Julgar não é um folguedo; uma patuscada não é

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jose.luiz.almeida@globo.com ou jose.luiz.almeida@folha.com.br.

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“Julgar, acusar e defender não são um folguedo, tenho dito, iterativamente.

O acusado, todos sabemos – sabe-o o Ministério Público -, é sujeito de direitos e como tal deve ser tratado”.

Juiz José Luiz Oliveira de Almeida

Titular da 7ª Vara Criminal da Comarca de São Luis, Estado do Maranhão

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Cuida-se de ação penal pública, em cuja sentença promovi a corrigenda do libelo (emendatio libeli), para, no mesmo passo, declarar extinta a punibilidade do acusado, em face da prescrição.

Antecipo abaixo excertos relevantes da decisão em comento, verbis:

  1. É possível, sim, que o acusado soubesse da origem ilegal da res substracta. Disso ninguém, em sã consciência, pode duvidar.
  2. Mas não há provas, extreme de dúvidas, que tivesse ciência absoluta da origem ilícita da res, razão pela qual não se pode condenar o acusado em face do crime capitulado no artigo 180, caput, do CP, como pretende o Ministério Público.
  3. Reafirmo: pode ser, sim, que o acusado soubesse da origem ilícita da res furtiva.
  4. Todavia, essa verdade não se materializou em provas; é verdade, é bem de se ver, que decorre, tão somente, de uma especulação, de uma conjectura, de uma presunção, de uma possibilidade.
  5. É preciso convir, inobstante, no exame de questões desse jaez, que não basta, para condenar, a convicção íntima do magistrado. É necessário muito mais.
  6. É preciso que essa convicção se estribe, se arrime e assente em dados consolidados nos autos.
  7. Tenho dito que não se condena com base em dados colhidos no mundo da imaginação. Isso é verdade ressabida. É truísmo, até. Verdade trivial, sim.
  8. O magistrado pode, sim, como o fez o Ministério Público, achar que o acusado sabia da origem ilegal da moto em comento.
  9. Mas, todos sabem, não se condena por achar, por supor, por imaginar, como pretende o Ministério Público.

A seguir, a dec isão, por inteiro:


Poder Judiciário

Fórum da Comarca de São Luis.

Juízo da 7ª Vara Criminal

São Luis – Maranhão

Acesse meu site – www.joseluizalmeida.com – e saiba o que penso e como decido.

Processo nº 8382003

Ação Penal Pública

Acusado: Valdenor Santos Carvalho

Vítima: José Álvaro de Sousa Correa

Os miseráveis e os espertalhões

O romancista F. Scott Fitzgerald (24 de setembro de 1896, St. Paul, Minnesota – 21 de dezembro de 1940, Hollywood) disse, certa feita, que “não há segundos atos nas vidas americanas“. Quis dizer o saudoso romancista que, nos Estados Unidos, de regra, alguém que tenha sido flagrado em atos de corrupção, não tem segunda oportunidade.

Seguramente, não se pode dizer o mesmo em nossa terra. Aqui, é fácil constatar, há segundos, terceiros, quartos, quintos, incontáveis atos na vida dos brasileiros. Nossa tolerância para com os corruptos é ilimitada.

Aqui em terras brasileiras , de regra – para ficar no exemplo mais contundente – , o agente público é flagrado em atos de corrupção e nada acontece; se tem mandato outorgado pelo povo, aí, meu irmão!, a impunidade é certa. Se chega a renunciar o mandato, para escapar de alguma punição, volta, depois, acintosamente, eleito pelo mesmo povo, para, mais uma vez, exercer o poder, como se nada tivesse ocorrido – às vezes, acredite, com votação muito mais expressiva. E ainda tem coragem de dizer que foi absolvido pelo povo, como se o indigente – onde vai buscar os votos que ostenta como uma sentença absolutória – tivesse consciência ao votar.

O mais dramático é que quase nada se pode fazer para reverter esse quadro, uma vez que, preponderantemente onde impera a miséria – caso do Maranhão – , o povo não vota livremente. É por isso que os Estados miseráveis – como o Maranhão – funcionam como verdadeiros feudos eleitorais, onde à vassalagem só resta mesma votar de acordo com a vontade do seu senhor…”

Juiz José Luiz Oliveira de Almeida

Titular da 7ª Vara Criminal

Vistos, etc.

