A clientela do direito penal e o princípio da isonomia

É do conhecimento de quem milita na área criminal – Delegados, Promotores, Juizes, Agentes de Polícia, Policial Militar, etc – que o sistema penal seleciona os setores que deva alcançar. O Direito Penal, com efeito, fez uma flagrante e discriminatória opção pelos pobres, a quem se destina, prioritariamente, a persecução criminal, conquanto a lei penal, em tese, tenha como destinatários todos os súditos, desde que não sejam inimputáveis. A lei penal, ensina a melhor doutrina, “ se destina a todas as pessoas que vivem sob a jurisdição do estado brasileiro, estejam no território nacional ou estrangeiro” 1, mas, na prática, alcança somente os desvalidos, os desprotegidos, os pobres.A norma penal tem valor absoluto e se dirige a todos, o que não significa, reafirmo, que a todos alcance. Esse aspecto, é de relevo que se diga, refoge, muitas vezes, do âmbito de atribuição de um magistrado. Ao magistrado – aquele que só tem compromisso com a sua consciência – se impõe o dever de aplicar a sanção penal ao infrator, indistintamente, seja ele pobre ou rico e ainda que se argumente que esse ou aquele criminoso do colarinho branco permaneça impune, malgrado contumaz agressor da ordem pública.

 

Com as considerações pretendo demonstrar que não desconheço que o sistema penal se vale da uma seleção dos setores mais humildes, para, ao invés de sujeitá-los a um processo de criminalização, submetê-los a um processo de discriminação, os erigindo à condição de bodes expiatórios para os excessos do sistema, que os expõe, às vezes, até, à violência física, com o beneplácito, o que é mais grave, de alguns responsáveis pela persecução criminal, que fingem que desconhecem os métodos heterodoxos de alguns maus policiais para arrancar confissões.Essa é a realidade nua e crua do nosso sistema penal, na sua função selecionadora dos tipos penais, os quais só se destinam , lamentavelmente, às pessoas mais humildes da sociedade, com o que assegura a hegemonia do setor dominante, setor que, é consabido, passa, quase que absolutamente, à ilharga da persecução criminal; setor privilegiado que fica pairando sobre todos nós, imune a qualquer ação persecutória, reafirmando, de efeito, a capacidade selecionadora e discriminatória da lei penal. 

Nós outros, responsáveis pela persecução criminal, imaginamos que estamos desempenhando um papel relevante na sociedade, prendendo e condenando os desajudados, sem nos dar conta de que somos, em verdade, apenas um instrumento de dominação. Enquanto nos limitamos a enfrentar a pequena criminalidade – e devemos fazê-lo, sob pena de estabelecer-se a anarquia – , os grandes criminosos, aqueles que subtraem as verbas destinadas à saúde, ad exempli, permanecem impunes, acima do bem e do mal, cultivando os amigos que têm no poder.A propósito NILO BATISTA, refletindo acerca do capitalismo e Direito Penal e da discriminação da persecução criminal em nosso país, afirma que “quando alguém fala que o Brasil é o país da impunidade, está generalizando indevidamente a histórica imunidade das classes dominantes. Para a grande maioria dos brasileiros – do escravismo colonial ao capitalismo selvagem contemporâneo – a punição é um fato cotidiano. Essa punição se apresenta implacavelmente sempre que pobres, negros ou quaisquer outros marginalizados vivem a conjuntura de serem acusados de crimes interindividuais ( furtos, lesões corporais, homicídios, estupros, etc . Porém essa punição permeia principalmente o uso estrutural do sistema penal para garantir a equação econômica. Os brasileiros pobres conhecem bem isso. Ou são presos por vadiagem, ou arranjem rápido emprego e desfrutem do salário mínimos ( punidos ou mal pagos). Depois que já estão trabalhando, nada de greves para discutir o salário, porque a polícia prende e arrebenta (punidos e mal pagos)” 2É claro que essa discriminação do sistema penal, com os seus tentáculos voltados sempre para os menos favorecidos, faz sedimentar em nós outros a nítida sensação de que o PRINCÍPIO DA ISONOMIA nada mais é que uma falácia, uma quimera, pois que se circunscreve, pelo menos aqui entre nós, apenas e tão-somente ao seu aspecto puramente formal.A CARTA POLÍTICA de 1988 adotou, sabe-se, o principio da igualdade de direito, “prevendo a igualdade de aptidão, uma igualdade de possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm direito o direito de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico”.3 O legislador constituinte pretendeu, com a inserção do PRINCÍPIO DA ISONOMIA, vedar, sem conseguir, no entanto, “ as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça” 4.MANUEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, preleciona, com lucidez, que o PRINCÍPIO DA IGUALDADE não é absoluto, pois que “as próprias constituições ao consagrá-lo nem por isso renegam outras disposições que estabelecem desigualdade” 5, não se podendo, por isso, invocar o mencionado princípio onde a Constituição, explicita ou implicitamente permite a desigualdade. É a adoção pura e simples da máxima aristotélica que preconiza o tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais, na medida dessa desigualdade. A par dessa constatação, devo grafar que o que me inquieta, como inquieta a muitos, são diferenciações arbitrárias, as discriminações, como se vê em relação à clientela do Direito Penal.

