impedem de prosseguir na sua fase secundária, muitos vezes como trancamento da ação penal no seu nascedouro, ou com a reforma da decisão de um juiz singular mais destemido – e atrevido aos olhos das classes dominantes.
É claro que, em face dessa flagrante discriminação, não se pode simplesmente deixar de aplicar a sanção contida em uma norma incriminadora (sanctio iuris), apenas e tão-somente porque esse ou aquele infrator do colarinho branco passou ao largo da lei e prossegue acintosamente assaltando os cofres públicos.
O que se deve fazer, em casos dessa natureza, é, ao reverso, continuar punindo os pequenos delinquentes, mas agindo com pertinácia, no sentido de punir o criminoso de colarinho branco, numa luta incessante e sem trégua, até que se crie uma cultura punitiva que alcance todo e qualquer delinquente, seja ele egresso da classe dominante ou da classe oprimida.
Entendo que o magistrado não deve, sob qualquer argumento, deixar de aplicar uma pena a um infrator egresso das classes desfavorecidas, em face deste ou daquele agente público ter enriquecido à custa do erário e seguir adiante, lépido e fagueiro, como se estivesse acima do bem e do mal, pairando sobre nós e ostentando uma riqueza amealhada em detrimento, por exemplo, da saúde das camadas mais carentes.
O magistrado deve, sim, continuar punindo os transgressores da ordem, na esperança de que, um dia, os tubarões da criminalidade sejam alcançados.
Deixar, pura e simplesmente, de punir o pequeno infrator, em represália à inação dos órgãos persecutórios em relação aos grandes criminosos, seria, a meu sentir, instituir a anarquia, situação que resvalaria para o caos; situação extrema que a ninguém interessa
Como consignei acima, é inegável que, após o nascimento da norma penal, cria-se um direito objetivo que, em princípio deveria valer em relação a todos os súditos, afinal “a norma penal é promulgada para ter valor erga omnnes” (JOSÉ FREDERICO MARQUES, in Tratado de Direito Penal, Vol.I, Millenium, 1997, p.159).
É consabido que, com a prática da ação ou omissão considerada delituosa para a lei penal, o jus puniendi, em tese, se transforma de abstrato em concreto.
Verificada a violação da norma penal primária, o Estado deveria intervir, sem distinção de classe social, com a consequente sujeição do autor à pena, pouco importando de que classe ele se origina.
Na prática, no entanto, a teoria é outra. Incontáveis, inumeráveis, são os casos de impunidade, mesmo porque a POLICIA JUDICIÁRIA, sem fiscalização é, a meu sentir, a verdadeira e única detentora do direito de selecionar as condutas que entenda devem merecer a resposta punitiva do Estado. É, por assim dizer, a verdadeira dominus litis.
É o Delegado de Polícia, sim, quem elege, quem tem o poder discricionário – que às vezes resvala para arbitrariedade – de escolher aquele que deva merecer a resposta estatal, que deva tolerar a ira estatal.
Nós – JUIZES e PROMOTORES -, responsáveis pelas instâncias formais, apenas ficamos no aguardo que a autoridade policial se defina por quem deseja ver processado.
O Juiz fica inerte, porque lhe é defeso agir; o representante ministerial, porque não exerce o seu poder fiscalizador – ou porque não quer, ou porque não pode.
O certo é que, por um motivo ou por outro, a autoridade policial é, sim, sem dúvidas, a detentora do monopólio de escolher esse ou aquele meliante que deva merecer a resposta do Estado em face do crime que eventualmente tenha cometido.
É preciso que reflitamos seriamente sobre isso, porque nós não podemos fingir que fazemos Justiça, punindo apenas os desvalidos, os miseráveis, enquanto que os criminosos que alcançam o erário público passam a anos-luz dos tentáculos persecutórios do Estado.
É com esse sentimento que, mais uma vez, tenho me detido nos exames dos processos submetidos à minha intelecção, cujo acusado, de regra, é egresso das classes menos favorecidas, enquanto que os grandes criminosos permanecem impunes, rindo de todos nós, usando e gozando do produto do crime que eventualmente tenham praticado.
Essa é, a meu ver, pura e simplesmente, a constatação de que o Direito Penal, diferentemente do que se pensa, não se destina a todos os súditos, mas somente aos menos favorecidos.

 

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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