Cuida-se de ação penal que move o Ministério Público contra Valdenor Santos Carvalho, devidamente qualificado, por incidência comportamental no artigo 180,§1º, do CP, em face de ter adquirido uma motocicleta furtada, de propriedade do senhor José Álvaro de Sousa Correa, placa HPG 4127, cor vermelha, ano/mod. 1996/1996, Honda XR 200R, chassi 9C2MD28000YR002593, cadastrada em nome de Maria Helena de O. Miranda, que teria sido adquirida pelo acusado das mãos do indivíduo conhecido pela pré-nome Paulo.

A persecução criminal teve início mediante portaria. (fls.08)

Auto de apresentação e apreensão às fls. 10.

Certificado de registro de veículo às fls. 11.

Auto de reconhecimento às fls. 36/37

Termo de restituição às fls. 49/50.

Laudo de vistoria às fls. 70/71.

Recebimento da denúncia às fls. 92.

O acusado foi qualificado e interrogado às fls. 97/99.

Defesa prévia às fls. 101/102.

Durante a instrução criminal foram ouvidas as testemunhas José Álvaro de Sousa Correa (fls. 119/120) e Maria Helena de Oliveira Miranda. (fls. 141)

O Ministério Público, em alegações finais, pediu a condenação do acusado, nos termos da denúncia.(fls.176/178)

A defesa, de seu lado, pediu o a absolvição do acusado, com espeque no inciso III do artigo 386, do CPP, tendo em vista que não sabia da origem ilícita da res.(fls.180/182)

Depois das alegações finais das partes, foi acostado aos autos o depoimento da testemunha Marconi Chaves Lima. (fls.186/188)

As partes, apesar do depoimento em comento, ratificaram os termos das alegações finais. (fls.188v. e 193)

Relatados. Decido.

01.00. Importa dizer, preliminarmente, que o crime de que cuidam os autos presentes ocorreu no município de Zé Doca, Estado do Maranhão.

02.00. A competência, seria, em face do que dispõe o artigo 70 do CPP, pelo lugar da infração.

03.00. Ocorreu, entrementes, que a incompetência deste juízo não foi argüida oportuno tempore, razão pela qual restou prorrogada.

04.00. Nessa linha de raciocínio têm decidido os Tribunais, como se pode ver a seguir, verbis:

“Tratando-se de incompetência relativa, cabe à defesa opor a respectiva exceção, no prazo legal, sob pena de preclusão, prorrogando-se a competência firmada. A incompetência relativa não pode ser declarada de ofício” ( Súmula 33/STJ (STJ – publicado em 14/06/2004 – p. 252 – Relator Gilson Dipp)

05.00. Superada a quaestio respeitante à competência, passo à análise das provas, fazendo, antes, um registro que entendo oportuno.

06.00. O Ministério Público e a defesa, conquanto não constasse dos autos um depoimento que estava sendo degravado – do delegado Marconi Chaves Lima – ofertaram, de logo, as alegações finais, sem – pasmem! – darem-se conta da sua falta.

07.00. O mais curioso, ainda, é que a testemunha em comento – Marconi Chaves Lima – trouxe dados relevantes para o deslinde da questão.

07.01. Ainda assim, instados a se manifestar, depois da juntada do depoimento, as partes – Ministério Público e defensor – ratificaram os termos das alegações finais, sem acrescentar uma vírgula.

08.00. O que se pode inferir do exposto é que as partes – Ministério Público e defesa – não examinaram a questão com o devido desvelo, o que é de se lamentar.

09.00. Feito o registro, passo a análise das provas produzidas nas duas sedes da persecução criminal.

10.00. A persecução criminal, como de praxe no sistema processual brasileiro, desenvolveu-se em duas etapas distintas – fases administrativa e judicial.

