O abuso de fragmentos do poder

 

Poder (potere) é, literalmente, o direito de deliberar, agir e mandar. É a partir desse singelo conceito que pretendo refletir neste artigo.
Pois bem. Todos sabemos que o homem, com poder, tende abusar desse poder. Essa é uma verdade trivial – até tautológica, convenhamos. De tão
comezinha essa verdade, poder-se-ia argumentar que qualquer reflexão sobre ela seria vão. Mas, ainda assim, vou refletir. Mas não vou refletir sobre o poder político, constituído formalmente, pois que sobre esses todos já expenderam considerações; mesmo o leigo sabe o que significa. Vou refletir, sim, sobre o naco, o fragmento de poder que todos temos, em determinados momentos e/ou circunstâncias da vida. Vou refletir, só para reafirmar, que, de rigor, com o poder nas mãos, somos todos iguais – conquanto tenhamos às mãos um poder ínfimo, quase insignificante, conquanto sejamos pessoas diferentes – às vezes, diametralmente – umas das outras. Para reafirmar essa constatação elementar, vou tomar de empréstimo alguns fatos percebidos e colhidos no do dia-a-dia das nossas relações com os iguais. Com isso pretendo demonstrar como o homem, na maioria das vezes, quando se sente detentor de um poder, quando se imagina soberano, abusa desse poder.
Aos fatos, pois, captados no dia-a-dia de nossos relações com o semelhante.
Constata-se, à vista fácil, v.g., que progenitores, no exercício do pátrio poder, abusam, não raro, do seu direito, à toda evidência. Incontáveis são os exemplos de pais que espancam os filhos, a razão de discipliná-los, quando sabe – ou devia saber – que lhe é defeso infligir castigos corporais, ainda que o alvo do castigo seja o seu próprio filho. Os abusos dos pais são aceitos pela sociedade como algo normal, mas normal não é. Pode ser banal, corriqueiro, mas, ainda assim, é um ato ilegal. A verdade é que, de tanto repetirem-se esses abusos, as pessoas já os encaram com complacência, contemplativamente.
Os pais que maltratam fisicamente os filhos, abusam do poder, do naco de poder que lhes defere o ordenamento jurídico, com o que se reafirma que o homem, com ordem, faz desordem. Importa gizar que esses castigos corporais infligidos aos filhos, pelos pais, em face de um erro cometido, em nada diferem das torturas infligidas por maus policiais aos suspeitos da prática de crimes, para arrancarem-lhes confissões ou, simplesmente, como antecipação de uma pena ( castigo corporal, consigne-se); pena não prevista no nosso ordenamento jurídico, sobrelevar reafirmar.
Das considerações expendidas pode-se concluir que o pai que tortura o filho em face de uma falta cometida, não tem moral para criticar o policial que tortura o filho alheio nos porões de uma Delegacia de Polícia. É que eles, pais e maus policiais, são, de rigor, diante desse fato, rigorosamente, iguais, muito embora díspares sejam as vítimas e as funções/poderes que exercem.
Cuidemos, a seguir, de outro exemplo extraído do dia-a-dia. Pois bem. O motorista veicular, em face do poder que tem ao alcance das mãos, costuma abusar do poder de direção. Ao desrespeitar as leis de trânsito, muitas vezes pondo em risco a vida do semelhante, o motorista de um automotor age como agem o pai e o policial que torturam – os filhos e os suspeitos da prática de crimes, respectivamente. Pai, policial e motorista em nada diferem no particular: os três abusam do naco de poder que têm, com o que confirmam a tendência do homem de abusar do poder que detém sob as mãos.
Um guarda de trânsito, com o pouco de poder que tem sob as mãos, age, muitas vezes de forma abusiva e, até, irresponsável. Um exemplo vale mais que as palavras. Ainda recentemente, testemunhei um guarda municipal praticando uma arbitrariedade contra um cidadão. O cidadão, porque ousou reivindicar os seus direitos, foi multado, sem que, ao que se saiba, tivesse infringido qualquer lei de trânsito.. É dizer: só foi multado porque ousou reivindicar os seus direitos. É, pura e simplesmente, abuso de poder, com o que se reafirma o que foi dito no preâmbulo dessas reflexões. Esse guarda de transito tem em comum com o pai violento e o policial arbitrário o fato de que todos eles, em determinado momento, abusaram do poder que detinham. E qual de nós ainda não foi vítima da arrogância e prepotência de um guarda de trânsito?