A Constituição da República, ao instituir o PRINCÍPIO DA IGUALDADE, estabeleceu que, diante de situações iguais, deve-se dar tratamento igualitário, sem fazer distinção de qualquer natureza, razão porque tal princípio “deve constituir preocupação tanto do legislado como do aplicador da lei”6, o que não se vê, entrementes. O PRINCÍPIO DA IGUALDADE inserto em nossa CONSTITUIÇÃO deveria, com efeito, operar em dois planos distintos, ou seja, quando da elaboração das leis, impedindo a criação de tratamentos abusivamente diferenciados e, noutro plano, impondo à autoridade pública “aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária , sem estabelecimento de diferenciações em razão de sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça, classe social 7.Nada obstante, o que se vê no dia-a-dia é uma clara discriminação no atuar das autoridades públicas, as quais, sem disfarce, discriminam, sim, os destinatários da norma penal. A norma penal, infelizmente, só tem validade, de regra, para as camadas mais humildes da sociedade, em que pese, como afirmei acima, se destine, em tese, a todos os súditos. A discriminação, nesse caso, começa lá no preâmbulo da persecução criminal, ou seja, na POLÍCIA JUDICIÁRIA – a POLÍCIA MILITAR não passa ao largo – a qual, cuidando a investigação de crime imputado às pessoas desremediadas, age com denodo, com altivez e sofreguidão – é a aplicação da máxima dura lex sed lex – para, no mesmo passo, se omitir, quando os envolvidos são egressos das classes mais favorecidas, os quais, quando não obstam a persecução criminal ainda na sua fase preliminar, a impedem de prosseguir na sua fase secundária, muitos vezes como trancamento da ação penal no seu nascedouro, ou com a reforma da decisão de um juiz singular mais destemido – e atrevido aos olhos das classes dominantes.É claro que, em face e por causa dessa flagrante discriminação, não se pode simplesmente deixar de aplicar uma sanção contida em uma norma incriminadora em desfavor do infrator desvalido, apenas e tão-somente porque esse ou aquele infrator do colarinho branco passou ao largo da lei e prossegue acintosamente assaltando os cofres públicos. O que se deve fazer é, ao reverso, continuar punindo os pequenos delinqüentes, mas agindo com pertinácia, no sentido de punir o criminoso de colarinho branco, numa luta incessante e sem trégua, até que se crie uma cultura punitiva que alcance todo e qualquer delinqüente, seja ele egresso da classe dominante ou da classe oprimida.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

1 DOTTI, René Ariel,in Curso de Direito penal, Parte geral, 2ª edição, Editora Forense, 2004, p.233)

2 BATISTA, Nilo, in Punidos e Mal Pagos – Violência, Justiça, Segurança Pública e Direito Humanos No Brasil de Hoje, 1990, Editora Revan, p. 38/39.

3 MORAIS, Alexandre, in Direito Constitucional, 18ª Edição, Editora Atlas,2005, p. 3144 MORAIS,Alexandre, ibidem.

5 FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves, in Curso de Direito Constitucional, editora Saraiva, 17ª edição, p.242

6 ARAÚJO, Luiz Alberto David e NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano, in Curso de Direito Constitucional, Editora Saraiva, p. 677 MORAIS, Alexandre, , ob. cit. p. 32

Esta matéria foi publicada, a primeira vez, neste blogue, em janeiro de 2006

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

2 comentários em “A clientela do direito penal e o princípio da isonomia”

  1. ” mas, na prática, alcança somente os desvalidos, os desprotegidos, os pobres”

    Boa Noite. Em Portugal já não é só assim.

  2. Sem sombra de dúvida, nosso sistema penal é aristocrático. A cobra só pica os pés descalços.

    Ao sonegador (que, por via obliqua, mata dezenas de pessoas) a extinção da punibilidade, caso pague, ainda que tardiamente, o tributo; ao ladrão de botijão de gás, ainda que devolva a res, é “agraciado” com o arrependimento posterior, diminução infima da pena.

    Triste essa realidade…muito triste!

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