11.00. Da primeira sede assoma, com especial relevância, o auto de apresentação e apreensão de fls. 10.

12.00. Da mesma sede distingo, ademais, o depoimento do acusado, o qual, dentre outras coisas, admite ter adquirido a motocicleta em comento.(fls.38/41)

13.00. O acusado disse, ademais,

I – que comprou a moto de uma pessoa nominada Paulo;

II – que comprou a moto por dois mil reais, pois havia um débito dela junto ao DETRAN/Ma;

III – que telefonou para seu irmão, Carvalho, para que o mesmo efetuasse uma consulta junto ao Detran, restando constatado que a mesma estava cadastrada em nome de Maria Helena de O. Miranda;

IV – que na compra da moto recebeu um recibo de transferência com a assinatura de Maria Helena de O. Miranda, sem firma reconhecida em cartório com o espaço do comprador em branco;

V – que a transação foi feita na cidade de Zé Doca;

VI – que, depois, um mototaxista reconheceu a moto como sendo de seu irmão, furtada em 03/10/2002;e

VII – que José Álvaro de Sousa reconheceu a motocicleta com sendo de sua propriedade.

14.00. Da mesma fase ganha vulto o termo de restituição de fls. 49/50.

15.00. Vislumbro, finalmente, no mesmo caderno administrativo, o laudo de vistoria em veículo (fls. 70 e 72).

16.00. Com esses dados encerrou-se a fase preambular da persecução criminal.

17.00. O Ministério Público, tendo às mãos o almanaque administrativo, ofertou denúncia contra Valdenor Santos Carvalho, vulgo Galo, apontando-o como autor do crime de receptação qualificada (artigo 180, §1º, do CP), inaugurando, assim, a fase de cognição judicial.

18.00. O acusado foi qualificado e interrogado, de cujo depoimento, às fls. 97/99, revelam-se importantes os seguintes excertos:

I – que é verdade que comprou a moto mencionada na denúncia;

II – que adquiriu a moto por um mil e quinhentos reais e assumiu o débito que existia junto ao DETRAN;

III – que, no ato da compra, se apresentou como proprietário uma pessoa nominada Paulo;

IV – que comprou a moto em Zé Doca;

V – que pediu a seu irmão, nominado Carvalho, para verificar se havia alguma restrição junto ao Detran;

VI – que foi constatado que havia um débito de mais ou menos mil e trezentos reais junto ao DETRAN;

VII – que confrontou a documentação com a moto, conferindo, inclusive, o número do chassi;

VIII – que não conhecia o elemento de nome Paulo, só o fazendo na cidade de Zé Doca;

IX – que concluída a transação, recebendo a documentação de transferência assinado por uma mulher, colocou a moto em cima do caminhão e rumou para esta capital;

X – que ficou rodando com a moto (mototaxi) por uns dez dias nesta cidade, quando o colega César começou a desconfiar da moto adquirida;

XI – que César dizia que aquela moto tinha as mesmas características da roubada de seu irmão;

XII – que foram à delegacia e constataram que foram colocadas por Paulo ou outro elemento peças da moto do irmão de César na moto adquirida pelo acusado; e

XIII – que desconhecia as irregularidades e, para evitar maiores problemas, devolveu a moto ao irmão de César.

19.00. A vítima foi inquirida às fls. 119/120, de cujo depoimento ponho em destaque os seguintes fragmentos:

I – que era proprietário da moto XR-200, Honda, furtada da porta do curso pré-vestibular Pégasus, no dia 02 de outubro de 2002;

II – que o fato foi noticiado na delegacia do Cohatrac;

III – que foi localizada, por seu irmão, quinze dias depois, uma moto, com as mesmas características da sua, na Shopperia Marcelo;

IV – que a moto em questão estava em poder do acusado;

V – que seu irmão simulou interesse em comprar a moto, para constatar se, efetivamente, se tratava da moto furtada;

VI – que, no local da transação, reconheceu a moto como a de sua propriedade que tinha sido furtada;

VII – que fez ver ao acusado que a moto lhe pertencia;

VIII – que o acusado disse ter comprado a moto por dois mil reais;

IX – que a moto estava toda adulterada;

X – que o acusado propôs ser ressarcido, para lhe entregar a moto;

XI –que a moto estava em nome de Cleude Maria Aguiar Lisboa, sua ex-companheira; e

XII – que a moto estava com outra documentação e com a cor vermelha.