Assemelha-se, no particular, ao pai, ao policial, ao condutor de veículo e ao guarda de trânsito, o (mau) funcionário público No exercício desse naco de poder, esse agente estatal também abusa dele.
A propósito, vou narrar outro episódio, só que vivenciado por mim. Pois bem. Determinado dia, dirigi-me ao CIOPS, na Vila Palmeira, para buscar uma certidão de ocorrência. Lá, fomos “recebidos” na recepção , com total desrespeito e indiferença, por uma senhora de cabelos brancos, que não nos dispensou – a mim a meu filho – a mais mínima atenção, porque, pasmem!, estava assistindo, na portaria, a novela das 14h00. Essa senhora, mal educada e arrogante, é apenas um exemplo do que ocorre no dia-a-dia das repartições pública. Essa senhora, é de rigor que se diga, se assemelha, no exercício do fragmento de poder que tem, ao pai, ao policial, ao condutor de veículo e ao guarda de trânsito antes mencionados. Nas quatro hipóteses todos abusaram do poder. O que difere um do outro é apenas a intensidade do dolo e os efeitos do abuso. Nada mais. Todos são marginais. Pais, policiais, condutores de veículos, guardas de trânsito e funcionários públicos em nada discrepam, quando exercem o poder abusivamente. Imagine você como se comportariam essas pessoas, se mais poder detivessem nas mãos. Mas, vamos em frente nas nossas reflexões.
Qualquer pessoa que busque atendimento médico em um posto de saúde estatal, seja em que lugar for, sabe que, não raro, o atendimento dispensado pelos profissionais dessa área são de absoluto descaso e insensibilidade. Todos já assistimos como são tratados os pacientes em hospitais públicos. Muitos são os que saem pela manhã e não são atendidos em face do capricho de um determinado agente do poder público. Evidencia-se, assim, que os profissionais da saúde, malgrado a relevância de suas funções, abusam, muitas vezes, do poder que têm. Os profissionais de saúde com esse perfil, não são diferentes do pai, do policial, do motorista, do agente de trânsito e do funcionário público sobre os quais tratei acima. Todos eles têm em comum o fato de abusarem do naco de poder que têm. Imagine você se o profissional de saúde com esse perfil detivesse, por exemplo, o poder de prender e soltar!
Todos que moram em apartamento sabem dos abusos praticados por determinados condôminos – quer nas áreas comuns, quer nas áreas privadas. Eles acham que, por estarem no espaço físico que adquiriram, têm o livre arbítrio de usar e gozar como bem entenderam do espaço físico onde se julgam soberanos. Com esse sentimento de poder, o mau condômino, abusando, extrapola, muitas vezes, a sua área privativa para, por exemplo, colocar lixo nos corredores. Os condôminos que agem dessa forma, não diferem do pai que abusa do pátrio poder, do policial que espanca um suspeito, do agente de trânsito que multa de acordo com suas conveniências, do funcionário público mal educado e do profissional de saúde que trata o paciente com descaso.
As vítimas de assaltos sabem que o meliante, com uma arma na mão, tem, nas mãos, o direito de dispor de sua vida (delas, vítimas) e tende a, na primeira oportunidade, abusar do poder que detém circunstancialmente. Ao primeiro vacilo, o meliante não hesita em puxar a arma. Esse é mais um episódio em que o homem, com o poder nas mãos, ainda que ilegítimo, tende a abusar. O meliante, nessa hora, com o poder enfaixado em suas mãos, não difere em nada – a não ser na potencialidade da lesão que possa vir a infligir à vítima – do pai, do policial, do profissional de saúde, do guarda de trânsito, do funcionário público e do condômino.
Com os exemplos acima, creio ter deixado evidenciado aquilo que todo mundo já sabe: o homem com poder tende a abusar desse poder. Ele pode ser negro, branco, alto, baixo, rico, pobre, bonito, feito, etc. Com o poder na mão, todos são iguais – rigorosamente iguais.
A imagem acima foi capturada na internet, possivelmente reduzida e garantida pelos direito autorais

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

Um comentário em “O abuso de fragmentos do poder”

  1. Muito bom! infelizmente o poder público aufere maior abuso por não possuir comando na maioria das instituições ou se têm, ficam omissos. Sempre achei que no Brasil deveria ser feita uma reforma cabal nas instituições públicas, alías algumas nem deveriam existir. Mas parece uma bando de animal irracional que seres humanos do séc. 21.

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