20.00. A testemunha Maria Helena de Oliveira Miranda nada soube informar acerca do crime. (fls.141)

21.00. Do depoimento do delegado Marconi Chaves Lima ponho em evidência os seguintes excertos:

I – que, ao ser vistoriada a moto, constatou-se que se tratava de um veículo furtado;

II – que as peças fixadas na moto era originárias de um veículo furtado;

III – que as peças fixadas na motocicleta não eram compatíveis com o ano da mesma;

IV – que o conjunto da moto era furtado;

V – que utilizaram um chassi idôneo para compor uma moto;

VI – que foi informado que a moto se envolveu num acidente de trânsito na BR que a teria destruído;

VII – que uma pessoa comprou o chassi para ter documento e montar uma moto roubada;

VIII – que a consulta foi feita no sistema Renavan com base na placa da moto, por isso não foi constatada nenhuma irregularidade;

IX- que se a consulta tivesse sido feita pelo motor, teria sido constatado que se tratava de veículo furtado; e

X – que o acusado, ao comprar a moto, não adotou as cautelas devidas.

22.00. Analisada a prova colacionada, passo a expender as minhas conclusões.

22.00. Inicio por sublinhar que não há algo mais grave, para que tem a difícil missão de julgar, que a mera possibilidade de condenar um inocente.

22.01. É melhor, tem-se dito, com propriedade, absolver um culpado.

22.01.01. É por isso que, para acusar, para defender e, sobretudo, para julgar, exige-se desvelo, tenacidade, sofreguidão e, fundamentalmente, muita responsabilidade, para não flexionar as ações de quem acusa, defende ou julga para o campo perigoso da arbitrariedade, do descaso e da injustiça.

23.00. Nos autos sub examine, depois das provas colacionadas, posso afirmar que há apenas uma certeza absoluta, qual seja, a de que a moto apreendida em poder do acusado tinha origem ilícita; mas não se pode afirmar, validamente, que tivesse adquirido a res mobilis, convicto de que se tratava de coisa furtada.

24.00. O acusado – e não há provas que hostilize, que arrede essa constatação – , descuidado, sem as cautelas necessárias, comprou uma moto, de um desconhecido, para, depois, ser surpreendido com a informação de que comprara gato por lebre.

25.00. Segundo o próprio delegado de polícia que presidiu a instrução preliminar, o acusado não se acautelou quando da compra da res mobilis; mas daí a se dizer, conclusivamente, como o fez o Ministério Público, que ele, acusado, sabia, tinha certeza de estar comprando um objeto de origem ilícita, vai uma distância imensurável.

26.00. Em verdade, ao que deriva da prova – a considerar a relevância do depoimento da autoridade policial que presidiu a instrução preliminar, desprezado pelo Ministério Público e pela defesa -, a moto do ofendido foi furtada e envolveu-se num acidente que a destruiu.

26.01. Alguém, um desconhecido, aproveitou o chassi dela e montou uma moto, que foi, depois, adquirida pelo acusado, descuidadamente.

27.00. Tenho para mim que, nos dias atuais, qualquer pessoa desatenta pode, sim, comprar um objeto de furto, sem ter consciência de estar praticando alguma ilegalidade, como o fez o acusado, efetivamente.

28.00. Do que brota do depoimento da autoridade policial antes mencionada, qualquer um de nós, nas mesmas circunstâncias, seria capaz de se envolver numa ação ilegal semelhante; bastando, como o fez o acusado, não se acautelar.

29.00. É possível, sim, que o acusado soubesse da origem ilegal da res substracta. Disso ninguém, em sã consciência, pode duvidar.

29.01. Mas não há provas, extreme de dúvidas, que tivesse ciência absoluta da origem ilícita da res, razão pela qual não se pode condenar o acusado em face do crime capitulado no artigo 180, caput, do CP, como pretende o Ministério Público.

30.00. Reafirmo: pode ser, sim, que o acusado soubesse da origem ilícita da res furtiva.

30.01. Todavia, essa verdade não se materializou em provas; é verdade, é bem de se ver, que decorre, tão somente, de uma especulação, de uma conjectura, de uma presunção, de uma possibilidade.

31.00. É preciso convir, inobstante, no exame de questões desse jaez, que não basta, para condenar, a convicção íntima do magistrado. É necessário muito mais.

31.01. É preciso que essa convicção se estribe, se arrime e assente em dados consolidados nos autos.

32.00. Tenho dito que não se condena com base em dados colhidos no mundo da imaginação. Isso é verdade ressabida. É truísmo, até. Verdade trivial, sim.

33.00. O magistrado pode, sim, como o fez o Ministério Público, achar que o acusado sabia da origem ilegal da moto em comento.

33.01. Mas, todos sabem, não se condena por achar, por supor, por imaginar, como pretende o Ministério Público.

34.00. O Ministério Público, importa dizer, no afã de condenar o acusado, desprezou, sem qualquer análise, sem nenhuma consideração, o depoimento mais importante dos tomados em sede judicial, qual seja, o da autoridade policial que presidiu a instrução extrajudicial, o qual afirma, com todas as letras, à luz do que apurou, que o acusado foi descuidado, negligente ao adquirir a moto.

34.01. Esse depoimento, consigno, não destoa, não entra em rota de colisão com os demais dados coligidos, daí a sua relevância, também por isso.

35.00. O Ministério Público poderia, fosse esse o seu interesse, reexaminar toda a prova, a partir do depoimento do delegado Marconi Chaves Lima, para, só depois, firmar um entendimento mais abalizado.

36.00. O que fez o Ministério Público, entrementes? Limitou-se a ratificar as alegações finais que ofertou a destempo, sem nenhum cuidado em fundamentar as razões pelas quais entendeu devesse ser condenado o acusado.

37.00. O que é mais grave na proposta ministerial é que, nas suas alegações finais, tomou por base, para pedir a condenação do acusado, o seu interrogatório, olvidando-se – pasmem! – que o acusado negou, peremptoriamente, que soubesse da origem da res.

37.01. O Ministério Público agiu, o que espanta, como se o acusado tivesse confessado o crime.

38.00. Importa indagar, à luz do exposto: como o Ministério Público pode concluir, com esteio exclusivamente na palavra do acusado, que ele tivesse cometido o crime de receptação dolosa qualificada, se ela o negou?

39.00. Confesso que essa e outras posições do representante do Ministério Público subscritor das alegações finais me preocupam sobremaneira, afinal, todos sabem, não se pode brincar de condenar, não se pode fazer chalaça com direitos de ninguém.

39.01. Julgar, acusar e defender não são um folguedo, tenho dito, iterativamente.

40.00. O acusado, todos sabemos – sabe-o o Ministério Público -, é sujeito de direitos e como tal deve ser tratado.

40.00. Vou perquirir, mais uma vez, com o que demonstro a minha preocupação com a posição do representante ministerial: com espeque em quais dados o Ministério Público pode concluir que o acusado malferiu o preceito primário do artigo 180 do CP?

40.01. Ao que brota das alegações derradeiras em comento, reafirmo, o Ministério Público concluiu pela procedência da ação exclusivamente no depoimento do acusado, do qual, dentre outras coisas, vê-se que nega ter conhecimento, à época do fato, de que a moto tivesse sido furtada.

41.00. O Ministério Público enaltece, exalta o depoimento do acusado, como se ele tivesse admitido a pratica do crime, o que estarrece.

42.00. Francamente, como é possível que se conclua que alguém cometeu um crime com base exclusivamente na negativa de autoria?

43.00. É, ou não é, estupefaciente a posição ministerial?

44.00. Todos sabemos que

“Para que se configure o delito de receptação dolosa, em sua modalidade própria, é imprescindível que o agente tenha certeza da proveniência criminosa da coisa que adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio(…) Essa prévia ciência da origem criminosa da coisa não se presume (cf. RF 100/140) e meras suspeitas de ter o agente conhecimento de sua proveniência ilícita não autorizam decisão condenatória pelo delito de receptação (cf. RT 180/554)(TACRIM 10/11 e RT 420/255)

45.00. Todos somos cientes, ademais, que

Para a caracterização do crime de receptação dolosa é necessário que o agente conheça a origem criminosa da coisa adquirida, não bastando desconfiar dessa origem ( RT 619/375)

46.00. Na mesma medida:

Para que se admita a existência da receptação dolosa é necessária a evidência segura de que o agente conheça de fato a procedência criminosa das coisas que adquire ou recebe de outrem. Para a configuração da receptação dolosa indispensável é o dolo direto, não bastando nem mesmo o dolo eventual ( RTJE 45/326)

47.00. Na mesma direção:

Para que se configure o delito de receptação dolosa não basta que o acusado tenha razões para desconfiar da origem criminosa da coisa, pois cumpre que saiba tratar-se de produto de crime. É imprescindível o dolo direto , isto é, o conhecimento positivo de que está mantendo a situação ilícita decorrente de um crime anterior (JUTACRIM 77/314)

48.00. Diante das afirmações suso, com esteio na melhor construção jurisprudencial, indago, mais uma vez: donde promana, a par das provas produzidas, a certeza de que o acusado soubesse da origem ilícita da res?

49.00. Com fulcro em quê o Ministério Público concluiu que o acusado sabia da origem ilícita da res e onde está a prova, noutro giro, que tenha adquirido a mesma em face de sua atividade comercial?

50.00. A verdade é que, todos sabemos, em casos de igual matiz, o dolo não se presume.

50.01. Sem a prova do dolo direito, é bem de ver-se, não se pode apenar ninguém com proteção no artigo 180, caput, do CP.

51.00. As circunstâncias em que se deu o fato – compra da res – me fazem concluir, diferente do Ministério Público, que o acusado foi descuidado.

52.00. A prova contida nos autos não é plena acerca do dolo específico.

52.01. Nada está a indicar que o acusado tenha tido a intenção de adquirir bem de origem ilícita.

53.00. Importa sublinhar, com veemência, que o acusado, ao que flui do seu depoimento, não confessou a autoria do crime; tivesse-o confessado, ter-se-ia segurança do elemento subjetivo; aí, sim, poder-se-ia falar em dolo específico.

53.01. Sem a confissão, elementos outros, decorrentes da própria conduta do acusado, poderiam ser buscados para arrimar um decreto de preceito sancionatório, a fim de que a decisão não ficasse ao alvedrio do acusado.

53.01.01. Ocorre, entrementes, que nem o acusado confessou o crime e nem tampouco consta dos autos dados probatórios que possam fazer concluir que ele soubesse da origem ilícita da res.

54.00. A decisão a seguir transcrita, da lavra do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, é no mesmo sentido, ou seja, de que

A receptação dolosa exige dolo específico, de maneira que seria impossível a condenação do agente sem a confissão, porque somente através dela ter-se-ia a convicção segura do elemento subjetivo, consistente no conhecimento prévia do agente a respeito da procedência criminosa da coisa adquirida. Desse modo para que a sanção se efetive e não fique ao alvedrio do próprio acusado, a prévia ciência da origem criminosa da coisa é passível de ser deduzida através de indícios sérios e da própria conduta do receptados antes e depois do delito ( RT 717/385)

55.00. Na mesma alheta a doutrina mais lúcida, como se vê a seguir, verbis:

O tipo subjetivo centra-se na expressão deve saber empregada pelo legislador. Consigne-se, por oportuno, que o saber, no delito de receptação, implica o conhecimento pleno e absoluto por parte do agente da procedência criminosa da coisa por ele obtida( Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal Brasileiro, Vol. III, Parte Especial, editora Revista dos Tribunais, 2004, p.685) ( os destaque constam no original)

56.00. Não discrepa a lição de Fernando Capez, segundo o qual,

Só haverá o enquadramento no caput do artigo se o agente souber, tiver certeza de que a coisa provém de prática criminosa anterior. Não basta o dolo eventual. Se assim agir, o fato será enquadrado no modalidade culposa do crime ( Curso de Direito Penal, Parte Especial, Vol. II, Editora Saraiva, 2004, p.547)

57.00. No preâmbulo desta decisão conclui, prima facie, que, desde o meu olhar, o acusado tinha sido negligente ao efetuar a compra da moto sob retina.

58.00. Reafirmo, agora, forte, intenso nas provas produzidas, com destaque para a palavra do acusado e do delegado que presidiu a instrução periférica, que o acusado, foi, efetivamente, negligente.

59.00. Todos sabem – mesmo os aparentemente incautos – , que nos dias atuais, onde prepondera a bandalha, a esperteza e o ímpeto de levar vantagem, que não se pode adquirir bens sem se cercar de todas as garantias de sua origem.

59.01. Essa cautela, vislumbro das provas, não teve o acusado, disso inferindo-se que adquiriu a res que, pela condição de quem a oferecia – um desconhecido, nominado Paulo – deveria presumir obtido por meio criminoso.

60.00. Nessa direção têm decidido os Tribunais, segundo os quais

Firmada a convicção de que o agente devia ‘presumir’ a origem espúria das res (modalidade culposa), não era dado ao sentenciante declará-lo como incurso no artigo 180, caput, do CP,que exige a ocorrência do dolo direito ( JUTACRIM 87/326)

61.00. Na mesma trilha a decisão segundo a qual

Na receptação culposa, o elemento psicológico consiste na vontade consciente de adquirir ou receber a coisa e na culpa em descuidar do conhecimento preciso de sua proveniência. A ausência dessa desconfiança impeditiva de aquisição ou do recebimento faz com que surja a culpa (Bol. ADV 1.199)

62.00. Por tudo que expus acima, compreendo que se há de operar uma corrigenda do libelo, para que a imputação recaia no §3º do artigo 180, do Código Penal.

63.00. Realizada a desclassificação (emendatio libelli), concluo que está extinta a punibilidade do acusado, pela ocorrência de prescrição.

64.01. É que a pena máxima prevista, in abstracto, para o crime de receptação culposa é um ano de detenção, disso inferindo que, recebida a denúncia, causa interruptiva de prescrição, no dia 24 de abril de 2003 (fls.92), portanto há mais de seis anos, está prescrita a pretensão punitiva do Estado, ex vi legis.

65.00. Tudo de essencial posto e analisado,

Declaro, por sentença, extinta a punibilidade de Valdenor Santos Carvalho, vulgo Galo, brasileiro, mecânico, filho de Walber Josias Carvalho e Valdelice Santos Machado, residente na Rua Valdivino Castelo Branco, nº 241, Santo Antonio, nesta cidade, o fazendo com espeque no inciso IV, primeira figura, do artigo 107, e inciso V, do artigo 109, ambos do CP.

P.R.I.C.

Sem custas.

Com o trânsito em julgado, arquivem-se, com a baixa em nossos registros.

São Luis, 10 de junho de 2009.

juiz José Luiz Oliveira de Almeida

Titular da 7ª Vara Criminal

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

3 comentários em “Julgar não é um folguedo; uma patuscada não é”

  1. Ao ler, com muita atenção, esta desclassificação, tenho certeza: de que adicionei muitos fragmentos importantes do direito penal, aos meus minguados conhecimentos. Muito obrigado, Meritíssimo.

  2. Estando a procura de dados sobre uma desclasificação deparei-me com esta sentença de desclassificação do MM.Juízo JOSÉ LUIZ OLIVEIRA DE ALMEIDA, Titular da 7ª Vara Criminal
    de São Luiz do Maranhão. Sou advogado em Salvador/Bahia. Sei que em todo o Brasil existem juízes muito bons e sentenças muito bem prolatadas,…mais esta de sua Exelência é primorosa, muito bem pontuada, principalmente nos ítens que embasaram a desclassificação e notadamente o descaso da defesa quanto à atenção com os fatos nos autos que beneficiaria seu cliente, assim como o representante do Ministério Público, que tem a função primordial de fiscal de lei e na maioria das vezes oferecem a denúncia não analizando os inquéritos atentamente, abarrotando os cartórios de processo criminais como este caso em tela. A administração da Justiça neste País é terrível. Parabens MM. Juízo Jose Luiz Oliveira de Almeida, Titular da 7ª Vara Criminal, necessitamos de juízes corretos, consciêntes, imparciais e severos.

  3. O que impressiona, nos seus escritos, é a forma didática e clara com que os conhecimentos jurídicos são aplicados.
    É, sobretudo, o domínio da técnica processual.
    A congruência, sempre presente, na análise da prova à luz das alegações das partes.
    V. Exa. está desenvolvendo muito bem o talento confiado por Deus à serviço de todos os operadores da Justiça.

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